BLOG ORLANDO TAMBOSI
"Abelhas Cinzentas” é o primeiro livro do escritor traduzido em português. Em entrevista ao Observador, Kurkov fala de um país mais forte, da sua "maravilhosa" Kiev e explica como é ser ucraniano e escrever em russo:
Antes
de viajar para Berlim, na Alemanha, e regressar à Ucrânia, de carro,
depois de meses fora do país, o escritor ucraniano Andrei Kurkov esteve
em Lisboa a apresentar o seu novo romance Abelhas Cinzentas. Pela
primeira vez traduzido em Portugal, o autor de 61 anos, nascido em São
Petersburgo, nos tempos da União Soviética, tornou-se nas últimas duas
décadas um dos mais destacados autores ucranianos contemporâneos,
traduzido em mais de 40 línguas. A obra que tem produzido mistura um
humor tenaz e de sátira com uma crítica e análise microscópica à
realidade pós-soviética. Pode dizer-se que é um manifesto contra a
nostalgia, mas que não deixa de nos dar, através desse elemento, uma
leitura contemporânea sobre os conflitos que têm surgido no leste
europeu e na tensão entre Rússia e Ucrânia.
O
seu romance é, aliás, mostra disso mesmo: narra a história de Sergey
Sergeyich, um apicultor que vive numa aldeia na região do Donbass, de
onde tudo desertou, entre pessoas, gás, eletricidade, correios ou a mais
elementar loja de mantimentos. Uma realidade ficcional, baseada na
veracidade do que ali sucede desde 2014, da anexação da Crimeia e do
início dos conflitos entre separatistas, ucranianos e russos. Volvidos
apenas alguns anos, a história parece tomar dimensões visionárias. A
guerra entre os dois países escalou e o mundo voltou atenções para uma
realidade presente, mas silenciada. E a vida de muitas pessoas tornou-se
pública aos olhos de todos. Na história deste apicultor, entre o
Donbass e a Crimeia, para onde decide viajar no verão com as abelhas,
encontra-se uma zona “cinzenta” de conflito permanente, onde a apatia
parece ter tomado conta daqueles que ainda ali permanecem.
A
partir deste romance, Kurkov esteve à conversa com o Observador e falou
do atual conflito, da possível escalada e do papel que desempenha
enquanto escritor, mais do que nunca ameaçado. Acredita que a guerra
está a moldar um país que tantas vezes criticou no passado pela sua
corrupção e ebulição permanente. “Estão a construir uma nação adequada,
que está pronta para se defender.” Regressa com esperança em dias
melhores à Ucrânia, que diz ser hoje “um país incrível”, “cheio de humor
e de grandes pessoas.”
O
que o levou a escrever este livro em 2017, ambientado no Donbass e
naquilo a que chama “zona cinzenta”, onde também se inclui a Crimeia?
Na
verdade, não tencionava escrever este livro, mas, desde o início da
guerra no Donbass, tivemos muitos refugiados oriundos daquela região em
Kiev, incluindo homens de negócios. Mas, claro, eles tinham os seus
próprios apartamentos e casas à volta de Kiev, porque investiram em
propriedades. É uma espécie de tradição. E comecei a encontrar estas
pessoas, em apartamentos de amigos, para diferentes jantares e festas.
Num destes convívios, estava um jovem de Donetsk, que abriu um pequeno
café em Kiev, algures longe do centro. Disse-me que conduzia uma vez por
mês quase até à linha da frente, para visitar uma aldeia onde restam
apenas sete famílias. Onde não têm eletricidade, gás, correio ou
qualquer tipo de infraestrutura.
Tal qual o ambiente que descreve inicialmente no seu livro.
São
zonas onde parece que tudo desapareceu. Não há autoridades. Este jovem
traz-lhes medicamentos e o que lhe pedem. Em troca, dão-lhe alguns
pickles e vegetais que cultivam. Percebi que ele estava a falar da zona
cinzenta, que se virmos no mapa de guerra, está a cerca de 400
quilómetros da frente de batalha. Nestas zonas cinzentas existiam
milhares de pessoas a viver nestas aldeias e vilas abandonadas, sem
abastecimento, sem acesso à saúde e sem polícia. Decidi escrever sobre
elas porque nessa altura já tínhamos mais de 200 livros sobre a guerra,
mas todos os livros eram sobre soldados a lutar.
Diários de guerra, portanto.
Tudo tinha a ver com a guerra, mas não com os civis que foram apanhados no meio do conflito.
