Os cientistas acreditam que uma vantagem da técnica seria a clonagem de órgãos do paciente que irá recebê-los, eliminando a rejeição pelo sistema imunológico. Eli Vieira para a Gazeta do Povo:
Um novo estudo
conduzido por cientistas britânicos, americanos e israelenses teve
sucesso em produzir embriões de camundongos a partir de células-tronco,
sem necessidade de fecundação ou até de útero. Fruto de uma década de
tentativas, os embriões apresentam coração com batimentos e rudimentos
de cérebro, um resultado que pode levar ao cultivo de órgãos humanos em
laboratório para transplante. Uma versão preliminar do artigo com a
descoberta foi publicada na revista Nature, na última quinta-feira (25),
trazendo novamente ao debate a ética no uso de células-tronco
embrionárias.
Os
cientistas acreditam que uma vantagem da técnica seria a clonagem de
órgãos do paciente que irá recebê-los, eliminando a rejeição pelo
sistema imunológico. Fundador da empresa de biotecnologia israelense
Renewable Bio e um dos autores do estudo da Nature (além de líder de outro estudo
similar publicado na revista Cell), Jacob Hanna disse à Sky News
Austrália que quer replicar os resultados usando células humanas —
incluindo as de seu próprio organismo.
Pesquisador
no Departamento de Genética Molecular do Instituto Weizmann em Israel,
ele crê que os problemas éticos poderão ser resolvidos se os embriões
sintéticos humanos não tiverem pulmões, coração ou cérebro. O diretor
executivo da Renewable Bio, Omri Amirav-Drory, disse que a empresa não
pretende prometer coisas demais, nem assustar.
Além
do Instituto Weizmann, o estudo foi conduzido por cientistas da
Universidade de Cambridge, no Reino Unido, e outras instituições como o
Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech). A novidade de
desenvolvimento dos fundamentos do cérebro é o que mais empolga os
pesquisadores. “Isso abre novas possibilidades para estudar os
mecanismos de neurodesenvolvimento em um modelo experimental”, afirma
Magdalena Zernicka-Goetz, professora de biologia, engenharia biológica e
desenvolvimento de mamíferos em Cambridge e no Caltech, em cujo
laboratório foi realizado o experimento. “É inacreditável que fomos tão
longe. Esse tem sido o sonho da nossa comunidade por anos, e o maior
foco do nosso trabalho por uma década, e finalmente conseguimos”,
comemora.
O debate ético
Em
entrevista ao jornal britânico The Guardian, Jacob Hanna disse que os
embrioides (que têm semelhanças, mas não trazem a identidade completa de
um embrião) não conseguem se desenvolver em camundongos completos e por
isso não são “reais”. Porém, como no caso da criação de uma célula
“sintética” há uma década pelo famoso bioquímico e empresário americano
Craig Venter, que competiu com o governo americano no começo dos anos
2000 para sequenciar o genoma humano, o que está sendo chamado de
“sintético” na verdade é ainda, na maior parte, feito pela natureza.
Para
quem considera que a vida humana existe já no zigoto, a primeira célula
do organismo resultante da fecundação entre espermatozoide e óvulo
(evento também chamado de “concepção”), ressalvas como a de Hanna a
respeito de evitar o desenvolvimento do cérebro não fazem sentido.
Inclusive porque no estudo divisor de águas publicado na Nature o
desenvolvimento do cérebro no embrioide roedor é um dos principais
resultados aplaudidos.
No
começo do milênio o debate do uso de células-tronco embrionárias
eclodiu nos Estados Unidos. De um lado, ativistas como o ator
tetraplégico Christopher Reeve, já falecido, viam nessas pesquisas uma
esperança para pessoas paralisadas voltarem a andar. A posição tem
correlação com uma defesa do aborto em fases iniciais da gestação, uma
vez que muitos nesse grupo acreditam que o início do indivíduo humano
está na formação do cérebro, o que tornaria permissível a interrupção de
fases anteriores — para a pesquisa inclusive.
