Deveria haver, neste momento, um intensa investigação das razões da engorda feminina. A geração nascida a partir de 1995 é chamada de millenial, e se diferencia das anteriores por ter crescido com internet. Bruna Frascolla parda a Gazeta do Povo:
Não
sei vocês, mas eu fico prestando atenção ao carrinho de compras alheio
quando estou na fila. Quase sempre está à frente uma gorda com
salgadinhos no carrinho. Ou a Providência tramou para colocar quase
sempre uma gorda com salgadinhos na minha frente na fila do caixa, ou
tais personagens têm grande frequência estatística, de modo que basta
entrar na fila do caixa para ter uma à frente. Fico com esta última
hipótese. Noto ainda que o fato de a pessoa à frente ser quase sempre
uma mulher é um indício de que o papel tradicional de cuidar da casa
ainda cabe ao sexo feminino, a despeito do ingresso maciço da mulher no
mercado de trabalho e do aumento do número de solteiros.
O
que me levou a bisbilhotar o carrinho alheio foi justamente a
intrigante frequência das gordas que não pareciam velhas o suficiente
para terem ganhado peso na menopausa. Como o peso tem uma inegável
relação com a alimentação, nada como uma boa olhadela no carrinho para
encontrar uma explicação. Já vi até uma com o carrinho bem cheio tirar
itens por falta de dinheiro. Dos dois frangões congelados, um sai. A
vistosa quantidade de pacotes de salgadinho, porém, é sagrada. Tão
sagrada quanto um maço de cigarros, talvez.
Conjecturo
que o preço do salgadinho talvez seja parte da explicação. É barato,
mas uma pessoa desregrada come de uma vez. Então precisa de mais e mais
pacotes, de modo que o efeito sobre o orçamento acaba parecendo o do
crack, já que a pedra é baratinha, mas ninguém usa uma pedra só. Some-se
isso à incapacidade de fazer cálculos, e imagine-se a dimensão que um
pacote de salgadinho diário terá sobre o orçamento e a saúde de quem
ganha um salário mínimo.
Números do IBGE
Mas vamos aos números oficiais. Segundo o IBGE (vejam na página 37 deste PDF aqui),
em 2019 mais de um quinto (22,9%) das brasileiras de 15 a 17 anos
estava acima do peso, contra 16% do sexo masculino da mesma faixa
etária. À página 39, encontramos as estatísticas de sobrepeso das demais
faixas etárias, que vão de 18 a “60 anos e mais”. Ao todo, 60% da
população brasileira está acima do peso, sendo 57,5% dos homens e 62,6%
das mulheres (pelo jeito, os de IMC normal podemos nos declarar minoria e
pedir cota). No global, a discrepância entre os sexos não é tão grande.
É possível apontar uma faixa etária mais gorda do que todas as outras:
40 a 59 anos (70%), contra 57,6% do grupo entre 25 e 39 anos, e 64,4% do
grupo de 60 para cima. Como a alteração no metabolismo faz muita gente
engordar com a idade, deve haver uma explicação sociocultural para haver
uma faixa etária mais gorda do que as demais. Em 2019, esse grupo gordo
compreendia gente nascida entre 1960 e 1979 – época coincidente com a
revolução sexual e o ingresso maciço da mulher no mercado de trabalho.
Isso
fez com que não houvesse mais horários fixos para a família comer
junta. Nesse ritmo, comer não é uma decisão individual. Suponho que isso
iniba o hábito de comer por compulsão. O fast food costuma ser culpado
pela engorda da população, mas no Brasil dessa época fast food era luxo e
as famílias de classe média contratavam empregadas domésticas. As
mulheres de classe baixa sempre trabalharam fora, então suponho que o
que conte mais seja desvalorização do ritual familiar de sentar à mesa e
comer juntos. A empregada observa que na casa da patroa cada um come a
hora que quer e logo se empenha em levar esse hábito tão moderno para a
própria casa, onde a avó na certa cuida de uma porção de netos.
A
outra coisa interessante de notar é que a discrepância entre os sexos é
acachapante entre os adolescentes e jovens adultos. Como vimos acima,
na faixa de 15 a 17 anos a diferença é de 6,9% entre os sexos. Na faixa
de 18 a 24 anos, a diferença é de incríveis 16%: 41,1% do sexo feminino
contra 25,7% do masculino. Na faixa etária seguinte, que é exceção, há
1,3% a mais de homens gordos que mulheres. Nas demais, as mulheres
ganham por 6% (40 a 59 anos) e 2% (60 pra cima). Ao que parece,
portanto, as brasileiras nascidas a partir de 1995 têm forte propensão a
ficar acima do peso. Isso tem que ter uma explicação sociocultural.
Impacto da oferta?
Voltemos
às minhas elucubrações no caixa. Vendo a gorda cheia de salgadinhos, me
ocorreu observar o preço das guloseimas. Reconheci junto ao caixa,
nesta cidade do interior do Nordeste, num mercado frequentado pelos
habitantes dos morros, as minhoquinhas gelatinosas e coloridas que eram
um baita luxo na minha infância. Ia-se uma vez na vida e outra na morte
ao cinema Multiplex, no shopping Iguatemi, famoso entre adultos por ter
uma qualidade sonora diferenciada, e entre as crianças por vender doces
coloridos e azedinhos, em vez de só pipoca. Ao menos eu queria ir pelas
minhocas, não pelo filme. E não achava as benditas minhocas em lugar
nenhum; eram as guloseimas do Multiplex.
O
pacote de lentilhas no meu cesto estava pela hora da morte, mas as
minhocas coloridas estavam uma bagatela. É claro que isso só vale
comparando números, pois um pacote de meio quilo de lentilhas dá para
várias refeições, enquanto que as minhocas não dão para nenhuma. De todo
modo, o pobre que não pensa bem e quer agradar os filhos vai levar as
minhocas – que vão durar muito pouco.
