Seja como for, Marcia Tiburi faz anos e anos de análise. Invariavelmente a culpa é do capitalismo. Não é difícil ler a correspondência entre Marcia Tiburi e Jean Wyllys e concluir que ela é infeliz. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Giovanna
Ewbank, a mulher de Bruno Gagliasso, declarou que é demissexual, ou
seja, precisa de envolvimento emocional para querer transar. Isso faria
dela uma assexual, e, portanto, um membro da sopa de letras (LGBTQIA+)
por meio da letra A. Na verdade, isso revela apenas que Giovanna Ewbank é
uma mulher perfeitamente normal que perdeu o senso do que é
normalidade. Mulheres normais precisam de envolvimento emocional para
quererem transar. No entanto, o que a moral de maio de 68 ensina
é que todo o mundo só não sai transando que nem cachorro no cio o tempo
inteiro por recalque e opressão. Liberta, a mulher é uma cadela em cio
eterno. Se você, mulher, se desconstruiu e se libertou, mas ainda assim
não sente vontade de dar para todo o mundo, isso só pode significar que
você tem alguma identidade desviante. É uma assexual, afinal de contas.
Pois
bem. A mais nova assexual do pedaço, como descobri lendo O que não se
pode dizer, é Marcia Tiburi. Ela precisou “de alguns anos de análise
para entender que não teria que viver com ninguém e que o desejo sexual
não precisa ser obrigatório, embora a ordem simbólica e imaginária nos
convide a isso. […] Adorno falava de ‘amor não regulamentado’, e eu
gosto dessa ideia. Mas já não tenho tempo para isso. Entre ler um livro e
fazer sexo com alguém, prefiro ler um livro” (p. 249). O senso comum
diria que os homens são mais ou menos como os livros, a vontade de ler
um livro varia conforme o livro, e a vontade de fazer sexo varia
conforme o homem. Entre fazer sexo casual com um desconhecido e ler um
bom livro, as mulheres normais preferem mil vezes ler um bom livro.
Dá para ser feliz assim?
Marcia
Tiburi não admitirá jamais que é apenas uma mulher normal no que
concerne à própria sexualidade. Tal como Giovanna Ewbank (e, antes dela,
Bruna Marquezine por um período), a filósofa descobriu uma nova
identidade: “A propósito, descobri que na escala LBTQIA+, sou ‘A’ de
assexual, e isso quer dizer que provavelmente vou começar uma transição
para fora do gênero. Para fora do sexo como prática, eu já estou
avançada (gargalhadas). Eu deslizei para fora do dispositivo sexual sem
muito esforço. Sobre gênero, eu realmente espero me livrar de todos os
signos do gênero standard. Na nossa geração, nada disso era fácil.
Continua não sendo. Contudo, vivemos um momento de descobertas e
liberdade de autoinvenção que não vai parar” (p. 243).
Na
geração dela, de fato, era mais difícil. Hoje qualquer garota
progressista que ache que não é uma boa se portar como uma cadela no cio
pode concluir que é uma demissexual, portanto uma LGBTQIA+, e assim até
esperar o casamento para fazer sexo. Como Marcia Tiburi nasceu em 1970,
ela foi uma adolescente que acreditou ser obrigação da mulher perder a
virgindade. Assim, como contou em entrevista
à IstoÉ Gente, aos 18 anos ela “já era feminista e tive uma história
com um garoto, que durou uma noite e nem me lembro o nome dele. Um dia,
resolvi transar com ele com o único objetivo de não ser mais virgem, sem
nenhum romantismo”. É uma situação complicada em que a mulher, escrava
de uma ideia, se submete a uma situação degradante e não é capaz de dar um consentimento real.
O homem tem diante de si uma autodeclarada empoderada, liberta, e não
faz a menor ideia de que a mulher está transando por obrigação. Depois
ela se sente abusada. De quem é a culpa?
