António Guterres portou-se exatamente da forma que a Rússia previa, acabando por transformar a deslocação à Rússia e à Ucrânia numa vitória diplomática de Moscovo. Diana Soller para o Observador:
António
Guterres foi esta semana a Moscovo e a Kiev empurrado por pressões
dentro das próprias Nações Unidas – antigos dirigentes criticaram a sua
“inação” em carta aberta publicada na semana anterior – e pela própria
Rússia, que se queixou do facto da ONU nunca ter contactado o Kremlin
desde o início da guerra.
Ora,
quando se faz uma viagem diplomática pelas razões erradas o mais certo é
que esta não resulte, ou resulte mal. Foi, de facto, o que aconteceu.
António Guterres portou-se exatamente da forma que a Rússia previa,
acabando por transformar este momento numa vitória diplomática de
Moscovo.
Em
primeiro lugar, e com o mandato de 141 países que votaram a Resolução
de 2 de março a condenar a intervenção de Moscovo e a instar o Kremlin a
terminar a guerra, Guterres foi obrigado a condenar a Rússia. Ao
veicular a posição da Nações Unidas, evidentemente relacionada com “a
violação da integridade territorial” condenada pela Carta das Nações
Unidas e ao considerar que “aquilo que aconteceu foi uma invasão do
território ucraniano”, garantiu que a diplomacia russa usará a suas
palavras para acusar a ONU de patrocinar os interesses do Ocidente,
vetando e recusando certo tipo de intervenção daquela organização
internacional. Mais, Guterres proferiu estas palavras no encontro prévio
com Sergei Lavrov que nunca esconde a displicência que sente pela
diplomacia que não apoie a Rússia e que, mais uma vez, fez questão de
desvalorizar aberta e publicamente o papel das Nações Unidas.
Em
segundo lugar, ao sentar-se em frente a Putin naquela mesa
indecorosamente comprida – também ela uma forma de mostrar quem é ou não
amigo da Rússia – o Secretário-Geral da Nações Unidas acabou por dar ao
líder russo um palco televisivo privilegiado (provavelmente a passar
com alguns minutos de delay nos canais russos) para explanar, perante o
mundo, a sua visão da guerra. E por muito que toda ela nos pareça
absurda e, por vezes, completamente irracional, a impassibilidade com
que Guterres ouviu o presidente da Federação Russa legitimou Putin
internamente e reforçou os argumentos dos seus apoiantes internacionais,
que não são assim tão poucos quer a nível dos estados – a suspensão da
Rússia do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas passou por uma
unha negra – quer ao nível dos partidos e indivíduos pró-russos por todo
o mundo.
Em
terceiro lugar, quando António Guterres discursava em Kiev, a Rússia
disparou dois mísseis sobre a capital, que já não sofria bombardeamentos
há vários dias. Foi uma forma de expressar, mais uma vez perante o
mundo, que Putin não reconhece qualquer valor à organização, nem
respeita a segurança do seu mais alto representante. Putin nunca perderá
uma oportunidade de demonstrar que não se verga às ideias liberais, aos
que considera representantes do Ocidente, e a quem queira explicar-lhe
como deve conduzir a sua política externa e a sua guerra.
Não
se esperava outra coisa de Moscovo. Mas esperava-se que António
Guterres não se sujeitasse a ser tratado pelo Kremlin desta forma.
Os
dirigentes das Nações Unidas que temem, segundo dizem, a irrelevância
da instituição, parecem esquecer-se de um pormenor. As Nações Unidas
muito raramente funcionaram em tempo da guerra. A razão é simples: os
membros do Conselho de Segurança, o organismo que goza de poder efetivo,
muito raramente estão do mesmo lado da barricada. Na verdade, durante o
momento unipolar norte-americano as Nações Unidas, altamente
liberalizadas a partir do primeiro mandato de Bill Clinton, tiveram um
papel importante (ainda que nem sempre coroado de sucesso) nos processos
de mediação, imposição e manutenção de paz, entre outros. Sem os EUA ao
comando do mundo e com o regresso da condição de anarquia – a não
existência de nenhuma entidade com maior poder que os Estados – a
capacidade das ONU esvazia-se e o Secretário Geral volta a ser o que
sempre foi: um agende de diplomacia não vinculativa sem qualquer poder
para impor seja o que for. A culpa não é de Guterres, é do sistema
internacional. Também mão é fácil de compreender porque é que se clama
que uma reforma transformaria o estado das coisas. Por muitas voltas que
se lhe dê, a ONU estará sempre dependente da distribuição de poder e da
uniformidade de posições dos membros do Conselho de Segurança.
Sinto-me
muito confortável com a existência das Nações Unidas e parece-me que a
abertura de um corredor humanitário para tirar os civis do complexo
metalúrgico Azovstal é claramente um passo no cumprimento dos mais
básicos direitos humanos. Mas para isso, o Secretário-Geral tinha mesmo
de passar pelo que passou? Não me parece. Mais, a ONU desempenha uma
série da papéis importantes, nomeadamente através das suas agências
especiais, que têm um impacto muito positivo num momento em que há
problemas transnacionais para resolver. No entanto, é de uma enorme
imprudência tentar que as Nações Unidas sejam o que não são. Isso sim,
pode rendê-las à irrelevância.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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