Toda lista desse tipo é feita para, lá vem o clichê, “gerar polêmica” — e, num mundo de internet e redes sociais, estimular cliques e atrair mais acessos para os sites noticiosos. Ruy Goiaba para a Crusoé:
No
início do mês, a Folha publicou uma lista de 200 livros “para entender o
Brasil” — indicados, diz o jornal, por “169 intelectuais da língua
portuguesa” (sim, por incrível que pareça encontraram 169 intelectuais
por aqui: pelo visto, difícil foi achar esse unzinho que faltou para dar
número redondo). O gancho eram os 200 anos da Independência, que serão
completados em 7 de setembro se tiver sobrado algo do Bananão até essa
data. Aliás, outro dia vi um outdoor com os dizeres “Parabéns, Brasil! –
1822-2022”. Ou seja: o país morreu mesmo, rest in peace, pelo menos
ganhamos umas Copas aí. Mas divago, desculpem.
Toda
lista desse tipo é feita para, lá vem o clichê, “gerar polêmica” — e,
num mundo de internet e redes sociais, estimular cliques e atrair mais
acessos para os sites noticiosos. Na da Folha, a própria ideia de
“livro” é bastante elástica, já que a lista inclui as letras de
“Sobrevivendo no Inferno”, o disco dos Racionais MCs, e o songbook de
Tom Jobim. Mas a principal novidade é a forte presença de pautas
étnicas/raciais e de gênero: “Quarto de Despejo”, de Carolina Maria de
Jesus, aparece em primeiro, à frente de “Grande Sertão: Veredas”. O
romance de Guimarães Rosa, por sua vez, empata em indicações com “A
Queda do Céu”, livro do líder yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo
francês Bruce Albert.
Tudo
muito bom, tudo muito bem, há livros ótimos na lista, MAS (vocês sabem
que o que vem depois do “mas” é essencial) um pedaço considerável do
Brasil ficou de fora dela. Um dos problemas de escrever uma coluna
semanal é que você se arrisca a ver aparecer outro texto que, publicado
antes do seu, diz exatamente aquilo que você estava querendo dizer: no
meu caso, a coluna de Gustavo Alonso na própria Folha. Autor de um livro
sobre música sertaneja e modernização brasileira, Alonso é uma espécie
de “reserva ecológica” do sertanejo em meio a uma pauta cultural
geralmente produzida para (e por) gente cool dos grandes centros
urbanos. É o mesmo colunista que, em 2021, virou saco de pancada nas
redes em razão de seu texto sobre a morte de Marília Mendonça.
“Se
nos restringirmos à lista produzida pela Folha”, escreveu Alonso no
último dia 13, “(…) vivemos no país do samba, da bossa nova, do
tropicalismo e do rap. E só. Seguimos sem entender o país que canta
sertanejo, dança axé, rebola com o funk e idolatra o pagode”. Isto é,
vivemos no país do “bom gosto” sancionado por uma classe média-alta
universitária, que se surpreende (e não me excluo) com a imensa
popularidade de cantores como Marília quando algum deles morre. Nem o
funk carioca, sobre o qual há produção teórica desde os anos 80, entrou
na relação — quanto mais axé, pagode e sertanejo, estilos superpopulares
dos quais o pessoal descolado tem nojinho. Você pode até achar que o
mundo do neossertanejo e dos agroboys é todo bolsonarista, mas não
deveria ter a pretensão de “entender o Brasil” sem incluí-lo na equação
(a propósito, a não ser que eu tenha perdido algo, a lista da Folha tem
zero livro sobre os evangélicos).
O
colunista lembrou ainda “Eu Não Sou Cachorro, Não”, o livro de Paulo
César de Araújo sobre as relações entre a música cafona dos anos 70 e a
ditadura militar, que desfaz vários mitos: mostra que medalhões da MPB
“resistiram” ao regime bem menos do que gostariam de admitir e que
alguns artistas ultrapopulares “alienados” sofreram, no mínimo, tanta
censura quanto os aceitos pela intelligentsia (Odair José teve mais
músicas censuradas que Caetano Veloso, por exemplo). Os “cafonas” de
origem periférica também abordavam, em geral mais diretamente que a MPB,
temas-tabu, como prostituição (“Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, do já
citado Odair) e homossexualidade (Agnaldo Timóteo e sua “Galeria do
Amor”). Nem preciso dizer que, na lista da Folha, ninguém se lembrou da
obra de Araújo: o universo de Odair José costuma ser barrado pelos
porteiros nesses ambientes, exceto quando ele e outros são abraçados por
algum artista cult.
Entendo
plenamente a depressão de quem acorda cercado de Brasil por todos os
lados e procura evitar ao máximo fazer contato visual com o país. Mas
não me venham dizer que essa relação de 200 livros é “para entender” o
Bananão. Ela é excelente, porém, para entender outra coisa: a bolha em
que vive quem a fez.
O
casamento de Lula (“enlace”, “boda”, aquelas palavras que a revista
Caras usa quando precisa escrever “casamento” 200 vezes na mesma página e
quer um pouco de variedade) já deu um gostinho do que vai ser a segunda
vinda do Deus-Sol. Houve gente escrevendo “deixem Lula se casar em
paz”, como se ele mesmo não quisesse fazer do evento um ato de campanha —
o “amor” contraposto ao “gabinete do ódio” de Jair Bolsonaro —, e
outros repetindo a sacadinha “vocês queriam que ele se casasse na laje,
servisse Itaipava” etc., que não fica mais engraçada a cada repetição.
Preparem-se: depois de anos de merecidas pauladas na Bolsofamília, outra
coisa que retornará triunfalmente será o humor a favor.
É, meus amigos, parece que aquela história de “Lula livre” realmente acabou
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