Demétrio Magnoli
Folha
Este sábado (27), aniversário da libertação de Auschwitz, é o Dia Internacional da Memória do Holocausto. O governo da África do Sul, com apoio do governo do Brasil, decidiu enterrar a memória do genocídio dos judeus europeus por meio de uma cínica acusação de genocídio contra o Estado judeu.
Na guerra civil síria, o regime de Bashar al-Assad matou mais de 300 mil civis. Cidades inteiras sofreram bombardeios devastadores. Forças do Irã e da Rússia participaram dos massacres. Nenhum país acusou a Síria, na Corte Internacional de Justiça, de praticar genocídio. Com razão: a ditadura síria não cometeu o crime dos crimes.
SIGNIFICADO REAL – Genocídio requer a intenção de dizimar um grupo populacional inteiro. Assad pretendia destruir seus opositores, à custa de pilhas infinitas de cadáveres, mas não eliminar os muçulmanos sunitas. Na guerra de Gaza, Israel busca eliminar o Hamas, não a população palestina.
A peça acusatória da África do Sul banalizava o mais abominável dos crimes, reduzindo o Holocausto a uma nota de rodapé na longa história dos horrores de guerra.
Se Israel pretendesse exterminar os palestinos, não ordenaria a evacuação de áreas sob bombardeio ou colocaria seus soldados em risco: seu poder aéreo seria suficiente para matá-los em quantidade várias vezes maior. Há fortes indícios de que, em Gaza, as forças israelenses cometem diversos crimes de guerra. Mas o lugar para processar crimes de guerra é o TPI (Tribunal Penal Internacional), não a CIJ (Corte Internacional de Justiça).
CRIMES DE GUERRA – O governo sul-africano teria firmes fundamentos para abrir no TPI um processo por crimes de guerra contra Netanyahu – e outro por terrorismo, contra os líderes do Hamas. Contudo, escolheu a CIJ porque seus objetivos são políticos: a corte só pode processar Estados, o que elimina a hipótese de condenação do Hamas.
Esqueça a hipócrita alegação humanitária. Há pouco, o governo sul-africano recebeu, com honras, Mohamed Dagalo, chefe da milícia sudanesa Janjaweed, que perpetrou os massacres de Darfur. Foram 200 mil mortos, entre 2003 e 2005, numa tragédia qualificada por inúmeros especialistas como o primeiro genocídio do século 21.
O governo sul-africano mantém laços estreitos com o Hamas. No último 5/12, semanas após as atrocidades do 7/10, uma delegação da organização terrorista palestina participou como convidada da marcha oficial sul-africana em memória aos dez anos da morte de Mandela.
PRESERVAR O HAMAS – Na ação, solicita-se à CIJ a imposição de um cessar-fogo permanente. Seu objetivo tático: preservar o poder do Hamas na Faixa de Gaza.
A escolha da acusação de genocídio ilumina o objetivo estratégico do governo sul-africano. Trata-se de avivar a campanha internacional destinada a isolar Israel num gueto diplomático: um Estado ilegítimo, o “judeu das nações”.
A acusação de genocídio dispensa a guerra em curso. Daud Abdullah, do Conselho Muçulmano Britânico, classifica a guerra de 1948 como genocídio. O ativista-historiador Ilan Pappé descreveu o bloqueio israelense de Gaza de 2007 como genocídio. Grupos palestinos foram ao TPI para acusar Israel de genocídio pela invasão de Gaza de 2014.
JUDEUS E NAZISTAS – Essa operação incessante, sistemática, busca estabelecer uma identificação histórica entre a natureza do Estado judeu e a do Estado nazista. O primeiro deveria ter o mesmo destino do segundo: desaparecer.
“Antissionismo é dever ético”, escreveu na Folha Berenice Bento, professora da UnB. Juntar-se ao Hamas e ao Irã para clamar pela abolição do Estado nacional judeu tem nome mais preciso: antissemitismo.
A ação sul-africana – e o apoio prestado pelo governo Lula a ela – é uma estufa de mudinhas do antissemitismo. Sob o seu domo, José Genoino qualificou como “interessante” a “ideia de boicote” a “empresas de judeus”. Antes dele, alguém teve essa “ideia interessante”. Nela encontram-se as sementes do arco histórico que se concluiu em Auschwitz.
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