Livro de 2019 entrelaça biografias do político e do escritor que lutaram pela liberdade mesmo estando em diferentes lados do espectro político. Elias Thomé Saliba para o Estadão:
Biografias
de grandes personagens da história sempre se revelaram tarefas
desanimadoras: porque não basta narrar o que uma pessoa fez no passado –
é necessário mergulhar naquele tempo e deslindar um conjunto de
processos mentais muito peculiares, do qual nem mesmo o biografado se
mostrava ciente. Também não pode se ater obsessivamente apenas ao
curriculum vitae do que foi realizado, é preciso trazer à tona aquilo
que o personagem não fez: seus projetos inviáveis, seus desejos
inexequíveis, suas apostas perdidas. Mais ainda: para dar alguma
profundidade analítica e um pouco de perspectiva comparada à biografia, é
necessário ao biógrafo distanciar-se do passado e retornar ao presente.
Se tais dificuldades são inerentes às biografias de apenas um
personagem, imaginem realizar uma biografia comparada de figuras como
Churchill e Orwell! É o que faz, de forma prestimosa e aberta, Thomas
Ricks no recente Churchill & Orwell: A Luta pela Liberdade.
A
primeira vantagem de Ricks é que ele não esconde uma certa empatia ou,
pelo menos, algumas afinidades eletivas com os biografados, já que eles
se tornaram tema predileto para o jornalista (que cobriu a Guerra do
Iraque, a partir de 2003) quando descobriu que tanto Churchil quanto
Orwell também haviam atuado quase como correspondentes de guerra: o
primeiro na Guerra dos Bôeres (1899-1902) e o segundo na Guerra Civil
Espanhola (1936-1939).
Muito
se escreveu e se publicou sobre os dois personagens, mas de forma
bastante desigual: muito mais sobre Churchill e menos sobre Orwell. Há
uma autentica biblioteca churchilliana, com centenas de publicações,
nada comparável à diminuta orwelliana. Talvez porque a obra tenha sido
equivocamente apropriada pelos conservadores, o fato é que Orwell não
tem sido objeto de muitas pesquisas acadêmicas – embora, teses inteiras
foram escritas apenas sobre os detalhes da sua ascensão póstuma, já que
na última década ele tinha voltado ao centro do palco, com livros
importantes de gente como Irving Howe, Christopher Hitchens e tantos
outros.
Mais
do que Churchill, contudo, o estrelato póstumo de Orwell subiu tão alto
a partir da década de 1980, que acabou por perturbar bastante a sua
rotulagem política Ao atribuir suas próprias opiniões ao objeto de
analise, Norman Podhoretz, por exemplo, acabou caindo na armadilha da
crítica literária, argumentado, em 1983, que o tema essencial de Orwell
eram os “rotundos fracassos da intelligentsia de esquerda”. Em sondagem
criteriosa, da trajetória e da obra do escritor, Ricks mostra, ao
contrário, que o eixo central foi o abuso do poder no mundo
contemporâneo pela esquerda e pela direita; que a vontade de poder é
decisiva, mas a vontade de obedecer também é um inimigo mortal – por
isso, alguns regimes são acolhidos não a despeito de sua irracionalidade
e crueldade, mas graças a elas.
Churchill
e Orwell eram bastante diferentes: o primeiro, nascido 28 anos antes,
viveu quase quinze anos a mais do que o escritor. Eles jamais se
cruzaram, mas se admiravam mutuamente à distância: quando chegou o
momento de escrever 1984, Orwell batizou seu protagonista de Winston, e,
após a sua publicação, consta que Churchill gostou tanto do livro que o
leu duas vezes. Ricks emiuça as biografias completas, mas concentra-se
no período crucial das duas vidas, as décadas de 1930 e 1940 - que
começa com a ascensão dos nazistas e vai até o rescaldo da 2.ª Guerra
Mundial. Cada um a seu modo, ambos se debateram com as mesmas grandes
questões: Hitler e o fascismo, Stálin e o comunismo, os Estados Unidos e
seu intuito de substituir a Grã-Bretanha como potência hegemônica.
Entre os eventos mais importantes que o livro acompanha minuciosamente, o
mais decisivo foi o pacto nazissoviético em 1940, que durou quase um
ano e que produziu uma espécie de curto-circuito nas trajetórias
intelectuais tanto de Churchill quanto de Orwell.