Culpa do capitalismo
Não
é difícil ler a correspondência entre Marcia Tiburi e Jean Wyllys e
concluir que ela é infeliz. Volta e meia fala “se eu ficar velha”, da
falta de vontade de viver etc. Também se vê que o meio deles é cheio de
gente deprimida e drogada. Ela fica surpresa por perguntarem a ela qual
maconha ela fuma, pois, diz ela, “mal sabem que eu não fumo, mas adoro
álcool, embora não tenha resistência física para muita coisa” (p. 216). (Noutra ocasião,
analisamos uma matéria da Folha que mostrava com bastante clareza que a
beautiful people procura nas drogas tratamento psiquiátrico.) Durante a
pandemia, ela e Jean Wyllys ficam alarmados com a quantidade de amigos e
conhecidos que se suicidaram. Não sei o leitor, mas no meu círculo
ninguém se matou. O alarme com os suicídios só me chegou através de um
amigo formado em psicologia que conversa com um amigo que clinica e
estava perdendo pacientes. Se fizéssemos uma pesquisa sobre pacientes de
psicólogos, será que descobriríamos a predominância de uma orientação
política? Quem vai mais a psicólogo, conservador ou progressista? Ou dá
no mesmo?
Seja
como for, Marcia Tiburi faz anos e anos de análise. Invariavelmente a
culpa é do capitalismo. Um tempo atrás, repercutiu bastante uma entrevista ao Zero Hora
em que declarava que não ouvia mais música depois de analisar o sistema
capitalista de opressões de classes que agia por detrás do gosto
musical. No livro, descobrimos que Marcia adora estética, que sempre
gostou muito de arte (música inclusa) e que ficou arrasada quando a
filha foi perdendo a audição. Em decorrência disso, parou de ouvir
música – mas mantém a ilusão de que sua “desconstrução” da música não é
apenas uma racionalização para se convencer de que a filha não estava
perdendo nada de valor ao ficar surda.
Já
para o fim do livro, em uma de suas cartas com jeitão meio de suicida,
diz: “Eu perdi a poesia da vida, que é o que realmente me emociona. Não
gosto do culto capitalista das emoções” (p. 251). Em toda a sua vida,
Marcia aprendeu muito bem a fazer uma coisa: pegar todas as suas
angústias, dar um jeito de transformá-la em problemas impessoais e
culpar o capitalismo. O capitalismo faz a filha dela perder uma coisa
valiosa – a música –, e não a fortuna. Antes que se fale de dinheiro,
friso que tenho em mente a fortuna que tem como antônimo o infortúnio,
cantada pelos medievais assim: “O Fortuna/
velut luna/ statu variabilis/ semper crescis/ aut decrescis”; “Ó,
Fortuna! Como a lua, de estado variável, sempre cresces ou decresces”. E
essa música só ganhou uma melodia dramática com Carl Orff (1895 –
1982); as versões reconstruídas com base na precária notação medieval são bem mais serenas.
Uma exceção
Outro
assunto muito discutido com o seu psicanalista é sua origem italiana,
que faria dela uma espécie de judia errante por não ter raízes bastantes
no Brasil e agora. Ela é do nordeste do Rio Grande do Sul e Vacaria
(sua cidade natal) fica na divisa com Santa Catarina. É uma área cheia
daquelas populações rurais de origem europeia conhecidas no Sul como “colonos”.
Até onde eu pude mapear, a designação “colono” é bem comum no Sul,
ficando de fora só o sul do Rio Grande do Sul, que não passou por esse
processo de colonização, e o termo “colono” designa o invasor do MST. No
geral, porém, pode-se afirmar que “colono” é um termo bastante
conhecido entre os sulistas dos três estados, e que por muito tempo teve
conotação pejorativa nos centros urbanos. Na cidade grande, o colono
era alvo de discriminação; era tido por um pobretão da roça. Na primeira
cartilha politicamente correta do PT, “colono” aparecia como um termo a
ser abolido como forma de racismo contra brancos – que eles não negavam
à época. No entanto, hoje há muitos colonos bem sucedidos que se
orgulham de suas origens rurais, e o preconceito contra o colono caiu.
Marcia
Tiburi em momento algum usa a palava colono; no entanto, usa o léxico
bastante peculiar dos colonos e diz que a mãe dela é “brasileira”,
querendo com isso dizer que não é colona. O pai é “italiano”, ou seja,
não um homem nascido na Itália, mas sim um colono italiano, por oposição
ao colono alemão, polonês ou russo.
