BLOG ORLANDO TAMBOSI
Precisamos cancelar a cultura do cancelamento antes que ela cancele o bom senso. Alexandre Borges para a Crusoé:
Diz
o Ministério da Saúde, comandado por uma socióloga, que mãe é “pessoa
que pariu”. O programa de distribuição de absorventes é para “pessoas
que menstruam”. Para a ministra-irmã de Marielle Franco, os desabrigados
das enchentes sofrem de “racismo ambiental” e, repetindo seu colega
Silvio Almeida, o Brasil sofre de “racismo estrutural”.
Em
setembro do ano passado, a ministra-irmã de Marielle pegou um avião da
FAB para ver a final da Copa do Brasil no estádio do Morumbi. Eu, que
também sou flamenguista, mas não sou ministro, vi pela TV nosso time
perder para o São Paulo. Quando vieram as cobranças sobre a carteirada, a
ministra-irmã de Marielle disse que as críticas “configuraram violência
política de gênero e raça”.
Se
entendi bem, a ministra da “igualdade racial” não acredita que as raças
sejam realmente iguais, já que os autodeclarados representantes de uma
delas devem estar blindados de críticas ou questionamentos, mesmo
ocupando cargo público no primeiro escalão do governo federal e sendo
vítimas da terrível coincidência de ir trabalhar num estádio de futebol
justo quando seu time do coração jogava uma final de campeonato.
Uma
assessora do ministério, que atende pelo brasileiríssimo nome de
Marcelle Decothé e que também pegou carona no luxuoso jatinho da
Aeronáutica que levou a ministra-irmã, publicou em seu Instagram, sobre
os torcedores do time adversário: “torcida branca que não canta,
descendente de europeu safade (sic)… Pior tudo de pauliste (sic)”.
Decothé
usou linguagem neutra, inclusiva, woke, politicamente correta, para
fazer um ataque contra dezenas de milhares de pessoas que, ao menos,
pagaram para ver o jogo que ela via de graça. A assessora ganhava R$
17,1 mil por mês de salário, mas após suas postagens neutras e
inclusivas vazarem na internet, a canceladora foi cancelada.
A
(ex) assessora foi exonerada porque “as manifestações públicas da
servidora em suas redes estão em evidente desacordo com as políticas e
objetivos do MIR”, disse o ministério em nota. Criticar e até demitir a
assessora, aprendemos, não “configura violência política de gênero e
raça”, só de ministro para cima. Decothé é mulher e negra como a
ministra-irmã, mas não tem a mesma proteção estrutural. Neste caso, as
estruturas aparentemente ajudaram.
O
Brasil, claro, não inventou nada disso, nem mesmo o nome da cultura
woke. O termo, vejam vocês, vem de um movimento incorporado ao Partido
Republicano americano, criado durante a campanha abolicionista que
dividia o país em meados do século XIX e que deu a plataforma e a
legenda para que Abraham Lincoln chegasse à presidência, em 1860. Os
wide awakes, os jovens “bem despertos”, serviram como militantes e
seguranças da campanha vitoriosa de Lincoln, lembrando uma milícia
paramilitar.
O
termo woke foi sendo usado em contextos políticos de maneira esparsa
até o final dos anos 2000, quando a cantora Erykah Badu lançou o hit
Master Teacher, que trazia o bordão “I stay woke” (“eu fico acordada”),
ainda sem qualquer conotação política. Com o tempo, stay woke passou a
significar também “ficar vigilante” e “não alienado”. Aos poucos, a
gíria foi sendo incorporada à cultura popular e a mensagens engajadas
nas redes sociais. A própria Erykah Badu postou a hashtag #StayWoke num
contexto político e, ao longo da década de 2010, woke se firmou como o
termo que resumia o novo movimento de ativismo virtual da Geração Z, dos
nascidos entre 1990 e 2010, também conhecidos como iGen.
O
ativismo woke, mesmo ligado à extrema-esquerda na origem, causa horror a
muitos esquerdistas com raízes marxistas-leninistas mais tradicionais,
que ao menos tinham respostas (erradas) para oferecer às grandes
questões humanas. A história, para eles, poderia ser racionalmente
entendida como uma luta de classes, que colocava em lados opostos os
donos dos meios de produção e os trabalhadores explorados. Abolindo a
propriedade privada e passando por uma ditadura do proletariado,
teríamos o “paraíso na Terra” e uma sociedade comunista, solidária,
igualitária e justa.