Na
revista Bioethics, em 2003, o filósofo moral da Universidade de Oxford
Julian Savulescu faz a concessão, para fins de argumento, que o embrião é
uma pessoa. No entanto, ele acredita que em alguns casos “matá-lo é
justificado”, e esses casos seriam a possibilidade de pessoas inocentes
se beneficiarem da pesquisa com células-tronco derivada das mortes e a
possibilidade de suas chances de sobrevivência serem maiores em um mundo
em que essa pesquisa é conduzida. O filósofo chama essa abordagem de
“matar para reduzir riscos”. Ele pensa que a concepção de justiça do
filósofo John Rawls, que nos convida a pensar que sociedade seria justa
sob um “véu da ignorância” de qual posição teríamos nela, “endossa em
alguns casos matar uma pessoa para salvar outra quando ambas de outra
forma morreriam”, explica.
Do
outro lado da questão está, por exemplo, a Academia Pontifícia para a
Vida, do Vaticano, que publicou no ano 2000 uma declaração. “O primeiro
problema ético”, diz o documento, “pode ser formulado assim: É
moralmente lícito produzir e/ou usar embriões humanos vivos para a
preparação de células tronco embrionárias? A resposta é negativa”.
O
professor de filosofia Jason T. Eberl, do Centro de Bioética da
Universidade de Indiana, EUA, aplica em um livro de 2006 princípios da
filosofia de Tomás de Aquino à bioética. Eberl mostra que os mesmos
princípios tomísticos são aplicados com diferentes resultados por
diferentes pensadores. Enquanto alguns tomistas como Norman Ford e
Joseph Donceel defendem que antes da implantação uterina ou a formação
do córtex cerebral “um ser humano não existe porque o embrião não
recebeu uma alma racional”, outros, como o teólogo americano Benedict
Ashley, pensam que o embrião “é um ser humano, pois só requer um
ambiente uterino receptivo para se desenvolver em um ser pensante
racional”. Eberl concorda com Ashley e defende que a alma racional está
presente desde o zigoto.
Como a descoberta foi possível?
Uma
razão de Zernicka-Goetz e seus colegas estarem estudando as primeiras
fases do desenvolvimento embrionário é entender por que algumas
gestações terminam em aborto espontâneo nesse período. “O modelo
embrionário das células-tronco é importante porque nos dá acesso à
estrutura de desenvolvimento em um estágio que normalmente é escondido
de nós por causa da implantação do pequeno embrião no útero da mãe”,
explica a cientista. Tendo acesso a essa estrutura, os cientistas podem
então desligar alguns genes para ver o seu efeito no desenvolvimento e
associar a problemas já conhecidos. O estudo já relata alguns resultados
nesse sentido.
Para
as pesquisas, os cientistas utilizaram três tipos de células
individuais para reconstruir os embriões. Um tipo dá origem aos tecidos
do organismo do camundongo, e os outros tipos, chamados de
células-tronco extraembrionárias, fazem duas estruturas importantes para
o desenvolvimento do embrião: a placenta e o saco vitelino, dentro do
qual ele é abrigado.
As
células foram postas em meio de cultura e espontaneamente se juntaram e
se replicaram, formando embriões. Os pesquisadores ajudam o processo,
ligando genes específicos coordenadores do desenvolvimento. Até então, o
resultado era um embrião rudimentar apelidado de “gastruloide”, com um
tubo neural (precursor do sistema nervoso) e os rudimentos do sistema
digestivo. Desta vez, os cientistas conseguiram estimulá-los para além
dessa fase, ao ponto de formarem coração com batimentos e estruturas
mais complexas na direção da formação do cérebro. O produto do estudo
são embriões sintéticos semelhantes a embriões naturais de camundongos
com oito dias e meio de desenvolvimento. Ao chegar nesse estágio, eles
param de se desenvolver. Uma meta dos pesquisadores é ampliar o período
de desenvolvimento.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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