"Devemos ter a coragem de admitir que a UE não teve um desempenho como deveria face à crise do Covid e à guerra em curso", escreve o primeiro-ministro da Polônia Mateusz Morawiecki no Observador:
A
guerra na Ucrânia expôs a verdade sobre a Rússia. Quem não quis ver que
o estado de Putin tem uma tendência ao imperialismo, hoje tem que
enfrentar o facto de que os demónios dos séculos XIX e XX renasceram na
Rússia: o nacionalismo, o colonialismo e o totalitarismo cada vez mais
visível. Mas a guerra na Ucrânia também expôs a verdade sobre a Europa.
Muitos líderes europeus deixaram-se seduzir por Vladimir Putin e hoje
estão em choque.
O
retorno do imperialismo russo não deve surpreender. Há quase vinte
anos, a Rússia tem vindo a reconstruir lentamente a sua posição mesmo
diante do Ocidente. Enquanto isso, o Ocidente escolheu uma dormência
geopolítica em vez de uma vigilância prudente. Preferiu não reparar no
problema crescente a enfrentá-lo antecipadamente.
A
Europa encontra-se hoje nesta situação não por estar insuficientemente
integrada, mas, porque se recusou a ouvir a voz da verdade. Essa voz tem
se vindo a manifestar da Polónia há muitos anos. A Polónia não
reivindica o monopólio da verdade, mas em matéria de relações com a
Rússia somos simplesmente muito mais experientes do que os outros. O
Presidente da Polónia, Lech Kaczyński, estava certo, como Cassandra
prevendo a queda de Tróia, quando disse há muitos anos que a Rússia não
iria parar na Geórgia e iria querer mais. E também não foi ouvido.
O
facto de a voz polaca ter sido ignorada é apenas um exemplo de um
problema mais amplo enfrentado pela UE de hoje. A igualdade dos países
individuais é de natureza declarativa. A prática política mostra que
conta sobretudo a voz da Alemanha e da França. Portanto, estamos a lidar
com uma democracia formal e uma oligarquia de facto, governada pelos
mais fortes. Além disso, os mais fortes cometem erros e são incapazes de
aceitar críticas de fora.
A
válvula de segurança que protege a UE da tirania da maioria é o
princípio da unanimidade. Encontrar um compromisso entre 27 países,
cujos interesses estão tão frequentemente em conflito, pode às vezes ser
frustrante e o compromisso pode não satisfazer a todos em 100%. No
entanto, isso garante que todas as vozes sejam ouvidas e que a solução
adotada atenda às expectativas mínimas de cada Estado-membro.
Se
alguém propõe que as ações da UE dependam ainda mais das decisões da
Alemanha, o que significaria a abolição da regra da unanimidade, basta
fazer uma breve análise retrospetiva das decisões alemãs. Se, nos
últimos anos, a Europa sempre tivesse agido como a Alemanha queria,
estaríamos hoje numa situação melhor ou pior?
Se
toda a Europa seguisse a voz alemã, não só o Nord Stream 1, mas também o
Nord Stream 2, já seriam lançados por muitos meses. A dependência da
Europa do gás russo, que Putin agora usa como ferramenta de chantagem
contra todo o continente, seria quase irreversível.
Se
toda a Europa tivesse aceitado em junho de 2021 a proposta de organizar
uma cimeira UE-Rússia, Putin seria reconhecido como um parceiro de
pleno direito e as sanções impostas à Rússia após 2014 seriam
levantadas. Se essa proposta, então bloqueada pela Polónia, Lituânia,
Letónia e Estónia, fosse aceite, Putin teria a garantia de que a UE não
tomaria medidas reais para defender a integridade territorial da
Ucrânia.
Seríamos
hoje cada vez mais um objeto e não sujeito da política internacional,
se a União Europeia, em vez de uma dura política de defesa das suas
próprias fronteiras – atributo fundamental da soberania estatal – também
adotasse as regras de distribuição de migrantes propostas em 2015. Foi
em 2015 que Putin viu que os migrantes poderiam ser usados numa guerra
híbrida contra a UE, e em 2021, juntamente com Alexander Lukashenko,
atacou a Polónia, Lituânia e Letónia. Se tivéssemos ouvido os defensores
das fronteiras abertas em 2015, hoje a nossa resistência às próximas
grandes crises seria ainda menor.
Finalmente:
se toda a Europa enviasse armas para a Ucrânia na mesma escala e no
mesmo ritmo que a Alemanha — a guerra já teria terminado há muito tempo.
Teria terminado com uma vitória absoluta da Rússia. E a Europa estaria à
beira de outra guerra. Porque a Rússia, encorajada pela fraqueza dos
seus oponentes, seguiria em frente.
Hoje,
qualquer voz do Ocidente para limitar o fornecimento de armas à
Ucrânia, aliviar as sanções, levar “ambos os lados” (isto é, o agressor e
a vítima) ao diálogo, é um sinal de fraqueza para Putin. E, no entanto,
a Europa é muito mais forte do que a Rússia.
Se
realmente queremos hoje falar de valores democráticos, é tempo de fazer
um grande exame de consciência da Europa. Por demasiado tempo, o valor
mais importante para muitos países foi o preço baixo do gás russo.
Sabemos, porém, que poderia ter sido tão baixo, tendo em conta que não
incluía o “imposto sobre o sangue” que a Ucrânia está hoje a pagar.
Derrotar
o imperialismo na Europa é também um desafio para a própria União
Europeia. As organizações internacionais só poderão opor-se com sucesso
ao imperialismo se elas mesmas defenderem os valores fundamentais —
liberdade e igualdade de todos os seus Estados-Membros. Isso é
particularmente atual em
relação à União Europeia.
