BLOG ORLANDO TAMBOSI
Sou filho disso aí. Filho sem orgulho, porque geografia não é escolha, e filho sem vergonha, porque vergonha de que afinal? Sou filho disso aí e ponto final. Minha cidade, minha cara, meu pulmão, minha garganta, meu fígado, meu amor. Orlando Tosetto para a Crusoé:
Ontem
minha cidade, São Paulo, fez 470 anos. Fundada por padres jesuítas,
ganhou esse nome segundo o hábito antigo de batizar cidades ou crianças
recém-nascidas com o nome do santo ou da festa do dia natal: 25 de
janeiro é o dia da conversão de São Paulo, conforme se lê nos Atos dos
Apóstolos 9, 1-22, versículos que antigamente se liam na missa desse
dia. O nome do santo caiu bem numa cidade tão ranheta, tão belicosa
quanto foi, a seu tempo, o Apóstolo (que foi chamado de “uma peste” nos
Atos 24,5), e que, como ele, amansou.
Ranheta,
eu disse, e disse bem. Mas também que criança levada esta cidade sempre
foi. Que criança rebelde. Foi, afinal, esta cidade quem tentou aclamar
rei o bandeirante Amador Bueno da Veiga, em 1641 (ele recusou; uma placa
colada à parede do Mosteiro de São Bento dá notícia do fato), primeiro
berro de independência, e cujos habitantes depois arranjaram guerra com
os emboabas. Esta cidade depois aclamou o Imperador Dom Pedro I e a
Independência de facto, aliás proclamada nas suas terras. E depois foi
ainda a capital do republicanismo e do café, duas coisas que andaram
juntas, antes e depois (com leite). Foi esta cidade que se sublevou em
1924, e depois de novo em 1932. E foi ainda aqui, no Anhangabaú, em
1984, que a onda da redemocratização virou tsunami. Tanta briga, tanto
remelexo numa cidade que, sabe Deus por que, ganhou fama de
conservadora.
Porque
a verdade é que se o sertanejo é, antes de tudo, um forte, o paulistano
é, antes de tudo, muito louco. Ele elegeu para prefeito o camarada que
abandonou a presidência e deu início à onda que culminou no golpe de 64.
Depois, elegeu prefeitas duas mulheres de esquerda, uma delas socialite
e sexóloga, a outra nordestina e supostamente homossexual. Para a mesma
prefeitura, elegeu um negro de direita – e carioca. Sempre deu vez na
vereança ao populismo de direita (enquanto isso existiu) e ao de
esquerda (hoje quase exclusivo), sem abrir mão de gente trans e negros
gays. Fez deputado federal um comediante semianalfabeto e senador um
senhor cuja sanidade mental sempre foi objeto de debate. E, para honrar
qualquer fama capitalista, fez de um marqueteiro seu prefeito e depois
seu governador. Conservador? O paulistano é um livre-pensador.
Não
sou paulistano “da gema” (expressão que ninguém usa mais), se a gente
considerar como gema a Colina Histórica de que já falei por aqui. Serei
antes de uma “gema estendida”: nasci num hospital que não existe mais,
na Rua 21 de Abril, no Brás. Rua aliás que cruza a Rua do Hipódromo –
hipódromo que também não existe mais. Perto de cinemas que não existem
mais (Universo, Roxy, Fontana, Brás) e de restaurantes e cantinas que
não existem mais (o Braseiro, a Ballila) ou mudaram para pior (o
Garoto), das bancas de jornal que não existem mais, das lojas grandes
que não existem mais, das ruas calçadas de paralelepípedos que não
existem mais. E nem vou falar aqui dos fantasmas, das pessoas que não
existem mais.
Essa
aliás é outra marca da minha cidade: o faz-desmancha-refaz-desmancha de
novo-refaz de novo, sem parar. Tudo aqui parece eterno no atacado, mas é
muito provisório no varejo. O cinema que vira igreja, a igreja que vira
restaurante, o restaurante que vira loja, a loja que vira shopping, o
shopping que vira hospital, o hospital que vira condomínio, o condomínio
que vira avenida, a linha do trem que vira outra avenida, a passagem de
nível que vira ponte, a ponte que vira túnel, a casa que vira prédio, o
prédio que vira três prédios, a árvore que vira nada, o bairro charmoso
que vira um perigo e o bairro feio que vira chique. Tiro exemplos da
minha própria vida: das cinco primeiras casas em que morei, só uma ainda
existe.
Sou
filho desse bafafá, desse “não tenho nada para fazer, mas estou com
pressa”, dessa sensação de que a vida no centro de qualquer outra cidade
grande do Brasil é uma espécie de sábado à tarde, dessa vontade de rir
sempre que alguém de fora pergunta “será que dá pra ir a pé?”, das
negociações complexas para juntar dez amigos em torno de uma mesa, de
falar e ouvir “ih, naquele tempo isso aqui era tudo mato” e “pois é,
choveu e parou tudo” e “nossa, faz séculos que eu não ando por aqui” (na
Avenida São João) e “ah, é fácil, dois ônibus e um metrô” e “não ande
sozinho por lá à noite, viu?”.
Sou
filho disso aí. Filho sem orgulho, porque geografia não é escolha, e
filho sem vergonha, porque vergonha de que afinal? Sou filho disso aí e
ponto final. Minha cidade, minha cara, meu pulmão, minha garganta, meu
fígado, meu amor.
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