E decidiu por isso visitar estas zonas.
Fui
três vezes à zona de guerra, e uma vez fui quase até à linha da frente,
depois de Donetsk, perto da fronteira com a Rússia. Isto foi em 2015.
Que tipo de pesquisa fez e que realidade conheceu?
Estive
a tirar fotografias, a falar com soldados e com a população local.
Ainda regressei mais duas vezes. Mas como já tinha estado no Donbass
antes da guerra, por diversas vezes, sabia como é que as pessoas
realmente pensam, qual é a mentalidade. Também por isso foi bastante
fácil escrever este livro, porque conhecia a realidade local.
Ao
lermos as primeiras páginas do romance, podíamos pensar que se passa em
1943, a meio da Segunda Guerra Mundial. Aldeias e vilas dizimadas, onde
não há mantimentos e de onde praticamente todos fugiram.
A
verdade é que esta guerra pertence ao passado. Esta é a típica guerra
do século XX, com a destruição de cidades, da vida dos civis, com o
bombardeamento de prédios altos com blocos de apartamentos e de zonas
residenciais. Não quer dizer que haja uma guerra diferente no século
XXI. A guerra é má de qualquer forma, mas a crueldade desta guerra
remete-nos para o passado.
O
corpo de um soldado no meio da neve, intrusos e estranhos que chegam à
aldeia, uma granada desaparecida, as placas de rua que nos remetem para a
época soviética: detalhes para um ponto de vista mais amplo. De que
forma é que tudo isto é simbólico nos seus romances?
Para
mim, os detalhes são sempre mais importantes do que a imagem geral,
porque criam um mosaico, a imagem em 3D da vida real. Quando lemos
artigos noticiosos ou informativos, lemos, geralmente, sobre grandes
factos. As coisas pequenas – os tais detalhes – permanecem invisíveis.
Na literatura pode-se mostrar pequenas coisas, pequenos detalhes, e
através destes dar-se uma imagem mais ampla.
Mostrar,
por exemplo, a vida simples de Sergey Sergeyich, o protagonista, que
parece não ter qualquer relação com esta guerra… sente alguma ligação
sua a esta personagem?
Não,
de todo, embora o compreenda. Não me relaciono, porque ele é muito
diferente de mim. Ele é inculto, politicamente passivo, mas é
naturalmente gentil. Ele sabe o que é o bom e o mau. Sabe que se alguém
está a ter problemas, deve ajudar. E ele é apenas um ser humano normal
que se encontra nesta situação, quando o mundo a que ele está habituado
já não existe. E é o representante de duas mentalidades em simultâneo: a
mentalidade pós-soviética, uma mentalidade construída num lugar onde se
pensa que não se tem voz e em que não se pode mudar nada; e ao mesmo
tempo, ele é ucraniano porque é teimoso e já tomou uma decisão. Vai para
o campo para cobrir o corpo de um soldado com gelo, quer levar abelhas
para a Crimeia, apesar do perigo. E preocupa-se mesmo com o seu inimigo
de infância, Pashka, e mesmo quando viaja está a pensar e preocupado com
ele.
Por oposição, Pashka já não é tão neutral em relação aos conflitos?
Não,
ele não é neutro. É um conformista, mas muito flexível. Também é pouco
instruído, mas é uma raposa que consegue cheirar, que sabe o que é
melhor fazer e o que é mais rentável.
Não se importa quem com quem ganha a guerra.
Não,
porque no Donbass o patriotismo local era maior do que qualquer tipo de
patriotismo nacional. Por isso, muitas daquelas pessoas nunca se
sentiram ucranianos a 100%. Tinham passaportes ucranianos, mas estavam a
ver televisão russa e recebiam notícias sobre a Ucrânia a partir dos
noticiários russos.
No romance, as personagens ainda vêm televisão russa.
Sim
e acreditam realmente que o Donbass é diferente e um território
separado. Não viajaram muito, exceto os jovens de Donetsk. E é por isso
que, na verdade, quando a guerra chegou, tiveram de escolher para onde
fugir – fugir ou tornar-se refugiados –, mas não por causa das suas
ideias políticas. Eles não tinham ideias políticas. Se estivessem perto
da fronteira russa, iriam para a Rússia. Se estivessem perto da região
de Karkhiv, iriam para a Ucrânia.
Acabamos por nos dar conta destas diferentes “Ucrânias”.
Exatamente.