Num
excepcional momento de autocrítica, ela menciona que odeia o Natal
talvez por sua família ser muito pobre e os pais nunca terem tido
dinheiro para comprar presentes para ela. Mas ela continua achando o
Natal mau mesmo assim, porque o Natal é capitalista. Como boa colona
batalhadora, porém, Marcia preza pelos estudos e vai jovem para a cidade
grande estudar. Quem nasceu em 70 em Vacaria ainda deve ter pego muito
preconceito contra colono.
Assim,
se há uma única coisa em que ela não conseguiu usar o capitalismo para
abafar, é a insatisfação com a condição de colona. Ser judeu é muito
mais chique, então ela inventa que os antepassados dela vieram numa
espécie de exílio para o Brasil – quando na verdade eles eram miseráveis
que vieram aqui fazer a vida no próprio pedaço de chão, e conseguiram. O
descendente do imigrante que chegou pobre costuma valorizar as próprias
conquistas, em vez de se vitimizar.
Aflição com a direita
Marcia
Tiburi quer ser chique e de elite. Ela é uma “judia errante” em Paris,
não uma colona que subiu na vida graças ao trabalho e estudos. Ela fazia
sexo só porque noblesse oblige (ao menos desde 68), não por motivos que
pudessem ser tachados de burgueses. Nisso tudo, há um senso de
autoimportância muito errado. Não há nada de errado em ser uma self made
woman, e não existe norma sensata que obrigue uma mulher livre a fazer
sexo a despeito da própria vontade. Ela poderia facilmente ser uma
pessoa feliz caso não fosse guiada por ideias tão erradas.
A
sua auto-obsessão agora se dirige para a “perseguição” que sofre no
Brasil. Ela crê que seria a próxima Marielle caso permanecesse no
Brasil, e fala do MBL de um jeito que causa dúvidas quanto à sua
sanidade. No frigir dos ovos, ela acha que pode morrer por causa do MBL;
e creio que só não tenha escrito com todas as letras que ela teme que
Kim Kataguiri a assassine por medo de processo. E se o próprio Kim não a
assassinar, as fake news geradas pelo MBL poderiam levar ao seu
assassinato. Por isso mesmo pedira a Jean Wyllys um advogado para
processar todo o mundo que use a sua imagem, mas infelizmente o advogado
era um agente do heteropatriarcapitalismo (ou algo assim) e disse que
ela perderia o processo por ser uma pessoa pública. Até o ex-companheiro
dela, juiz, participou desse conluio e desaconselhou a processar. Os
advogados também a desaconselharam quando ela quis se filiar a um
partido de extrema-direita. Ela faria isso só para dar tela azul na
direita.
Jean
Wyllys faz as vezes de voz da sensatez no livro. Uma hora ela diz que
queria poder dizer que sente banzo, mas é errado, porque banzo é uma
palavra africana dos escravizados. Jean diz que pode e manda ela parar
de policiar a língua. Outra hora ela diz que tem que passar a usar
“amigues” com mais frequência, Jean repete que não quer ser policiado.
Num momento cômico, ela fica perplexa porque o Kindle sugeriu a ela que
lesse um livro de Stefan Zweig, depois de eles conversarem muito sobre
Stefan Zweig por e-mail. Ela atribuiu isso à ação sobrenatural de Exu;
Jean explicou que são os algoritmos. Ambos falam mal de quem usa a
expressão “identitarismo” e garantem que tudo não passa de vitimismo de
homens brancos cis hétero. Tirando a pandemia, a única polêmica do
noticiário brasileiro que ocupou os dois foi o artigo de Risério na Folha sobre o racismo de negros contra brancos.
Jean sugere que Marcia use o espaço para explicar o que ela quis dizer
com "lógica do assalto", uma fala que teriam deturpado e usado contra
ela. Marcia não toca mais no assunto.
Ao
cabo, faço votos de que Marcia Tiburi volte para Vacaria e tome conta
da mãe, que está doente e sem uma perna. Vacaria tem 66 mil habitantes,
ninguém terá esperanças de fazer mal a ela e permanecer em anonimato.
Além disso, lá ela terá o respeito de filha da Dona Fulana, irmã do Seu
Sicrano etc. Será uma pessoa de carne e osso e com família em primeiro
lugar, em vez de um meme da internet, eternamente exposta a tomates
virtuais. Aposto que terá mais paz no Brasil no interior e fora da
internet do que em Paris, no meio dos drogados da beautiful people e sob
os holofotes das redes sociais.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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