BLOG ORLANDO TAMBOSI
Além da França de Macron, outras duas Franças estão também “em marcha”. Como e para onde é o que vamos ver daqui por diante – a começar nas legislativas de Junho. Artigo de Jaime Nogueira Pinto, publicado pelo Observador:
Muitas
vezes olhamos como excepções à regra manifestações de novos paradigmas,
continuando a descrever, a comentar e a procurar explicar como exóticos
fenómenos que vemos multiplicarem-se. Que estes fenómenos possam
constituir o preâmbulo de novas ordens ideológicas ou de uma nova
arrumação das coisas é uma possibilidade que nos desorienta, e que, por
isso, tendemos a desconsiderar.
Ideologias de conveniência
Esta
forma de reacção ao desconhecido e de negação da realidade, à esquerda
como à direita, tende a ser tanto mais radical e irrealista quanto mais
os factos vão baralhando, ultrapassando ou destruindo os quadros
mentais, ideológicos e analíticos estabelecidos.
Assim,
na invasão da Ucrânia pela Rússia, perante o choque entre o
nacionalismo securitário russo e o nacionalismo ucraniano (que, contra
as expectativas de Putin, resiste e faz prova de vida), assistimos aos
esforços dos dois contendores para ocultar o “pecado nacionalista” que
os move, recorrendo a velhos paradigmas – Moscovo anunciando uma
“manobra militar anti-nazi” e Kiev transformando-se em “baluarte da
democracia”.
Foi,
no entanto, nas eleições presidenciais francesas que melhor se viu o
recurso interessado a retóricas desfasadas para explicar realidades que
claramente as ultrapassam. Aí, a percepção da mudança ou do facto de
podermos estar perante o fim de um mundo e o começo de outro, foi sendo
toldada por retóricas úteis, consoladoras e panfletárias, como as que
concentraram o mal absoluto num “perigo” e num inimigo diabólico, como
que externo ao “povo” – “a extrema-direita”, “a direita radical”, “os
fascistas”, “os nazis” – escamoteando novas realidade e problemas e a
drástica dissociação de parte do povo em relação aos dirigentes e aos
partidos sistémicos.
Xeque-mate
Em
França, as análises dominantes tentaram medir com os mesmos
instrumentos o desconcertante facto de a soma dos partidos tradicionais –
republicanos (ex-gaullistas), socialistas, comunistas – não ter
chegado, na primeira volta das presidenciais, aos 10% do voto popular.
Há
vinte anos, a eleição já trouxera um destes choques, quando Jean-Marie
Le Pen ficou à frente do socialista Lionel Jospin e passou à segunda
volta contra Jacques Chirac. Nessa eleição, os mesmos partidos –
gaullistas, socialistas e comunistas – somaram mais de 50% dos votos; e
foi em nome de uma “frente republicana e antifascista” que, na segunda
volta, Jacques Chirac, o gaullista do RPR, conseguiu 82% dos votos
contra os 18% de Le Pen.
Agora,
na primeira volta, os partidos tradicionais da Quinta República,
somados, não chegaram aos 10%. Valérie Pécresse, “republicana”, teve
4,78%; o comunista Fabien Roussel 2,28%, a socialista Anne Hidalgo
1,75%. A soma (8,81%) espelha o declínio das forças políticas
tradicionais em França, à direita e à esquerda. Os “populistas” de
direita e de esquerda – Marine Le Pen, Éric Zémmour e Jean-Luc Mélenchon
– somaram mais de 50% dos votos.
No
entanto, perante esta nítida ruptura política, a solução tem sido, não
tentar explicá-la, não reflectir sobre a erosão de um centro que
continua a proclamar-se imaculado, mas soar alarmes contra a súbita e
inexplicável erupção do papão “extremista” e das suas hostes de
“deploráveis”.
Para
o historiador Marc Lazar os três candidatos à presidência francesa
ditos “populistas”, mais do que a personificação do mal, foram expressão
da “desconfiança política” generalizada dos cidadãos franceses em
relação aos partidos ou às forças institucionais; uma desconfiança que
já tinha tido outras expressões, como os Gillets Jaunes.
É
um descontentamento transversal a direitas e a esquerdas sitémicas que
propõe novos polos de clivagem, como identidade e multiculturalismo,
nacionalismo e globalismo, tradição e experimentalismo, “povo comum” e
“elites”. Em entrevista ao Nouvel Observateur, o mesmo Marc Lazar dizia
que era de “neopopulismo” que se tratava e que o fenómeno, cada vez mais
disseminado, tinha vindo para ficar:
“O
neopopulismo actual é um fenómeno duradouro, profundo, mundial, e não
uma erupção de febre passageira, como foram as experiências populistas
do passado. Não tem nada a ver com o poujadismo da Quarta República, o
exemplo emblemático em França de populismo, que só durou alguns anos até
de Gaulle voltar ao poder”.