A
crise do pensamento tradicional de esquerda começa em meados do século
XX. Em 1956, o Discurso Secreto de Nikita Kruschev, denunciando os
horrores do stalinismo, caiu como uma bomba no colo da intelectualidade
ocidental. Em 1973, Arquipélago Gulag, de Alexander Soljenítsin, fez a
mais contundente e devastadora revelação sobre os campos de concentração
soviéticos, deixando parte dos comunistas que ainda resistiam a
acreditar no caráter genocida e demoníaco da URSS ainda mais atônitos.
Foi
durante essa época que dois intelectuais com afinidades marxistas se
tornaram influentes. Os franceses Michel Foucault e Jacques Derrida
chacoalharam as estruturas do pensamento da esquerda, oferecendo duas
novas estradas para serem percorridas pelas almas que abandonaram o
comunismo soviético.
Foucault,
um obcecado por “experiências-limite”, sadomasoquismo gay e violência,
que criou a apologética dos desajustados, dos loucos, dos presos e dos
oprimidos pela sociedade industrial. Derrida, o pai do desconstrutivismo
relativista, que acreditava ter desenvolvido uma corrente filosófica
apolítica que era, evidentemente, política, como ele veio a admitir no
final da vida.
Ambos
traziam uma nova metafísica para intelectuais atordoados pelas
experiências aterrorizantes do socialismo real e que se recusaram a
aderir à democracia liberal e ao “fim da história”. Com Foucault,
aprenderam a estetizar a violência e a insanidade, como na defesa da
sangrenta e retrógrada revolução iraniana dos aiatolás. Com Derrida,
passaram a desconfiar do “logocentrismo” e de todo tipo de realidade que
possa ser “traduzida em linguagem”.
O
que sobrava dos escombros do comunismo soviético? Um certo misticismo
baseado num “sentimento de justiça” que era impossível de definir ou
alcançar, por definição. Nada era real, apenas as estruturas de poder, e
o papel do ativista seria estar ao lado dos oprimidos em qualquer
situação. Como disse G. K. Chesterton, “a marca do mundo moderno não é
ser cético, é ser dogmático sem saber”.
O
vazio moral da intelectualidade ocidental das últimas décadas tem
origem na divisão da cristandade no século XVI, que demoliu os mil anos
de construção do Ocidente como um terremoto. Sem as bases cristãs
originais e um vale-tudo espiritual que rejeitava violentamente os
tradicionais cânones religiosos, um sem número de religiões e seitas
surgiram e, para o ateísmo secularista e a “religião do estado”, foi
apenas um pequeno passo, com os resultados conhecidos.
Até
hoje, filósofos se debatem para definir o que levou o mundo para o
estágio atual, se o secularismo que expulsou Deus e entregou o mundo
para o Estado, ou um irracionalismo de ditadores do século XX que se
recusaram a aceitar as bases do iluminismo e voltaram ao obscurantismo
medieval.
Há
farta bibliografia sobre este debate que sai do escopo deste texto, mas
não há dúvida que as bases iluministas e racionalistas não são os
sustentáculos epistemológicos e morais do pós-modernismo woke, que tem
uma vaga noção do que quer destruir, mas não faz a menor ideia do que
colocar no lugar.
Em
2018, a cicloativista Helen Pidd publicou um artigo no jornal britânico
The Guardian sobre um assunto sério, a morte de ciclistas em Londres.
No texto, ela afirma que “estradas projetadas por homens estão matando
mulheres”. Alguém em sã consciência acredita que os engenheiros que
desenharam as rodovias ingleses tinham em mente um plano para assassinar
mulheres? Não importa. É tudo ativismo, é tudo linguagem, é tudo woke.
Há
duas maneiras de reagir a esse tipo de insanidade. Em 2022, um
desabamento em obras do metrô na Marginal Tietê, em São Paulo, provocou
uma polêmica inusitada. O deputado Eduardo Bolsonaro foi às redes
sociais e publicou um vídeo da construtora responsável que dizia que
havia prioridade na contratação de mulheres.
O
filho zero três, com a delicadeza que lhe é peculiar, comentou: “Por
qual motivo [contratar sempre mulheres]? Homem é pior engenheiro? (…)
Quando a meritocracia dá espaço para uma ideologia sem comprovação
científica o resultado não costuma ser o melhor”. Uma resposta boçal e
estúpida, quase um woke de direita.
Outra
maneira, mais trabalhosa, longa e incerta, é tentar retomar a sanidade
no debate político, sequestrado por uma geração que nasceu com celular
na mão e tem questões sérias a resolver em relação ao convívio humano
real e analógico, no entendimento do mundo não intermediado por telas.
Seja qual for a sua escolha, é melhor agir logo. Em breve, pode não
sobrar nenhum pauliste safade para contar a história.
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