A Liberdade nasce com cada pessoa; tem nela os seus alicerces e as suas restrições morais. A Democracia é a escolha livre de quem governa o estado. A Democracia só é possível nos estados liberais. André Abrantes Amaral para o Observador:
Após
a fome se ter alastrado na Rússia no Inverno de 1921, das greves,
motins e algumas revoltas que ocorreram um pouco por todo país, Lenine
achou por bem dar uma folga à população. A sua ideia foi implementar um
programa económico que permitisse às pessoas deterem os seus pequenos
negócios, comprarem os produtos que precisassem e venderem os que
produzissem. O plano estabelecia também que os camponeses fossem
tributados pelos seus rendimentos, ao invés de lhes ser confiscado o que
produziam. Lenine não acreditava na liberdade individual nem na livre
iniciativa, mas percebeu que precisava que o povo fosse livre por uns
tempos para que a economia se equilibrasse. Ou pelo menos que saísse da
situação caótica em que se encontrava sob pena de o regime cair de vez.
Os
resultados foram surpreendentemente bons. Há 100 anos a tragédia da
experiência comunista ainda era inimaginável e, com o novo plano
económico, a população julgou que os governantes se tinham apercebido do
óbvio, que o sonho comunista não passava de uma ilusão de intelectuais
burgueses. Finalmente o país seria um pouco mais livre, após o
cancelamento de algumas das restrições provenientes do tempo dos czars.
Infelizmente
não foi o que sucedeu. Tanto Lenine como os seus companheiros tinham
como objectivo libertar a Rússia da opressão que historicamente a
submetera. Também a quiseram democratizar. Mais: quiseram
descentralizá-la. Nesse sentido concederam autonomia às regiões não
russas com o intuito de pôr termo à opressão da população russa. Os
objectivos pareciam dignos; o problema foi não serem verdadeiros. Os
dirigentes comunistas quiseram democratizar a Rússia, mas não queriam
que o povo escolhesse livremente os seus governantes, apenas que
deixasse de depender das hierarquias estabelecidas pela tradição e pela
história e passasse a responder directamente a Moscovo; os dirigentes
comunistas desejavam a autonomia das repúblicas não russas como forma de
aplacar o descontentamento das populações fartas da autocracia dos
czares mas, na verdade, os novos dirigentes comunistas dessas repúblicas
também respondiam directamente às instruções de Moscovo. Sob pretexto
da descentralização e da autonomia cortaram-se poderes intermédios para
só restar o Kremlin. Dentro da mesma lógica de aparência, os dirigentes
comunistas decidiram abrir escolas, contratar professores, o
analfabetismo recuou e a literacia subiu. Sucede que o pretendido não
foi que as pessoas, com mais conhecimentos, se tornassem capazes de
pensar e de escolher de acordo com a sua vontade, mas que simplesmente
lessem os panegíricos comunistas, os únicos que podiam ser impressos e
que circulavam livremente. Lenine sabia que a mensagem comunista não
chegava à maioria da população porque esta não sabia ler. Assim, foi
preciso ensiná-la a ler para que lesse o que o partido escrevia. Moscovo
pretendeu aumentar a produção agrícola, mas não o fez para que os
agricultores ganhassem mais dinheiro e escolhessem os bens que
precisavam ou quisessem consumir. O objectivo, mais simples embora não
tão modesto, cingia-se a que a comida chegasse às cidades, às fábricas
pejadas de mão-de-obra barata (de agricultores cuja fome afastava dos
campos) e que dotavam o Estado de produtos que se vendiam no
estrangeiro.
Dentro
da mesma lógica a política da paz comunista à época não passou de uma
farsa. Uma forma cínica de salvar o regime que sucumbiria perante uma
invasão alemã em larga escala. Trotsky, que nas suas deslocações a
Brest-Litovsk se inteirou do estado caótico das defesas russas, ainda
tentou ganhar tempo desconcertando as potências centrais com a fórmula
do nem guerra nem paz, ao mesmo tempo que Moscovo incentivava uma
revolução bolchevique em Berlim. A revolução não aconteceu e no Inverno
de 1918 o tratado de paz acabou por ser assinado nos termos impostos
pelos alemães.
A
aparência da paz é idêntica à aparência da democracia. Os bolcheviques
não pretendiam a paz, mas tempo para, através da revolução, destituírem o
governo alemão. O resultado foi o nazismo e uma nova invasão. A
democracia que propugnavam pouco ou nada tinha a ver com democracia
liberal em que vivemos; simplesmente traduzia-se na aceitação do
decidido pelo Politburo onde os consensos eram conseguidos por coerção.
Bukharin, Zinoviev e Kamanev que o digam. Estes sofreram as agruras da
repressão embora não esqueçamos que (à semelhança de Trostky) só se
importaram com esta quando foram reprimidos e não enquanto reprimiam.
Recordar
o passado é importante porque as aparências continuam. A da paz, como
temos visto com a posição do PCP relativamente à invasão da Ucrânia pela
Rússia, mas também a relativa ao tipo de democracia que o PCP e o Bloco
de Esquerda continuam a propagar em nome do 25 de Abril. Apesar do que
estes dois partidos repetem à exaustão é importante recordar que não há
democracia nem liberdade sem eleições livres, sem a separação dos
poderes do Estado, sem liberdade de imprensa e de pensamento. Tal como
também não há democracia sem o reconhecimento que a liberdade é de cariz
individual. Que esta nasce com e para as pessoas. São estas o seu
princípio e o seu fim último. Sem respeito pelas liberdades individuais
não há Estado de Direito, não há sociedade livre digna desse nome e das
pessoas que a compõem; não há justiça nem sequer segurança. Da mesma
forma não há política de educação nem cuidados de saúde funcionais e
minimamente justos.
Há
quem acredite que foi Estaline quem deturpou o projecto comunista e
que, sem ele, o ideal marxista-leninista teria sido um sucesso. Não é
verdade. Estaline foi apenas mais violento que Lenine, Trostky e os
demais. A violência de Estaline só foi possível porque tinha as suas
bases no pensamento de Lenine e também porque num estado totalitário não
há forma de controlar o poder do mais implacável. Esse controlo só se
consegue com a separação de poderes dentro do Estado, com a democracia, a
liberdade de imprensa, de associação, de pensamento e da liberdade
económica num mercado livre. Com as liberdades que nascem da liberdade
individual. A moderação não é possível sem democracia, esta não existe
sem uma ideia de liberdade que se esvazia se não for individual, se não
se alicerçar nas pessoas. Sem o respeito pela liberdade individual
existirão dados estatísticos que nos dizem que há obra, mas uma que vale
muito pouco ou mesmo nada.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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