Queria mostrar três Ucrânia diferentes durante esta guerra: uma Ucrânia
ocupada; uma Ucrânia anexada, onde não houve luta e resistência; e uma
Ucrânia livre, onde se resiste diariamente.
Na
introdução ao livro escreve que esta guerra torna as pessoas apáticas
em relação ao conflito. Pessoas que querem apenas continuar as suas
vidas, ainda que estejam, de certa forma, desprovidas de sentido.
Concorda com isso?
Bem,
depende de pessoa para pessoa. Claro que a sensação de vida se perde
quando se é deslocado, quando se está desligado da vida anterior.
Torna-se um nómada. É preciso sobreviver. A sua principal ambição é, na
verdade, a sobrevivência física. Por isso esquecemo-nos dos ideais
espirituais ou políticos. Querem, antes de mais, estar vivos e esperar
que tudo acabe. Isto não significa que uma pessoa se torne apática, mas
torna-se politicamente indiferente e antissocial facilmente. Quando há
muitas pessoas em necessidade, pedem ajuda e acham que devem ser
ajudadas. Não pensam que até podem ajudar alguém. Estão atomizadas e
separadas da vida quotidiana.
Ao
ponto de, tal como vemos no romance, um soldado levar ao protagonista
uma granada para este ter em casa. Há uma certa banalidade do mal nisto?
O mal tem faces muitos diferentes.
Refiro-me ao absurdo que é um simples apicultor receber uma granada para se proteger ou tomar uma ação.
Bem,
parece um absurdo quando se fala à distância. Conheço veteranos de
guerra e mais do que um deu-me cartuchos para uma espingarda de atirador
furtivo. Eu não os queria. Ele disse: “Não, fica com eles. Talvez lhe
possam ser úteis no futuro”. É claro que os enterrei, bem como a
espingarda. Mas a verdade é que a muitos voluntários, que foram no
início da guerra para a linha da frente, foram-lhes dadas granadas no
caso de estarem no caminho de regresso e fossem atacados… era uma forma
de se protegerem.
Mas
concorda que este tipo de períodos, períodos cinzentos, por exemplo,
transformam a condição humana de forma muitas vezes irreversível.
O
mal é a guerra e as consequências de qualquer guerra são terríveis
porque quando termina, o conflito permanece na cabeça das pessoas, no
seu comportamento e na sua maneira de confiar ou de não confiar em mais
ninguém à sua volta. Além disso, psicologicamente as pessoas depois da
guerra, estão preparadas para o facto de que esta pode regressar. Por
isso, começam a armazenar alimentos, escondem armas, fazem pequenos
abrigos debaixo das suas casas, porque viram que a guerra é real. E se
for real, pode repetir-se.
Sem
abelhas, a biodiversidade não podia existir. Mas neste livro também
demonstra como este apicultor trata das abelhas como se filhos se
tratassem. As abelhas são uma metáfora para o ucraniano?
São,
em muitas camadas, uma metáfora. Porque as abelhas existiam antes das
pessoas começarem a fazer colmeias. O mel estava presente na natureza
antes do pão. As abelhas são a sociedade organizada mais antiga que
produz algo.
Até chega a fazer uma analogia como o comunismo.
São
um exemplo de harmonia e de trabalho comunitário árduo. É por isso que,
para o Sergey, são também importantes porque são uma lembrança de que
as abelhas são melhores que as pessoas.
Nasceu na Rússia em 1961 e ainda criança vai viver para a Ucrânia. Qual é a sua identidade como escritor?
Sou
um escritor ucraniano de origem russa. Escrevo na minha língua materna.
Não é aceite por todos muito bem, mas é aceite pela maioria. Mas não
tenho problemas com a minha identidade. Algumas pessoas têm problemas
com a minha identidade e comigo, mas isso não importa.
Há muitos escritores russos que nasceram na Ucrânia, como Bulgakov ou Gogol. Eles fazem parte da literatura ucraniana?
Bulgakov
é agora, na realidade, um nome que é amaldiçoado por muitos
intelectuais ucranianos porque não apoiava os independentistas
ucranianos. Era, pode dizer-se, um liberal russo, nascido na Ucrânia,
que nunca teve qualquer simpatia por movimentos nacionalistas, porque
era um cidadão do Império. Gogol é uma história diferente. É um escritor
brilhante que escreveu em russo, porque na realidade a impressão de
livros em ucraniano era regularmente proibida. E ele trouxe para a
língua russa dezenas de palavras ucranianas. Com os seus romances,
tornou o ucraniano uma moda entre a aristocracia de São Petersburgo.