Toda essa afluência de oferta tem que ter algum impacto sobre as decisões. No documentário inglês do ano passado Tricked into Eating More,
os vilões são a indústria alimentícia e os supermercados. Eles usam
aqueles estudos em que os ratinhos trocam o vício cocaína pelo vício em
açúcar. Volta e meia
algum pesquisador usa ratos para constatar que ambas as substâncias são
viciantes. Segundo a explicação lá deles, a indústria alimentícia cria
alimentos feitos para viciar: são pouco nutritivos e ricos em
substâncias que viciam o paladar. Achei particularmente relevante eles
mostrarem o dinheiro que é gasto em pesquisas da indústria alimentícia
para cativar o cliente, com um monte de cientistas de jalecos brancos
olhando o aspecto de iogurtes e decidindo quantos corantes e
emulsificantes devem ser testados. Muito se fala em fomento privado à
pesquisa sem se levar em conta que pesquisas podem ser feitas contra o
interesse da população geral, por corporações predatórias. Por outro
lado, aqui, onde a suposta pesquisa é quase toda pública, fica-se
fazendo o enésimo artigo para provar que o capitalismo é mau ou que
Paulo Freire tem razão. Precisamos de pesquisa pública comprometida com o
público, como a feita pela Embrapa no período militar.
Quanto
aos supermercados, eles dispõem os produtos de maneira a desestimular a
compra de produtos frescos e estimular o de produtos pré-preparados
cheios de sódio, mais práticos e viciantes. Enquanto isso, a indústria
vai criando infinitos sabores do mesmo produto, para que não haja o
risco de enjoar. Assim, o cidadão que vai a uma gôndola de iogurtes hoje
vai encontrar uma variedade muito maior do que na década de 90. E vai
poder passar um bom tempo mudando de iogurte para iogurte, ou tomando
mais iogurtes de sabores diferentes.
Paraíso da regulação
Os
europeus são bem mais preocupados com alimentação do que os
norte-americanos, e falar mal da alimentação deles por lá é um esporte
supranacional. Outro esporte supranacional europeu são as
regulamentações. Lá, onde há disposições burocráticas sobre a curvatura de pepinos e bananas,
uma eurodeputada propõe que os rótulos (banana tem rótulo?) indiquem de
um jeito bem chamativo a quantidade de gorduras, açúcares etc. As
corporações alimentares foram contra, e o projeto dela não passou.
Tentaram tratar a comida não-saudável como cigarro, e sobretaxar, mas
não passou. Além disso, eurodeputados preocupados tentam convencer a ONU
a considerar a obesidade um problema sanitário mundial, mas não
conseguem, outra vez, por causa do lobby. Sem surpresas: qualquer leitor
de Hayek sabe que mania regulatória serve para favorecer monopólio. É
mais fácil os reguladores supranacionais instituírem o salgadinho como
um direito das mulheres obesas a ser garantido pelo Estado e botar
tropas da OTAN contra o país que não quiser comprar salgadinho para
distribuir às mulheres.
Outro
fato curioso mostrado pelo documentário é o processo sofrido pela
Nutella por vítimas da sua propaganda: a empresa fazia um anúncio
alegando que Nutella faz parte de uma refeição balanceada. Tanto esse
episódio quanto a proposta dos rótulos presume que o cidadão seja um
idiota. Sejamos francos: ninguém acredita que Nutella faz parte de uma
refeição balanceada, nem que os alimentos super processados sejam
saudáveis. Se as empresas fazem rótulos e propagandas alegando o
contrário, é porque contam com a má-fé cúmplice do espectador, que
precisa se autoenganar para encher a cara de besteira. Posso pegar
qualquer cereal cheio de açúcar e escrever “rico em fibras”; ninguém
queira me dizer que o consumidor gordo acha que vai ficar saudável só
por comer algo “rico em fibras”. A demanda por mais e mais rótulos supõe
um cidadão incapaz de pensar, que precisa colher a assinatura de um
matemático depois de fazer uma conta de padaria.
Intervenção nenhuma?
Por
outro lado, fato é que intervenções públicas sobre hábitos privados são
admitidas. Usar camisinha é por exemplo. Não deixar água parada, idem. A
campanha antitabagista fez com que o PCC ganhasse um bocado importando
cigarros paraguaios, livres de sobretaxa, mas parece salutar a proibição
de propagandas voltadas para jovens. Além disso, os hábitos alimentares
de uma mulher dificilmente são pessoais: a mãe é quem costuma educar o
paladar dos filhos. Assim, uma geração de jovens gordas é indício de uma
geração vindoura de brasileiros gordos. Depois a expectativa de vida
cai e ninguém sabe por quê.
Deveria
haver, neste momento, um intensa investigação das razões da engorda
feminina. A geração nascida a partir de 1995 é chamada de millenial, e
se diferencia das anteriores por ter crescido com internet. Não
cometerei extravagância nenhuma se eu disser que as redes sociais afetam mais a saúde mental das meninas do
que dos meninos (este é um tema bastante insistido por Jonathan Haidt).
Tampouco cometerei alguma extravagância se disser que ansiedade é prevalente em mulheres e está associada à engorda.
A repercussão dos dados sobre a engorda no Brasil foi tímida. Em geral, tentam explicá-la através do baixo preço de alimentos engordativos. Essa
explicação não é suficiente, porque a engorda a partir dos millenials é
um fenômeno feminino. Além disso, esses alimentos baratos só são
baratos no curto prazo, como pedras de crack.
Mas a verdade é que os políticos já fariam alguma coisa se parassem de atrapalhar. Não é uma pouca-vergonha importar ativismo gordo?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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