Uma inverosimilhança aqui ou ali até pode fazer sentido, mas uma inverosimilhança que tudo permeia dificilmente o fará. O romance que Portugal nos propõe não aguenta uma leitura de uns poucos minutos. Via Observador, a crônica do professor Paulo Tunhas:
Tenho
dado comigo muitas vezes, de há algum tempo para cá, a evitar pensar
sobre Portugal. E, devo dizer, a maior parte das vezes com sucesso. Não
pareço ser, de resto, caso único. Ainda no outro dia, falando ao
telefone com um amigo, ele me contou que, tendo o filho, que vive na
Alemanha, vindo passar uma semana a Lisboa, nem por uma só vez a pátria
foi objecto das suas conversas. E podia citar outros exemplos assim.
Deve
haver uma razão para isto. Por mim, descubro-a numa analogia. É como se
Portugal se tivesse transformado num escritor medíocre, incapaz de dar à
luz um livro que não nos caia das mãos logo à segunda ou terceira
página. A cada nova obra que sai, muito publicitada em jornais, rádios e
televisões por críticos profissionais que assim ganham a vida, já
sabemos aquilo com que podemos contar: estilo péssimo e enredos
estapafúrdios povoados de personagens inverosímeis. É verdade que há um
público leitor que se satisfaz com a horrenda literatura que
quotidianamente lhe é oferecida. Mas é um público que, na sua maioria,
sofre de analfabetismo abecedário e se extasia, em consequência, com o
analfabetismo doutoral que o autor Portugal lhe oferece.
Portugal,
como autor, imita uma sociedade. E imita-a muito mal. Ao ponto de ser
difícil aos leitores saber se estamos face a uma tragédia ou a uma
comédia. O leitor não sabe se se deve rir ou comover-se. Se deve gozar
com o que lhe é contado ou entristecer-se com o seu destino. Isto, como
se calculará, mergulha o público num estado de perplexidade. Porque é de
nós mesmos que o romance fala. Devemos chorar ou rir de nós?
Lá
haver enredo, há. E as peripécias repetem-se. O assalto ao paiol de
Tancos, a destruição da serra da Estrela, a nacionalização da TAP e a
promessa recente da sua venda, as trapalhadas do ex-ministro Cabrita –
entre várias outras, de diversos tipos. Mas, face às peripécias, as
personagens parecem comportar-se como se nada tivessem a ver com elas. O
autor do romance inocenta-as inteiramente. É isso, de resto, que
baralha muito tudo. Porque, para haver tragédia, seria preciso que as
personagens dessem um sinalzinho que compreendem o que lhes acontece.
Mas tal falta por completo. O ex-ministro Azeredo Lopes declarou não
saber se tinha havido assalto ou não. A ministra Mariana Vieira da Silva
disse que daqui a dez anos a serra da Estrela estará um brinquinho. A
secretária de Estado Patrícia Gaspar falou de um algoritmo que nos
mostra que a dita serra da Estrela teve uma sorte dos diabos. Nem Costa
nem Pedro Nuno Santos se deram ao trabalho de explicar porque é que da
nacionalização da TAP se passou à proclamação da necessidade da sua
venda. O ex-ministro Cabrita não se deu conta de nada do que lhe
aconteceu – e aconteceram-lhe, como se sabe, muitas coisas. Não há mesmo
reconhecimento nenhum. Nenhuma pancada na testa a dizer: “o que é que
eu fui fazer!” Por aqui, estamos mais próximos de uma comédia do que de
uma tragédia. “Aconteceu? Não me digam!”
A
atmosfera geral é de inverosimilhança. Porque é que uma coisa acontece e
não outra? Mistério. Falta absolutamente qualquer percepção de unidade
no desenrolar dos acontecimentos. Tudo é episódico e inconsequente, sem
que o autor sinta a mínima necessidade se sugerir razões, por vagas que
sejam, para a sucessão dos factos. O romance não obedece a nenhum plano,
é perfeitamente informe. Se, de repente, o autor decidisse introduzir
nele um acontecimento excepcionalmente fantástico, como a aparição da
Virgem em plena Assembleia da República, no meio de uma reprimenda de
Augusto Santos Silva ao Chega, ninguém acharia nada de estranho na
coisa. Apesar de tudo, porque não? Dada a inverosimilhança generalizada
da obra, a aparição da Virgem arriscar-se-ia mesmo a passar despercebida
ao leitor. Uma inverosimilhança aqui ou ali até pode fazer sentido, mas
uma inverosimilhança que tudo permeia dificilmente o fará. O romance
que Portugal nos propõe não aguenta uma leitura que dure por mais de uns
poucos minutos.
As
personagens estão, é claro, à altura do enredo. Cumprem, é verdade, a
sua missão fundamental: agem. Mas o pensamento e o carácter revelados
pelas suas acções não são menos fantásticos do que o enredo. Conhecem,
em toda a história da literatura, personagem mais radicalmente
inverosímil do que a de Marcelo Rebelo de Sousa? Tentem fazer desfilar,
no vosso espírito, todas as grandes personagens romanescas que os
maiores génios literários elaboraram. Haverá alguma mais literalmente
inacreditável do que ele, no pensamento e no carácter? Eu perdi algum
tempo com o exercício e confesso que não lhe encontrei par. Querem
exemplos? É fácil: pensem, em qualquer altura, na última coisa que ele
disse, ou na última coisa que se lembrarem que ele disse. Vão ver que
serve às maravilhas, como esta sobre as vítimas de pedofilia na Igreja.
Não falha.
E
o público, como reage ele a tais enredos e personagens? Tirando os
críticos profissionais, aficionados por necessidade, e os poucos
leitores por eles engendrados, com a mais soberana das indiferenças. Não
esperem que o comum siga as paixões tradicionais do género, como o
terror de se imaginar no lugar das personagens ou qualquer piedade pelo
seu destino. Reina, pelo contrário, a apatia mais extrema. Há, apesar de
tudo, certas exigências que até o mais desprevenido cidadão faz à
ficção.
Há,
no entanto, um domínio em que o Portugal romancista mostra algum
talento, tanto na construção do enredo como na criação das personagens. É
aquele que se exerce na imitação de uma sociedade feita de crimes
pequenos e mal feitos, com choro, ciúme, facadas e sangue, baba e ranho.
Aí, Portugal, o romancista, consegue um auto-retrato eficaz. Pena é que
as suas obras no capítulo sejam apenas publicitadas sob pseudónimo na
CMTV. É pena porque há mais verosimilhança aí do que no resto da
literatura que Portugal escreve.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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