Churchill
possuía notável presciência da conjuntura bélica mas, como ele próprio
reconhecia, “falava demais, até sem precisar”. Mas manteve aquela mais
alta capacidade de todo líder político, de guardar silencio nas horas
mais difíceis e cruéis dos dilemas diplomáticos: quando encontrou-se com
Stálin e Roosevelt já havia sido informado da execução de 20 mil
oficiais poloneses em Katyn – mas, teve que calar-se frente ao seu
aliado de momento. O que não o impediu de chorar por aquele bárbaro
crime, sozinho, no seu quarto, logo pós o encontro oficial. Já Orwell
não era tão bom de fala quanto Churchill, mas seu programa sobre
“literatura e totalitarismo”, irradiado pela BBC em maio de 1941, foi
exemplar: “a peculiaridade do estado totalitarista – dizia - é que
apesar de controlar o pensamento, não o fixa. Estabelece dogmas
inquestionáveis, e altera-os de um dia para outro. Precisa dos dogmas,
porque precisa da obediência absoluta dos seus súditos, mas não pode
evitar as mudanças, que são ditadas pelas necessidades da política do
poder. Autoproclama-se infalível, e ao mesmo tempo ataca o próprio
conceito de verdade objetiva.” Tanto quanto Churchill e talvez de forma
mais dramática do que ele, Orwell compreendia que o controle do
pensamento não é apenas negativo, mas positivo: ele não apenas impede
uma pessoa de expressar – ou mesmo de ter – certas ideias, mas dita o
que ela deve pensar, cria uma ideologia para ela e tenta governar sua
vida emocional. Desta espécie de iluminação, nasceriam dois dos seus
livros mais brilhantes.
Ricks
presenteia o leitor com uma escrita fluente – e talvez tenha se
inspirado nos seus próprios personagens, hábeis e extremamente fluentes
na escrita. As Memórias de Churchill podem não ser grande coisa em
termos de História, mas, até hoje, constituem uma narrativa literária
memorável de alguém que, afinal, levou o Nobel de Literatura em 1953. Já
Orwell cultivou o incrível hábito de ler em voz alta, para sua esposa,
alguns de seus escritos, pelo menos até A Revolução dos Bichos. E
Churchill aubscreveria aquelas célebres seis regras expostas por Orwell
para uma boa redação – as quais, certamente podem ser seguidas ainda
hoje: “nunca use uma palavra longa quando uma curta dará conta do
recado”; ou “se é possível cortar uma palavra, corte-a sempre”; ou,
ainda: “nunca use uma metáfora ou outra figura de linguagem que está
acostumado a ver impressa”; e a última – de um bom senso impagável:
“Infrinja qualquer destas regras antes de dizer alguma barbaridade”.
Após
a guerra, o ministro inglês declina consideravelmente: em passagem por
Monte Carlo, recebe um inesperado aperto de mão Frank Sinatra que diz
“há 20 anos que eu queria fazer isso.” – e Churchill reage espantado:
“mas, quem é este sujeito?”. Num almoço festivo, confunde o músico
Irving Berlin, autor de hits como White Christmas, com o filósofo Isaiah
Berlin e considera o músico um tanto “chato e esquisito”. Em 1946,
Orwell, já tuberculoso e abatido pela morte recente da mulher, alugou
uma casa nos confins de uma ilha escocesa, onde esperava morrer – mas
não antes de terminar a escrita do seu ultimo livro, que ele terminou em
1948, dando-lhe um título que foi uma simples inversão daquele mesmo
ano: 1984. O livro foi publicado no ano seguinte, mas ele não viveu
tempo suficiente para saber como tinha sido a reação dos primeiro
leitores. “As críticas foram esmagadoramente entusiásticas, mas com
gritos de horror sobrepondo-se aos aplausos” – foi o comentário do New
York Times, em 1949.
Churchill
virou exemplo de lider político para tudo e para todos, embora suas
frases e tiradas, muitas falsamente atribuídas a ele, tenham virado
folclore. Ricks omite, por exemplo, que o 12 mil dólares de honorários
da palestra de Churchill no Bond Club de Nova York, em 1932, foram pagos
por Sir Harry McGowan, presidente de um conglomerado britânico que
produzia fertilizantes, pólvora, TNT, bombas, munição e gás venenoso.
Tortuosos caprichos da biografia. Seja como for, Churchil virou um imã
totêmico capaz de atrair milhares de interpretações, das mais
disparatadas às mais elogiosas, o que resultou em centenas de livros,
uma autentica biblioteca churchilliana. Em 1999, na enquete da BBC sobre
o “homem do milênio”, ele só perdeu para Shakespeare.
Meio
século antes da internet tornar-se a fonte de informações por
excelência, Orwell profetizou, entre outras coisas, o que se chama,
hoje, exageradamente, de “pós-verdade. O Ministério da Verdade, em 1984,
agência oficial encarregada de falsificar arquivos históricos de acordo
com os interesses do governo, também produzia contraconhecimento, como o
célebre 2+2=5. Com o advento da era digital, Orwell virou uma espécie
de celebridade, traduzido até para o tibetano e, quase sempre, na lista
dos livros mais vendidos. Ricks manteve um “alerta Google” relativo ao
nome “Orwell”, no período de escrita do livro, que apresentou um fluxo
constante, diário, de mais de 50 citações sobre o escritor em dezenas de
suportes, digitais, fílmicos ou impressos. Orwell virou uma espécie de
evangelho, do qual se pode retirar qualquer coisa para bater num
adversário. O livro de Ricks é não apenas necessário, mas estranhamente
atual, menos pelos usos indevidos que nossa época produz, tanto de
Churchill quanto de Orwell, mas sobretudo pela aposta intransigente e
teimosa, de duas figuras exemplares, na liberdade de pensamento e na
absoluta primazia dos fatos na busca da verdade.
*Elias Thomé Saliba é historiador, professor titular da USP e autor, entre outros livros, de Raízes do Riso
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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