Numa altura em que para esta aristocracia russa, ter um servente
ucraniano era algo encantador, como ter um animal de estimação. E esta
arrogância existiu realmente, definitivamente até 1917, mas por vezes
podia-se ver a mesma arrogância em Moscovo, durante a época soviética.
No caso da não-ficção, opta por escrever em ucraniano.
Não
é a minha língua materna. Aprendi-a quando tinha 14, 15 anos. Nunca
conhecerei o ucraniano ao nível de alguém que nasceu numa família que
fala ucraniano. Com a língua russa, posso brincar, posso inventar novas
palavras, novas estruturas e sinto-me livre. E na verdade, como disse, a
língua russa faz parte da minha identidade. Mas para mim, a minha
identidade é a história ucraniana, a cultura ucraniana e a língua russa.
Sente
que a guerra atual muda a sua carreira como escritor, na medida em que
alguns dos seus livros estão a receber mais atenção em alguns países
como Portugal, onde é agora traduzido?
Podemos
dizer que qualquer escritor ucraniano que seja publicado no estrangeiro
recebe agora muito mais atenção do que antes, por causa da guerra.
Infelizmente, a guerra é a publicidade mais enriquecedora que um
escritor pode ter. Mas eu preferia não ter esta publicidade. Os meus
livros foram traduzidos antes da guerra em 42 línguas. E esta guerra não
está a funcionar para mim. Estou a trabalhar contra esta guerra porque
não escrevo ficção. Agora só escrevo artigos e ensaios sobre a guerra.
Sente um bloqueio para escrever ficção?
Sim.
Bem, é impossível porque não me consigo alhear da realidade. Para
escrever um romance é preciso ser capaz de esquecer o que se passa fora
do nosso quarto.
Começou
a escrever em meados dos anos oitenta, mesmo durante o período
soviético. Mas é sobretudo a realidade pós-soviética que o moldou como
escritor?
Eu
gostava de ser escritor inédito na época soviética porque na altura a
censura não permitia que os meus livros fossem publicados. Ao mesmo
tempo, fui convidado em toda a União Soviética para leituras
clandestinas. Viajei graças aos meus manuscritos e os meus manuscritos
circularam ilegalmente na União Soviética.
Assemelha-se aos casos de escritores como Joseph Brodsky e Sergei Dovlatov, que tiveram mesmo de sair da União Soviética.
Verdade,
mas no meu caso gostava disso porque fui aventureiro e rebelde. E
depois as pessoas pensavam mesmo que se eu não era publicado, era porque
era bom. Após o colapso da União Soviética, a situação mudou e sofremos
com a crise económica. Cheguei a pedir emprestados 16 mil dólares para
comprar papel e para publicar os meus próprios livros. Além disso, a
primeira vez que fui reconhecido como escritor foi em Inglaterra, não na
União Soviética.
Foi militar e trabalhou sobretudo como guarda prisional. Essa experiência deu-lhe outra visão sobre o sistema soviético?
Estive
no exército de 1985 a 1987, no período em que acontece o desastre de
Chernobyl. Foi um período de aprendizagem útil. Por vezes não foi fácil,
mas foi extremamente interessante e útil para um escritor ter esta
experiência. Porque tinha de lidar com os prisioneiros, com os oficiais,
que eram responsáveis pela prisão e com os soldados. Estava a servir em
Odessa, na Ucrânia e no nosso destacamento tínhamos 100 prisioneiros,
95 deles eram muçulmanos do Cáucaso. A ideia de Estaline era enviá-los
para matar ucranianos. Na prisão, os soldados sabiam que se um
prisioneiro tentasse escapar e eles o matassem ou o ferissem, ganhavam
10 dias de férias em casa. Alguns dos soldados estavam à espera que
estes prisioneiros tentassem fugir só para terem essa regalia.
Isso é a banalidade do mal.
É
a banalidade do mal, mas num sistema patrocinado pelo Estado, criado
pelo governo soviético. E há muitos aspetos como este que tentei
transpor num romance sobre isto, mas não consegui terminá-lo. Estive
envolvido em alguns conflitos com soldados, mas já era muito mais velho e
tinha uma visão completamente diferente sobre o que estava a acontecer.
O
romancista norte-americano Norman Mailer escreveu uma vez: “a história
como romance, o romance como história”. Os seus romances são também um
produto da história e do que está a acontecer?
