BLOG ORLANDO TAMBOSI
Sócrates definiu como sua talvez única virtude reconhecer que 'nada sabia'. Há um espírito que se perdeu, aí, nesta época de certezas e dedos na cara. Fernando Schüler para a Veja:
James
Bennet escreveu um texto inusitado, na revista The Economist, perto da
virada do ano. Jornalista consagrado no The Atlantic, editor de opinião
do The New York Times, seu ponto era dizer que o Times havia “perdido o
rumo” na poeira da polarização política americana. O problema não era o
viés “progressista” do jornal. O problema era o traço patológico que
isso havia adquirido, em especial na era Trump. A partir daí, o jornal
passou não apenas a favorecer ideias mais à esquerda, mas a bloquear
sistematicamente as ideias conservadoras. Ele conta sobre a mesquinharia
de não permitir sequer a publicação de “cartas ao leitor”, de eleitores
de Trump, e a “indignação” com um perfil, ainda que crítico, de um
ativista da “nova direita”. A gota de água foi quando Bennet publicou um
artigo do senador republicano Tom Cotton defendendo uma ação mais
enérgica nos protestos violentos que se seguiram à morte de George
Floyd, em 2020. A visão de Bennet era: podia-se concordar ou não com o
senador, mas sua visão era legítima. E expressava a opinião de boa parte
do público americano. O ponto é que o jornal recuou. Foi apedrejado
pela claque de ativistas e Bennet acabou no olho da rua.
O
ponto essencial é a ideia defendida por Bennet sobre o papel do
jornalismo. Dos onze colunistas do The Times, apenas dois eram
“conservadores”, e ainda assim “moderados”. O jornal simplesmente
“ignorava a opinião de 150 milhões de americanos”, escreveu ele, em uma
nota. Se alguém efetivamente levasse a sério a ideia de “diversidade”, a
primeira decisão seria trazer mais vozes à “direita’, no espectro
político. Coisa que ninguém, no jornal, estava realmente disposto a
fazer. As pessoas continuavam a falar em diversidade, mas agiam de um
modo claramente unilateral. Outro ponto é a ideia de que era “perigoso”
expor os leitores às ideias de Cotton ou dos apoiadores de Trump. A tese
do leitor hipossuficiente. Na prática, a lógica group-thinking, o Times
como um veículo, diz Bennet, “onde a elite progressista dos Estados
Unidos fala consigo mesma sobre um Estados Unidos que não existe
realmente”. Foi a mesma percepção de outra editora do Times, Bari Weiss.
Sua carta de demissão correu o mundo. E foi bem mais direta. Disse que
havia cansado do jornalismo “engajado”, que, em vez de “desafiar os
leitores”, passou a “buscar cliques com o 4 000º artigo dizendo que
Trump é o grande perigo para o mundo”.
As
histórias de Bennet e Bari Weiss falam de um estranho divórcio que
marca a nossa época. Observem os dados: 38% dos americanos se
identificam como conservadores, em questões sociais; 29% se dizem
“progressistas”. Nas questões econômicas, 44% são conservadores, contra
21% progressistas (dados do Gallup). Observem agora o que se passa com a
imprensa. Pesquisa recente feita na Universidade Syracuse mostrou que a
simpatia pelo Partido Democrata, entre jornalistas, é dez vezes maior
do que pelo Partido Republicano. Para ser preciso: 36,4% para o lado dos
democratas e apenas 3,4% para o lado republicano (eram 18%, no início
dos anos 2000). De um modo geral, o que se passa com o The New York
Times não é a exceção. No Brasil, pesquisa realizada na Universidade
Federal de Santa Catarina, reportada em ótima matéria do Poder 360,
mostrou que 80,7% dos jornalistas se posicionam à esquerda ou
centro-esquerda, contra apenas 4% à direita, lato sensu.
Não
é preciso fazer nenhum juízo de valor aqui. É um direito das pessoas
pensarem isso ou aquilo. Ponto-final. A questão é observar o divórcio. A
desconexão entre a média do pensamento, na sociedade, e o que se passa
não apenas na chamada “mídia profissional”, mas nos meios de opinião, em
geral. Dito isso, talvez Bennet e Bari Weiss sejam apenas dois
irrealistas. Presos a uma ideia de jornalismo que de fato se perdeu, e
não apenas no The New York Times. A ideia de uma mídia apresentando
fatos com alguma objetividade, e um quadro de opinião diverso. Não
focado em convencer ninguém disso ou daquilo, mas permitir que o público
forme sua própria opinião. Essa foi uma tese clássica do jornalismo, no
século XX, posta no conhecido relatório da Comissão Hutchins, logo após
a Grande Guerra. Suas conclusões diziam que o compromisso do bom
jornalismo era separar a notícia da opinião, dar espaço ao contraditório
e tratar sem estereótipos os diferentes grupos da sociedade. Ainda há
muita gente que tenta colocar em prática essa ideia. Mas o espírito do
tempo é outro. O que antes era um problema para o jornalismo, isto é,
seu afastamento da “objetividade dos fatos”, se tornou um estranho tipo
de virtude.
É
evidente que seria desejável um The New York Times que não demitisse
seu editor de opinião pela publicação de um artigo conservador. Ou
emissoras com um equilíbrio de visões, refletindo simplesmente o que
somos, como sociedades abertas. Mas é improvável. As guerras culturais
da nossa época injetaram uma carga de sacralidade no universo da
política. Se o que está em jogo é o “fascismo”, de um lado, e o
“comunismo”, de outro (parece brincadeira, mas foi exatamente o que
Bennet ouviu, e não precisamos ir longe…), não há mesmo muito o que
ponderar. Se são as últimas e grandes narrativas que dão conta da
realidade, então está tudo bem. Vamos à guerra permanente, e às favas
com idiotices como o espírito de dúvida e de investigação. É evidente
que há um problema de mercado, que demanda “opiniões fortes”. “Ou então
perdemos para a internet, seus youtubers e tiktokers”, escuto de um
editor veterano. O negócio seria aderir ao jogo. Ao Twitter como grande
editor, na frase sarcástica de Bari Weiss.
O
problema é que o viés crônico faz o jornalismo perder aquela que
deveria ser sua grande virtude: a vocação socrática. A capacidade de
fazer as perguntas inconvenientes, contrastar o pensamento hegemônico.
Lembro quantas vezes li notícias sobre pessoas banidas ou mesmo presas,
no Brasil recente, sem um mísero questionamento sobre o “crime”
cometido. Ou a aceitação pura e simples da censura prévia, vedada por
aqui. Bennet sugere que talvez falte “coragem” à mídia. Desconfio que
não. O que parece faltar é o tipo de convicção. Do jornalismo que
“começa com uma consciência de que não sabe nada, em vez da crença de
que sabe de todas as respostas”, nas palavras do próprio Bennet.
Saudável ceticismo que não funciona para quem apagou a ambiguidade, que
realmente acha que descobriu o lado certo da verdade. E por aí encerrou o
jogo.
Vamos
lembrar que Sócrates foi condenado por ofender os deuses. E na Apologia
definiu como sua talvez única virtude reconhecer que “nada sabia”. Há
um espírito que se perdeu, aí, nesta época de certezas e dedos na cara.
Corrigir o divórcio, neste sentido, não é a adesão a essa ou aquela
corrente de opinião. Mas o reconhecimento simples de que somos uma
sociedade plural e que há um valor nisso que não deveríamos perder.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 26 de janeiro de 2024, edição nº 2877
Nenhum comentário:
Postar um comentário