A
UE enfrenta crescentes deficiências no respeito pela liberdade e
igualdade de todos os Estados-Membros. Cada vez mais ouvimos que não é a
unanimidade, mas a maioria, que deve decidir sobre o futuro de toda a
Comunidade. O afastamento do princípio da unanimidade nas esferas
subsequentes de atividade da UE aproxima-nos de um modelo em que os mais
fortes e maiores dominam os mais fracos e menores.
O
défice de liberdade e o défice de igualdade são também evidentes na
zona euro. A adoção de uma moeda comum não garante um desenvolvimento
sustentável e harmonioso. De facto, o euro introduz mecanismos de
rivalidade mútua, que se verificam, por exemplo, no excedente permanente
de exportações de alguns países, que contrariam a valorização da sua
própria moeda mantendo a estagnação económica noutros. Nesse sistema, a
igualdade de oportunidades fica apenas no papel.
Esses
défices tornam a União Europeia particularmente vulnerável e fraca
quando confrontada com o imperialismo russo. A Rússia quer transformar a
Europa em algo que lhe é familiar e próximo há vários séculos — um
concerto de potências com esferas de influência definidas em conjunto.
Escusado será dizer o que tal “ordem internacional” significa para a paz
europeia.
Cada
vez mais, as possibilidades de defesa dos direitos, interesses e
necessidades dos países médios e pequenos saem a perder quando
confrontadas com os estados maiores. É uma violação de liberdades que se
impõe, muitas vezes em nome do suposto interesse do todo.
O
bem comum era um valor que estava no cerne do projeto europeu. Foi a
força motriz por trás da integração europeia desde o seu início. Hoje,
esse bem é ameaçado por interesses particulares inspirados
principalmente por egoísmos nacionais. O sistema coloca-nos num jogo
desigual entre os fracos e os fortes. Nesse jogo, há espaço tanto para
os maiores países com grande poder económico, quanto para os pequenos e
médios, sem tal vantagem. Os mais fortes alcançam o domínio político e
económico, os últimos são condenados ao clientelismo político e
económico. Para todos o bem comum é uma categoria cada vez mais
abstrata. A solidariedade europeia está a tornar-se um conceito vazio,
reduzido a impor a aceitação de um ditame real do mais forte.
Sejamos
francos hoje: a ordem da União Europeia não nos protege hoje o
suficiente contra o imperialismo estrangeiro. Pelo contrário, as
instituições e ações da UE, embora não estejam livres da tentação de
dominar os mais fracos, permanecem expostas à infiltração do
imperialismo russo.
É
por isso que apelo a todos os líderes europeus para que tenham coragem
de pensar nas categorias adequadas aos tempos em que vivemos. E
encontramo-nos num ponto de viragem histórico. A Rússia Imperial pode
ser derrotada — graças à Ucrânia e ao nosso apoio que lhe temos vindo a
dar. Vencer esta guerra é apenas uma questão da nossa consistência e
determinação.
Graças
ao fornecimento de equipamentos numa escala que – a julgar pela
capacidade do Ocidente – ainda é relativamente pequena, a Ucrânia
começou a reverter a direção desta guerra. A Rússia continua a atacar,
semeando morte e destruição, cometendo crimes de guerra hediondos, mas
há quase meio ano o moral dos ucranianos não foi quebrado. O moral do
exército russo, em contraste – como sugerem os dados de inteligência –
está se a tornar cada vez mais fraco. O exército está a sofrer perdas
muito sérias. Os suprimentos de armas e outros equipamentos não são
inesgotáveis, e a sua produção pela indústria sancionada será cada vez
mais difícil.
Devemos,
portanto, apoiar a Ucrânia na sua luta para reconquistar os territórios
que lhe foram tomados e forçar a Rússia a recuar. Só então será
possível o diálogo real e o fim desta guerra – e não apenas uma
interrupção temporária que antecede a próxima agressão. Somente este fim
significará a nossa vitória.
Portanto,
precisamos apoiar a Ucrânia para recuperar o seu território perdido e
forçar a Rússia a recuar. Só então será possível um diálogo real e uma
guerra terminar de tal forma que signifique o seu verdadeiro fim — e não
apenas uma pequena pausa antes da próxima agressão. Somente este fim
será nossa vitória.
Devemos
também derrotar a ameaça do imperialismo dentro da UE. Precisamos de
uma reforma profunda que traga de volta o bem comum e a igualdade ao
topo dos princípios da União. Isso não acontecerá sem uma mudança de
ótica – são os Estados-Membros, e não as instituições da UE, que devem
decidir sobre as orientações e prioridades da ação comunitária, porque
as instituições são criadas para os estados e não os estados para as
instituições. A base para a cooperação deve ser sempre o desenvolvimento
do consenso, em vez da dominação do mais forte sobre o resto.
A
situação atual força-nos a pensar de forma completamente nova. Devemos
ter a coragem de admitir que a UE não teve um desempenho como deveria
face à crise do Covid e à guerra em curso. O problema, no entanto, não é
que estamos seguindo o caminho da integração muito lentamente e que
devemos acelerar o processo rapidamente. O problema é que o próprio
caminho está errado. Às vezes, em vez de dois passos à frente, vale a
pena dar um passo atrás e colocar as coisas em perspetiva. A perspetiva
de voltar aos princípios que organizam a comunidade europeia parece a
coisa mais certa, pois não se trata de minar os alicerces da UE, mas de
fortalecê-los em vez de construir em sentido contrário. A Europa precisa
de esperança mais do que nunca. E a esperança só pode ser encontrada no
retorno aos princípios, não no fortalecimento da superestrutura
institucional.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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