Penso
que a verdadeira história está escrita em romances e não em livros de
história. O material para um romance está escrito em livros de não
ficção. Mas a história como uma coleção de factos nunca funciona. Não
cria a sensação de que se compreende o que estava a acontecer. Na
história, não há ser humano. Há nomes, apelidos, datas de nascimento e
de morte. Mas não se sabe nada sobre estes nomes. E a história humana só
pode ser criada pela literatura.
A
apatia, a realidade pós-apocalíptica e violência estão nos seus
romances. A literatura contemporânea não consegue fugir desta realidade?
Bem,
depende. Depende, porque podemos encontrar uma história que não terá
qualquer violência e que continuará a ser replicável. Os escritores
preferem encontrar histórias com conflitos. E quanto maior for o
conflito, melhor se torna o romance. Posso escrever uma história doce,
de amor, que será lida por milhões de pessoas, mas que será uma pastilha
elástica com tranquilizante no seu interior para os leitores. O meu
ponto principal é que um escritor deve provocar o leitor a
interrogar-se, a repensar as suas próprias crenças e princípios.
Na
década de 1990, escreveu A Morte e o Pinguim, que também vai ser
publicado em Portugal. Nesse livro criticava a corrupção na Ucrânia.
Duas décadas depois, este romance é quase uma defesa ao espírito de
resistência do país. O que mudou neste arco temporal?
Vivi
em diferentes Ucrânias. Vivi numa Ucrânia totalmente criminalizada,
governada por criminosos, onde era perigoso andar nas ruas. Vivi numa
Ucrânia onde na realidade os serviços secretos eram organizados entre
diferentes grupos criminosos, que se matassem uns aos outros, e depois
os líderes fugiam. Vivi numa Ucrânia onde os criminosos se estavam a
tornar políticos e depois a tornarem-se homens de negócios legais. Na
verdade, as pessoas mais ricas da Ucrânia hoje eram criminosos nos anos
90. Agora vivo numa Ucrânia onde existe uma sociedade civil muito forte.
Onde existe uma enorme comunidade de veteranos de guerra do Donbass,
que estavam na realidade a organizar as suas vida, sendo que muitos
deles se tornaram empresários e começaram a defender-se uns aos outros
de funcionários corruptos e da máfia.
Como é que isso afeta uma pessoa, o facto de viver num país que mudou tanto em 20 anos e continua em pé de guerra?
É
típico da Ucrânia. A Ucrânia é uma sociedade em ebulição do século XVI.
Não pode permanecer estável porque há tantos indivíduos que têm
interesses diferentes e que têm opiniões diferentes.
Isso é uma das falhas que ainda se pode apontar ao país?
Pode
dizer-se que isto é um problema, mas os ucranianos estão habituados a
ter estes problemas. A Ucrânia tem 400 partidos políticos, porque cada
ucraniano que quer entrar na política cria o seu próprio partido. É um
país de tolerância, porque sem tolerância estaria em guerra civil. Mas é
difícil ser-se político neste país, porque os ucranianos elegem
efetivamente presidentes para os odiar. Elegem alguém que será culpado
de tudo o que estiver a correr mal no país.
Na
introdução ao livro, datada de 2020 escreve: “O objetivo de Putin é
simples: uma Ucrânia em guerra permanente na sua região leste nunca será
completamente acolhida na Europa ou no resto do mundo”. Esperava que
acontecesse esta escalada um ano depois destas palavras?
Não. Não a podia imaginar. Imaginava uma possível escalada no Donbass, mas não esta guerra.
Mantém
alguma esperança para o presente? À data em que estamos a falar,
noticiam-se possíveis avanços de armas nucleares enviadas pela Rússia
para território ucraniano.
Tenho
esperanças porque os ucranianos não são fatalistas. Têm sempre
esperança e mesmo na situação mais desesperada sabem como sobreviver. Os
ucranianos sobreviveram através da fome, através de deportações em
massa para a Sibéria. Os ucranianos sobreviveram efetivamente a muitos
problemas no século XIX e XX. Sobreviverão. Mas a motivação dos
ucranianos para defender o seu país é enorme. E os russos não estão
motivados. O primeiro exército, que está agora destruído, de soldados
contratados, foram para o exército russo para ganhar dinheiro e para
comprar uma mota. Não queriam ser mortos nem ser heróis de guerra.
Disse noutra entrevista que a rendição seria o fim da Ucrânia?
