Vença quem vencer o segundo turno, uma parte dos brasileiros não vai desaparecer com suas crenças e valores. João Pereira Coutinho para a FSP:
O mundo reage às eleições no Brasil. Eu sorrio. Sorriso pequeno, amarelo, quase envergonhado. Quer um exemplo?
Na
revista New Statesman, o colunista Jeremy Cliffe lamenta: quem pensava
que a pandemia seria a sepultura dos líderes populistas, errou feio.
Num país onde 700 mil pessoas morreram com o vírus e onde Jair Bolsonaro foi universalmente aclamado como um incompetente na matéria, como explicar que Lula não tenha vencido logo no primeiro turno?
Enfim.
Deixemos de lado a questão mais óbvia: se a pandemia mostrou a
incompetência dos líderes populistas, as consequências econômicas e
sociais da pandemia podem ser um novo bálsamo para esse tipo de
lideranças —como, aliás, escrevi nesta Folha em plena peste.
Mas
a pergunta de Cliffe reproduz, na perfeição, um velho preconceito
progressista que corrói qualquer análise sobre o chamado populismo, no
Brasil ou fora.
É
a ideia de que as eleições são um assunto racionalista, ou seja, dentro
dos parâmetros que o próprio progressista estabelece "a priori" como
racionais.
O cidadão, meditando profundamente sobre os candidatos, só pode votar como um progressista votaria.
Nenhum estudo sério confirma essas fantasias. Eleições são como um jogo de futebol —questão emocional, passional, às vezes selvática. Você não abandona seu time só porque ele perdeu alguns jogos.
Há
razões que a razão progressista desconhece, eis o ponto. Creio que
foram Roger Eatwell e Matthew Goodwin, no seu "National Populism", quem
primeiro analisou esse fenómeno: para os progressistas, quem vota em Donald Trump (ou Bolsonaro, acrescento eu) está votando contra algo, não a favor.
É sempre um voto negativo, nunca substancial. Um voto de protesto —contra o sistema, a corrupção etc.—porque
ninguém, em são juízo, pode sustentar posições conservadoras ou
reacionárias (não são a mesma coisa) de forma honesta e autêntica.
Uma
vez mais, nenhum estudo sério confirma essas novas fantasias. No caso
de Trump, os eleitores escolheram o Donald em 2016 porque se reviram nos
valores que ele dizia professar. Os eleitores queriam mesmo menos
imigração, fronteiras mais seguras, mais policiamento nas ruas etc.
Como
relembram Eatwell e Goodwin, oito em cada dez eleitores de Trump
concordavam com a construção do famoso muro no México (que Joe Biden
continua a construir no Arizona, só para lembrar aos distraídos).
O
Brasil não é exceção. O voto em Bolsonaro não é apenas um voto
antipetista (a explicação clássica de 2018). É um voto convicto e cada
vez mais crescente daqueles para quem Deus, a pátria e a família são a
estrutura ética e política da comunidade.
Moral da história?
Vença
quem vencer o segundo turno, metade dos brasileiros não vai desaparecer
da paisagem com suas crenças e valores. Continuará respirando, falando,
discutindo, convencendo. Que fazer?
A
pergunta não é nova. É até bem velha e remonta aos inícios da
democracia liberal: como governar sobre uma diversidade de opiniões e
concepções de vida, algumas bem radicais e insalubres, de forma a manter
uma república livre?
James
Madison, que se ocupou do assunto no "Federalista", deu duas hipóteses:
é possível tentar remover as causas das facções; ou, então, controlar
os seus efeitos.
Remover
as causas das facções significa destruir a liberdade de opinião e de
crença —ou, pior, obrigar todo mundo a pensar da mesma forma. Dois
caminhos que terminam na tirania.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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