Lazar
encontrava três grandes razões para o crescimento desse neo-populismo: a
“asfixia das democracias liberais representativas”, que por vezes se
manifestava como “fadiga democrática”; o desemprego, as desigualdades
sociais e a precaridade do mercado de trabalho num mundo globalizado; e
as “interrogações culturais e identitárias”.
Em
França, defendia ainda Lazar, a diferença entre os “populismos” de
direita e de esquerda estava no conceito de “povo” que, para Le Pen e
Zémmour era “étnico-cultural” e para Mélenchon era “mais plástico e
aberto ao multiculturalismo”.
A fractura
Aparentemente,
a leve hipótese de Marine Le Pen poder vencer no Domingo, 24 de Abril,
apavorou, não só as esquerdas, mas muitos e variados porta-vozes da
boa-consciência francesa e europeia, que se juntaram para esconjurar o
“perigo extremista”, o novo Hitler de saias, a amiga dilecta de Putin,
pronta a retirar a França da União Europeia e da NATO.
Mélenchon,
que não ficara longe de Le Pen na primeira volta e que tem agora
assegurada a liderança do que resta da esquerda em França, dera como
indicação de voto não votar em Le Pen (“Il ne faut pas donner une seule
voix à Mme Le Pen”), mas sem recomendar o voto em Macron, ao contrário
do que fizeram muitos republicanos, de Pécresse a Sarkozy e Villepin.
Mas haveria donos dos votos? E estariam as coisas como sempre tinham estado?
A
partir de posições ideológicas, votações ou análises de sociologia
eleitoral, podem tomar-se teoricamente dois caminhos: ou dizer que a
direita soberanista, popular (ou populista), apostando no factor
identitário e na preferência nacional e opondo-se ao globalismo, saiu do
seu lugar na dicotomia tradicional da Guerra Fria para se bater contra o
Centro e a Esquerda; ou defender que as categorias tradicionais estão
ultrapassadas, que os conflitos reais são agora entre identitários (ou
nacionalistas) e multiculturalistas (ou globalistas) e que daqui
derivará uma total recomposição de tudo – de valores, de ideias, de
fidelidades, de alinhamentos políticos e sociais.
A
escolha é mais de forma do que de conteúdo, já que a realidade é a
mesma: na versão antiga, a direita nacionalista, ou, em linguagem
jornalística, “a extrema-direita”, multiplicou-se quase por 10, dos
princípios da Quinta República até às eleições de Domingo passado, à
custa da extrema-esquerda (os comunistas encolheram 10 vezes), do
centro-direita e da direita gaullista; na segunda versão, as ideologias
ou os cânones de interpretação das ideias-valor mudaram e o
realinhamento deve agora fazer-se por novas coordenadas.
Seja
qual for a interpretação, é inegável a mudança da opinião francesa nos
últimos vinte anos: os eleitores da direita nacionalista passaram, em
percentagem, de cerca de 18% para mais de 41%, ou seja, de pouco mais de
cinco milhões para mais de 13 milhões de votos. Isto apesar da
avalanche de propaganda que sistematicamente distorceu e diabolizou as
suas lideranças e projectos.
A
“frente republicana antifascista” de Chirac que, em 2002, reuniu mais
de 25 milhões de eleitores e 82% do voto na segunda volta, encolheu
significativamente para 19 milhões e 58%, como que indiferente à
mobilização das chefias, da opinião dominante e dos grandes media para
que se fizesse barreira à candidata do Rassemblement National. Estarão
agora os eleitores menos temerosos e menos permeáveis à influência dos
media?
Le
Pen – e o “fascismo” – sofreram “uma grande derrota”, dizem alguns
comentadores, recuperados do susto; mas o facto é que Le Pen teve a
maior votação da história das direitas francesas e que a candidata da
“extrema-direita” chegou a ameaçar um candidato que, em França, é do
“centrão” e que em Portugal seria do centro-direita (ou daquele centro
direita indiferenciado, liberal em Economia, indiferente ao resto e
permeável à pressão das “novas agendas” e dos “novos direitos Humanos”,
como o aborto, que Macron quer urgentemente elevar a direito fundamental
europeu).
Os resultados
Comparando
os resultados das eleições de Domingo, 24, com os das eleições de 2017,
Marine Le Pen ganhou 8 pontos percentuais e três milhões de votos, em
cinco anos. Nesse mesmo tempo, Macron perdeu 8 pontos percentuais e dois
milhões de votos. A diferença entre os dois, que em 2017 fora de dez
milhões de votos, passou agora para cinco milhões e meio.