Com rendição não há Ucrânia. Simples.
O Presidente Zelensky está a tomar as decisões certas?
Neste momento? Sim. Ele é muito mais eficiente como Presidente agora do que era antes da guerra. Mudou numa escala de 180 graus.
Regressando ao seu romance. Alguns críticos na Ucrânia dizem que é insuficientemente patriótico. Como vê estas críticas?
Não
me interessam. Fui acusado de que se trata de um romance sobre
separatistas e não sobre ucranianos… Os ucranianos estão radicalizados.
Estão à procura de inimigos dentro da sociedade. E se alguém não é
suficientemente patriota, ou não é pelo menos superficialmente patriota,
torna-se aos seus olhos um inimigo.
Com
o que sucedeu a Salman Rushdie, vemos como são muitos os escritores
novamente ameaçados pelo que escrevem. Sente-se ameaçado?
Já
fui ameaçado. Recebia telefonemas anónimos a dizerem que os meus filhos
ficariam órfãos. Que iriam crescer sem pai. Fui seguido na rua durante
três meses por pessoas que queriam mostrar que estavam sempre perto de
mim. Até me abriam a porta do supermercado e sorriam.
A literatura continua a ser uma arma, mas não deixa de ser estranho viver assim.
Não
é estranho. Na Ucrânia, temos dezenas de jornalistas mortos desde a
independência. Há pessoas que têm medo da palavra, das mensagens e
declarações, muitas vezes proferidas não só por jornalistas, mas também
por escritores.
No romance dá grande ênfase à cor cinzenta. Falamos de uma realidade cinzenta?
O
cinzento é a cor da camuflagem mental. Uma grande parte da população
não se preocupava com a política e na verdade só queria sobreviver. Não
se queriam envolver em nenhum processo social. Não posso julgá-los
porque esta era a atitude soviética. Diziam-nos o que fazer… Na Ucrânia
independente, é suposto sermos nós a decidir, mas muitas pessoas
permaneceram soviéticas na sua psique. E para eles, a vida tranquila
significava ser invisível e não tentar influenciar nada.
Há um problema de nostalgia?
Sim,
mas a nostalgia soviética só existia no Donbass e na Crimeia. E esta
nostalgia era apoiada pela Rússia porque havia (ainda há) um canal de
televisão russo que se chama Nostalgia. E está a mostrar, ainda hoje,
filmes soviéticos com finais felizes. Se quisermos fingir que vivemos no
passado, podemos simplesmente ver este canal de televisão e estamos na
União Soviética.
Sente que a guerra está a moldar o país e a unificá-lo?
Claro que sim. Esta é a terceira vez que a agressão russa está a moldar a nação política ucraniana.
Está a torná-la mais forte?
Muito mais forte e muito mais ativa. Estão a construir uma nação adequada, que está pronta para se defender.
Dentro de alguns dias vai voltar à Ucrânia. O que vai fazer?
Vou
apenas atravessar a fronteira. O nosso filho virá de Kiev para nos
encontrar, e depois eu ficarei para ver alguns amigos antes de voltar à
Europa.
Tem alguma ideia sobre o que pode acontecer?
A minha ação principal é fazer o que posso fazer de melhor.
Não prefere sair?
Não.
Foi-me oferecida uma possibilidade, mas não quero. Tínhamos uma vida
maravilhosa na maravilhosa Kiev e espero que voltemos a ter. Kiev é uma
grande cidade e a Ucrânia é um país incrível. É mágico. Está cheio de
humor. Tem todo o tipo de paisagens e tem grandes pessoas.
Sente que está bloqueado neste momento e que não consegue escrever ficção. Ainda se vê como romancista caso o conflito perdure?
Quero
voltar a escrever romances, claro. Talvez aprenda a encontrar três
horas por dia e a esquecer a guerra. Mas na verdade, os romances, que
escrevo atualmente são também sobre a guerra. É difícil sair disto.
Vê-se como um escritor político?
Diria
que sim. Estava a tentar escrever romances sem política e falhei. Na
época soviética, estava a escrever histórias satíricas e humorísticas e
romances curtos sobre a vida soviética. Depois comecei a fazer o mesmo
sobre a vida pós-soviética. Agora, estou apenas a escrever sobre o que
está a acontecer. Mas haverá dias melhores. O principal agora é
sobreviver e estar vivo quando os dias melhores chegarem.
Nenhum comentário:
Postar um comentário