BLOG ORLANDO TAMBOSI
O menor dos incômodos neste previsível Nobel será aquilo que se identifica como escrita feminina. Literatura feminina. Quando é preciso dar um gênero à literatura, ela já encolheu. Eugénia de Vasconcellos (escritora) para o Observador:
Escrevo
à quarta-feira o texto que o Observador publica na sexta. Esta semana,
porém, escrevo-o intencionalmente um dia depois, logo após o anúncio do
prémio Nobel da Literatura e antes, penso, da imprensa portuguesa fazer o
clássico exercício laudatório, desta vez a Annie Ernaux.
Devo
confessar que na senda de Toni Morrison, e salvo raras e belas
excepções, não tenho a melhor impressão da escrita do eu, seja sob a
forma de auto-biografia ou de auto-ficção, mesmo nesta abordagem
francamente superior de Ernaux, de pretensão mais clínica,
socio-histórica, em que desloca o eu para o tempo onde essa primeira
pessoa do singular se transforma e dilui num putativo nós circunstancial
e nas suas dinâmicas. As mais internas e as externas, sempre sob o olho
multifacetado do observador-observado, do construtor-contruído: o
escritor. O mundo passa pela experiência pessoal do mundo. Da culpa
sexual à revolução sexual. Do aborto clandestino à legalização do
aborto. Dos filhos ao Alzheimer da mãe. Da dominação masculina ao
#MeToo. O projecto literário de Annie Ernaux foi e é Annie Ernaux.
Literariamente,
este processo de escavação e análise da vida através dos seus
artefactos, a triagem dos objectos e a sua classificação à luz dos
movimentos sociais e culturais que lhe servem de pretexto auto-refexivo,
seja o objecto a parte do corpo sobre a qual o amante ejacula, ou onde
encontra a lente de contacto, ou o que comeu e vomitou, não me traz
coisa alguma. E creio que será pela própria condição dessa posição de
escrita, isto é, dobrada e redobrada sobre si-mesma, a tempo inteiro.
Mas percebo que traga muito a uma maioria de leitores comprometidos
consigo próprios e com as causas da contemporaneidade. De outra forma,
não seria possível ser um sucesso de crítica e de vendas da França à
China. Não reduzo o valor documental dos mais ou menos vinte livros de
Annie Ernaux. De igual modo, também não elevo o valor desses documentos
pessoais e/ou geracionais a arte. Se o objectivo do Nobel era premiar o
feminismo através da literatura, dessem-no a Margaret Atwood, uma
grandíssima escritora que faz o pleno.
Annie
Ernaux tem uma obra de filiação beauvoiriana – se isto se pode dizer –
num crescendo para os feminismos posteriores. Às questões
existencialistas, ao individualismo, à mulher como construção social e à
desconstrução do sentido do eu e do eu sexual, somou as questões
levantadas pela geração a que pertence. A que, mesmo vinda da baixa
classe média, acede ao ensino superior e se confronta com o emprego que
não corresponde às competências académicas, nem às expectativas sociais e
económicas, a geração que se opôs ao papel tradicional da mulher e à
«tirania do homem», e a que se viu dominada por uma profunda
insatisfação pessoal. Todavia, a filiação não garante a alta literatura,
por muito que seja consensual. Pode-se fazer alta literatura com esta
filiação? Acredito que sim, apesar do solipsismo, com esta ou com
qualquer outra. Legítima ou ilegítima – não sei, no entanto, se nos dias
de hoje se voltaria a publicar Lolita…
O
menor dos incómodos neste previsível Nobel, já que o nome de Annie
Ernaux tem sido reforçado ano após ano para este prémio, será aquilo que
se identifica como escrita feminina. Literatura feminina. Um
estereótipo daquelas que são as preocupações e os interesses das
mulheres e o seu alcance. Quando é preciso dar um género à literatura,
ela já encolheu.
O
maior dos incómodos é a manutenção do establishment pós-modernista.
Meia dúzia de mediadores culturais informa uma centena de fazedores de
cultura e arte sobre quem e o que é cultura e arte. Os fazedores,
expectantes na subida ao pódio artístico e cultural, reforçam as
escolhas dos mediadores, validando-os. Esta é a herança cultural e
artística que recebemos da revolução russa conforme nos chegou pela via
francesa do marxismo cultural e dos seus pobres critérios. E é ela que
hoje domina o pensamento e as instituições europeias.
Prefiro
aos pressupostos pós-modernistas os de outro nobelizado, T. S. Eliot,
em Tradition and the Individual Talent, o seu muito recomendável ensaio
de 1919, onde o poeta redefine «tradição», conhecimento profundo da
história, arte, da literatura à pintura, por um lado, e, por outro, a
«despersonalização» da escrita. O passado, diz Eliot, deve ser alterado
pelo presente tanto quanto este deve ser dirigido por aquele.
Só assim o arco de humanidade que a obra poética e literária deve desenhar nas suas linhas, será amplo.
A autora escreve segundo a antiga ortografia
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