Mas aplaudiremos o cientista que o criou como aplaudimos o Rei? Via FSP,
a crônica semanal de João Pereira Coutinho:
A
primeira vez que ouvi falar de trans-humanistas julgava que eram
extraterrestres que, nascidos no corpo errado, se sentiam seres humanos.
Erro
meu. Os trans-humanistas serão os nossos sucessores, da mesma forma que
o Homo sapiens é o sucessor do macaco. Sim, esses seres do futuro
poderão conservar alguns traços da nossa humanidade, mas serão uma
versão infinitamente melhorada de nós.
Esse, pelo menos, é o cenário que Adam Kirsch pinta no seu livro "The Revolt against Humanity:
Imagining the Future without Us" (a revolta contra a humanidade:
imaginando o futuro sem nós, em tradução livre). Ainda não li a obra,
mas o aperitivo que ele publicou na "American Scholar" permite antecipar o amanhã.
Eis
a tese: a Terra já não aguenta as predações dos pós-macacos (nós).
Podemos tentar regredir na escala da civilização e, sei lá, voltar para a
selva, vivendo como nossos antepassados há milhares de anos.
Mas
essa opção não é apelativa para quem se habituou a ter água encanada em
casa. Na impossibilidade de regredirmos, que tal progredirmos, como
sempre fizemos?
Nós,
humanos, somos limitados, estúpidos e dramaticamente violentos. Mas os
pós-humanos serão uma versão perfeita das nossas velhas carcaças.
Para que viver até aos 80 se podemos chegar aos 800 ou até abolir a morte?
Quem disse que temos só cinco sentidos quando podem existir mais cinco ou mais 50 ou mais 500?
Quem disse que um Q.I. de 140 era de gênio quando é possível atingir os 1.400 e envergonhar esse débil chamado Einstein?
Sem
falar dos corpos: alguns foram agraciados com corpos de Adônis, embora
isso nem sempre seja uma bênção. Sei do que falo, é um fardo enorme. Mas
por que não todos?
Um dos trans-humanistas de que Adam Kirsch fala, o conhecido Ray Kurzweil, já se está preparando para esse futuro glorioso. Todos os dias, toma 250 pílulas e faz seis terapias intravenosas por semana.
É
uma forma de se manter vivo, diz ele, até poder dar o salto para um
ciborgue, imagino eu. Espero que o ciborgue tenha melhor saúde mental do
que a velha cabeça de Kurzweil.
Calma, leitor, não vou estragar suas fantasias de imortalidade. Elas são mais velhas que o mundo e os trans-humanistas não são tão originais assim.
Nossos antepassados sempre sonharam com uma existência sem doença, sem sofrimento, sem morte, onde os humanos viveriam como deuses. Ler Hesíodo em "Os Trabalhos e os Dias" é a comprovação de que os trans-humanistas começaram lá atrás.
Além
disso, se a genética, a nanotecnologia e a robótica permitirem
melhorias no tratamento da doença, isso será apenas mais um capítulo na
longa história do progresso humano.
Nada
contra. Eu, por exemplo, não me importaria de aumentar certas partes do
meu corpo com material inquebrável. As pernas, digamos.
O problema é que a filosofia trans-humanista contém quatro erros óbvios, que parecem escapar aos seus entusiastas.
O primeiro erro está no seu historicismo infantil –a ideia de que o progresso é um dado adquirido e uniforme. Será?
Talvez.
Mas só se a humanidade não se autodestruir com uma guerra nuclear ou
qualquer outra catástrofe imprevista que nos jogue de volta à Idade da
Pedra. Nunca devemos subestimar a inteligência dos pós-primatas.
Por
outro lado, como garantir que um avanço tecnológico será, por
definição, um avanço moral? Os trans-humanistas partem sempre do
pressuposto de que os homens-máquina exibirão as nossas virtudes em grau
superior. Mas nunca admitem que os nossos vícios podem conhecer igual
upgrade.
O
terceiro erro é uma questão de perspectiva: o que para os
trans-humanistas são males intoleráveis (a morte, por exemplo) pode
representar, pelo contrário, qualidades importantes de uma existência
feliz. Sem a sombra do fim, será que existiria alguma urgência para
viajar, criar, amar, procriar, experimentar?
Duvido.
Como lembrava o filósofo Bernard Williams, o tempo infinito traz um
tédio infinito. Já imaginou passar os dias na praia, bebendo um chope
para sempre com um amigo de lata?
Finalmente,
que graça tem resolver um problema matemático, escrever um romance ou
bater um recorde olímpico porque alguém implantou em nós um chip
caprichado?
Não é o resultado que nos interessa; é o processo que conduz ao resultado, aquilo que Aristóteles designava por "florescimento".
Um
dia, haverá um robô que jogará melhor do que Pelé. Mas não será Pelé.
Estaremos dispostos a aplaudir o cientista que o criou da mesma forma
que aplaudimos a história, o esforço e o talento do senhor Edson Arantes
do Nascimento?
Postado há 3 hours ago por Orlando Tambosi

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