Isso é constrangedor! — diz um doutorando em antropologia pela USP, que também viajou no tempo. Via Crusoé, a crônica de Alexandre Soares Silva
Um navio em alto mar. No porão, escravos estão sendo transportados para o Rio de Janeiro, onde serão vendidos.
Num
canto, vemos três crianças tristes e assustadas. Com a passagem dos
dias, para tentar vencer o próprio terror elas começam a brincar,
falando baixinho para não atrair a ira de ninguém. Em algum momento
começam até a se divertir um pouco, pulando corda com as correntes.
Imediatamente três adultos se aproximam. Estão vestidos à moda do século XXI, e estão furiosos.
—
Pulando corda com as correntes? Que palhaçada é essa? — diz a primeira
pessoa, J.S. (branca), uma cientista social que viajou no tempo e foi
parar ali. — Que violência simbólica nefasta é essa?
A
segunda viajante do tempo, uma professora de história com ênfase em
História do Brasil, História Cultural, Estudos afro-brasileiros,
História da moda, História de gênero e Ensino de História, berra:
—
Isso é impossível! Os relatos de escravizados mostram que as crianças
não brincavam nos navios negreiros. As condições são precárias, muitas
pessoas morrem no percurso. Que falta de respeito é essa? Não tem espaço
aqui para brincadeiras lúdicas!
—
Isso é constrangedor! — diz um doutorando em antropologia pela USP, que
também viajou no tempo. — O maior problema, para mim, é a romantização
deste período de terror da história do Brasil…
As
crianças param de brincar, aterrorizadas com os gritos. Ouvindo o
barulho, o feitor se aproxima com um chapéu numa mão e um chicote na
outra:
— Esses meninos estão causando problema?
A
cena acima, mais ou menos igual, menos as pessoas insuportáveis do
nosso século, foi descrita num livro infantil de José Roberto Torero,
Abecê da Liberdade, que era publicado e comercializado pela Companhia
das Letras.
Era
— até o dia em que umas poucas pessoas ficaram escandalizadas com essa
cena. Assim que recebeu quatro ou cinco e-mails reclamando dela, a
Companhia das Letras, depois de uma brava resistência de aproximadamente
14 segundos, mandou recolher o livro.
“Esta edição está fora de mercado e não voltará a ser comercializada”, disse a editora, em nota de 11 de setembro.
Uma
reportagem do UOL sobre o caso dá voz a três pessoas indignadas com o
livro, e elas são exatamente “J.S., cientista social“, descrita o tempo
todo como “(branca)”, mais um mestrando em antropologia pela USP e uma
professora de história com “ênfase em História do Brasil, História
Cultural, Estudos afro-brasileiros, História da moda, História de gênero
e Ensino de História”. E eles falam exatamente essas coisas que os
mostrei falando: “violência simbólica”, “não havia espaço ali para
brincadeiras lúdicas”, “romantização desse período de terror” etc etc.
A
cientista social J.S. (branca) também diz na reportagem: “Eu fiquei me
perguntando se passaria pela cabeça de alguém fazer a mesma cena com
crianças em Auschwitz, sabe?”. Bom, me perguntei isso também, durante um
segundo, e logo pensei no filme A Vida é Bela, como você também deve
ter pensado.
Mas
também pensei em Anne Frank, autora do famoso diário — a menina judia
que riu e brincou enquanto estava escondida dos nazistas, sem ter a
polidez de consultar antes mestrandos e cientistas sociais.
O que me levou a imaginar a seguinte cena:
1942.
Um apartamento em Amsterdam. A cientista social J.S. (sim, branca)
examina o apartamento, enquanto Anne Frank a observa com o coração aos
pulos. J.S. para na frente de alguns cartões postais presos na parede e
diz:
— O que é isso? Atrizes de cinema? Um pouco frívolo para este momento, não?
Anne Frank, desesperada:
— É do papai! É tudo o que ele tem! Por favor, não tira!
A cientista social J.S. (branca) ergue a mão para arrancar os cartões postais da parede, mas relutantemente deixa que fiquem.
Finalmente
chega outra família, os Van Daans, para ficar escondida no mesmo
apartamento, e a família de Anne Frank agora tem companhia. No jantar
dessa noite, o Sr. Van Daan conta uma história engraçada, e Anne e o
resto da família riem bastante. Ainda rindo, Anne Frank começa a
descrever a cena no seu diário.
Mas
então vê as expressões azedas nos rostos de J.S., do mestrando de
antropologia pela USP e da professora de história com ênfase em História
do Brasil, História Cultural, Estudos afro-brasileiros, História da
moda etc.
— Esse é um momento para rir? — diz J.S. (branca e incrédula).
— Achei uma violência simbólica de uma carga brutal — diz o mestrando pela USP.
Berrando
que é preciso parar com a “romantização da perseguição nazista”, a
professora de história com ênfase em etc salta e agarra o diário das
mãos de Anne Frank, dizendo que vai recolher a obra e que ela nunca mais
vai ser comercializada. Nunca mais!
E assim termina a noite, com Anne Frank chorando, e o seu caderno confiscado.
Confesso
que sonho acordado com a possibilidade de alguém pegar os três livros
mais vendidos da Companhia das Letras, digamos, e encontrar um problema
racial ou sexual num deles. Seria interessante se isso acontecesse, só
para ver se a editora teria tanta pressa para recolher algum desses
livros como teve para recolher o livrinho ingênuo, inofensivo e
obviamente bem-intencionado de José Roberto Torero.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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