Enquanto
a votação em Marine Le Pen é maioritariamente uma votação afirmativa,
por escolha da candidata e das suas ideias (excluindo a percentagem de
eleitores de esquerda, de Mélenchon e de Yannick Jadot, que votaram, não
por ela, mas contra Macron), metade da votação em Macron não é por ele
mas contra Le Pen – e dos eleitores de Mélenchon, 17% contrariaram o
líder e votaram mesmo em Le Pen.
Por
idades, os mais novos (com menos de 24 anos) e os mais velhos (com mais
de 60) votaram maioritariamente Macron; os de meia-idade (entre os 25 e
os 60) votaram quase em igualdade pelos dois candidatos.
Sociologicamente, por classes e profissões, os quadros e os reformados
votaram maioritariamente Macron; e os empregados por conta de outrem e
os operários votaram Le Pen.
Na
noite das eleições, Marine Le Pen, com os seus mais de 13 milhões de
votos, apressou-se a dizer que o seu resultado e o das ideias que
defendia representava, em si e por si, uma “vitória retumbante.” E, logo
a seguir, fez a ligação à “terceira volta” das eleições, as
legislativas, marcadas para 12 e 19 de Junho.
As
legislativas fazem-se em duas voltas e, para passar à segunda, é
preciso que o candidato tenha pelo menos 12,5% dos eleitores inscritos, o
que, se a abstenção for alta, se torna difícil para os pequenos e
médios partidos. Ou seja, no espírito das instituições da Quinta
República, a legislação favorece os partidos maioritários – neste caso o
Rassemblement National de Le Pen, a France en Marche de Macron e o La
France Insoumise de Mélenchon.
No
entanto, os candidatos dos partidos mais pequenos da mesma área
política podem levantar obstáculos, já que vão roubar votos aos maiores,
que poderão ficar desqualificados para a segunda volta.
A
França está dividida em três espaços ideológicos: a “Macronia” ou
Centrão, que vai do centro-centro ao centro-direita, podendo apanhar os
Republicanos, em crise depois do fraquíssimo resultado de Valérie
Pécresse; uma esquerda e extrema-esquerda a reconstituir-se à volta da
France Insoumise de Mélenchon; e uma direita nacionalista ou
soberanista, com o Rassemblement National de Le Pen e a Reconquête de
Zémmour.
À
esquerda, Mélenchon comanda as negociações, com comunistas e
socialistas pulverizados; aparentemente o líder da France Insoumisse
quer, não só negociar candidaturas, mas estabelecer um programa comum.
Os
Republicanos estão divididos quanto à aliança com Macron mas, na
reunião de 26 de Abril, Christian Jacob, presidente do Partido, não se
mostrou disponível para apresentar listas conjuntas com a França em
Marcha. Sarkozy, que defende essa aliança, está sob censura dos seus
correligionários e outros republicanos conservadores poderão inclinar-se
para um “bloco nacional” à direita. Mas, também aqui, as coisas não
estão fáceis para Le Pen e Zémmour: depois de ter comentado que era “a
oitava vez que o nome Le Pen era atingido pela derrota”, Zémmour
estendeu a mão a um “bloco nacional”, mas a líder do Rassemblement,
embora se tenha mostrado aberta a negociações, não recuou na sua
intenção de apresentar deputados nos 577 círculos eleitorais.
Este
Bloco Nacional, englobando o Rassemblement, a Reconquête e os eleitores
de Dupont-Aignan, pode ter mais de 30% dos votos em 342 circunscrições,
mais de 40% em 128 e mais de 50% em 5, e assim transformar-se numa
grande força de oposição. Mas tudo vai depender das negociações e da
difícil subordinação dos egos dos líderes ao interesse comum.
Mais
importante é que situação política em França – e a França costuma ser
precursora na inovação político-ideológica – reflecte e determina uma
mudança do paradigma na divisão do conflito, na definição Amigo-Inimigo.
Divisão que, com a desindustrialização, a inflacção, e a própria
identidade da França em risco a médio-prazo, parece centrar-se na
confrontação dos soberanistas de todas as origens – direita, centro,
esquerdos – e os globalistas, também de todas as orientações; entre a
afirmação da independência nacional e da fronteira e a entrega às
oligarquias europeístas, bem representadas por Macron – que, quando da
celebração da vitória no Champs de Mars, fez soar o hino europeu antes
da Marselhesa.
A França, e não só a de Macron, está definitivamente em marcha.
Nenhum comentário:
Postar um comentário