A política externa é uma política de Estado, devendo afirmar-se acima de ideologias ou preferências partidárias. Artigo do diplomata Rubens Barbosa, publicado pelo Estadão:
A
exemplo do governo anterior, a política externa do governo Lula da
Silva terá forte influência presidencial. Simbolicamente, a primeira
ação no exterior começou domingo, na Argentina, com o encontro do
presidente Lula com o presidente Alberto Fernández em Buenos Aires e com
a volta do Brasil à Comunidade de Estados Latino-Americanos e
Caribenhos (Celac). Com esse gesto, retoma-se uma relação normalizada
com a Argentina e o estreito contato com a região, corrigindo dois
equívocos da era Jair Bolsonaro na política externa.
As
linhas principais da política exterior, definidas pelo presidente Lula e
detalhadas pelo ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, indicam
o marco no qual o Brasil volta ao mundo com o protagonismo que se
espera de um país da nossa dimensão e com interesses nacionais próprios.
Haverá
um “enorme trabalho de reconstrução depois de um retrocesso sem
precedentes em nossa política externa pela visão ideológica limitante”.
Nesse sentido, o Itamaraty retomou as relações com a Venezuela com a
designação de um embaixador em Caracas e a reabertura dos consulados
para voltar a oferecer assistência aos brasileiros naquele país. Está
também enviando missão ao exterior para avaliar a reabertura de algumas
embaixadas na África e no Caribe. Retornou à política tradicional de
apoio à criação de dois Estados na disputa entre Israel e Palestina, com
crítica à visita do ministro da extrema direita de Israel à Esplanada
das Mesquitas, em Jerusalém. Na área ambiental, foi criada uma
secretaria sobre meio ambiente e mudança de clima, reativado o Fundo
Amazônia, com a participação da Noruega e da Alemanha, e reforçado o
compromisso de cumprir o Acordo de Paris. Voltou ao Pacto Global de
Migrações. Retificou alguns votos nas Nações Unidas, recuperando as
tradicionais posições da diplomacia nacional. Promoveu mudanças nas
principais embaixadas, efetuou mudanças na estrutura da chancelaria e
pela primeira vez uma mulher assumiu o segundo posto mais importante do
ministério e outra embaixadora irá chefiar a embaixada em Washington.
Os
acontecimentos de 8 de janeiro em Brasília mudaram a agenda inicial do
governo Lula, e o Itamaraty deve ter de focalizar também sobre os
prejuízos causados à percepção externa pelo impacto das imagens da
destruição nos prédios púbicos sobre a instabilidade política e a força
da democracia e das instituições no Brasil. O rápido controle da
situação com as medidas tomadas restabeleceu, embora precariamente, o
clima de tranquilidade, devidamente apreciada no exterior, com o apoio
ao governo brasileiro e a condenação aos atos antidemocráticos.
A
crítica aos desmandos na política externa nos primeiros dois anos do
governo anterior poderia ter sido mais dura e direta em vista dos
prejuízos para a projeção externa do Brasil, bem como poderia ter sido
reconhecida a força da instituição, apesar das dificuldades derivadas
das limitações impostas pelas restrições ideológicas presidenciais.
Foram reconstruídas pontes com a China e a Argentina, e modificadas
algumas posições nas discussões em fóruns internacionais, em especial,
no tocante ao meio ambiente e mudança de clima.
O
Itamaraty vai ter de enfrentar o desafio de buscar recuperar seu papel
central de coordenação de temas que tenham repercussão externa. Ao longo
dos últimos quatro anos, o Itamaraty perdeu espaço em temas como
comércio exterior (mesmo no Mercosul), meio ambiente e mudança de clima,
agenda de costumes, direitos humanos, entre outros. No novo governo, o
Itamaraty começa perdendo a Apex e enfrenta o desafio de tentar
coordenar as ações externas das pastas de Meio Ambiente, da Autoridade
Ambiental, Direitos Humanos, Mulheres, Igualdade Racial e Povos
Indígenas. O ministro Vieira disse ser “reconfortante saber que poderá
contar com Celso Amorim no palácio para ajudar na reconstrução do
patrimônio diplomático”. Como a nova administração vai lidar com a
questão do esvaziamento do papel do Itamaraty como principal formulador e
executor da política externa?
Falta
ainda uma referência mais clara à geopolítica global. Qual a posição em
relação ao Brics? As tensões EUA-China e a guerra na Ucrânia estão
trazendo impactos nas políticas externa, de defesa e comercial de todos
os países. Apesar da declaração de Joe Biden de que não vai pedir para
que os países escolham um lado na divisão global, não será surpresa se
lealdades começarem a ser cobradas, sobretudo se houver uma escalada
bélica e o conflito se ampliar além da Ucrânia. O Brasil tem de defender
seus valores ocidentais e preservar seus interesses asiáticos. Ao
contrário dos que acham que o Brasil terá de escolher um lado, será
importante evitar alinhamentos automáticos, como assinalado em relação
aos EUA, livre de influências ideológicas e geopolíticas. A maioria dos
países em desenvolvimento da África, América Latina e Ásia tem se
manifestado contra a divisão do mundo, apresentada como um fato
consumado. Em entrevista recente, o ministro Vieira declarou,
acertadamente, que o Brasil vai seguir o interesse nacional (político,
econômico e comercial) mantendo uma posição de independência em relação
aos dois lados. A política externa é uma política de Estado, devendo
afirmar-se acima de ideologias ou preferências partidárias.
Postado há 12 hours ago por Orlando Tambosi
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