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A inveja é uma emoção reprovável que não imaginamos poder sentir; e que imaginamos prontamente nos terceiros que haja por perto. O nosso consenso sobre a inveja é realmente sobre os outros. Miguel Tamen para o Observador:
Politólogos
chegaram à conclusão de que a última palavra em Os Lusíadas é a palavra
“inveja.” A tese tornou-se consensual. Visto que o poema tem a
reputação de ser sobre Portugal, supõe-se também que a sua última
palavra não poderá deixar de conter uma descrição da característica mais
portuguesa do país: aquilo a que um estrangeiro chamou memoravelmente
“uma espécie de dor causada pelo sucesso aparente dos outros.”
Pode
espantar que este consenso sobre uma emoção reprovável seja tão ubíquo.
No Questionário de Camões que todos os anos as figuras públicas têm de
preencher antes das férias a resposta ao quesito “O que eu detesto mais
que tudo” é quase sempre “A inveja.” A razão é todavia fácil de
compreender. A inveja é uma emoção reprovável que não imaginamos poder
sentir; e que imaginamos prontamente nos terceiros que haja por perto. O
nosso consenso sobre a inveja é realmente sobre os outros.
A
superioridade e a fiabilidade de Os Lusíadas na descrição de
características portuguesas pode ser detectada pelo teste da última
palavra. Outras obras conhecidas de literatura portuguesa parecem ter um
valor descritivo menor. Os Maias acaba com “subia.” Menina e Moça com
“LAUS DEO.” A Morgadinha dos Canaviais acaba com “A Morgadinha dos
Canaviais.” São conclusões que só não são decepcionantes porque estes
livros não são Os Lusíadas. Um livro que acaba com “subia” não pode ser
de ajuda. A Morgadinha dos Canaviais, a julgar pela sua última palavra,
será aquilo a que no ramo se chama meta-ficção; também não é de fiar.
A
melhor maneira de perceber uma palavra é perceber a frase de que faz
parte: o que quem a usa está a querer dizer. No caso de Os Lusíadas será
precisa paciência, visto que a frase em questão não é curta; tem
oitenta e quatro palavras, e estende-se por doze versos. Tanto quanto se
pode perceber, nessa frase não se declara que em Portugal haja níveis
substanciais de inveja, ou qualquer outra coisa portuguesa. Reconhecemos
todavia nela um género literário autóctone: a Candidatura à Bolsa. Luís
de Camões (1524?-1580) dirige-se ao seu financiador putativo e
explica-lhe porque é que, caso lhe conceda a bolsa, o mecenas poderá
adquirir qualidades que até aí só lhe teriam ocorrido em sonhos.
A
mais importante das qualidades prometidas, esclarece Camões, é uma
inclinação castrense. Camões sugere que, por efeito de Os Lusíadas, o
seu financiador a adquirirá em grau tal que se transformará não apenas
numa reincarnação de Alexandre o Grande, como na de um Alexandre sem
qualquer inveja de Aquiles (Aquiles e Alexandre foram na Antiguidade
dois militares admiráveis.) Camões está a dizer que quem lhe der a bolsa
não terá inveja de ninguém; e por isso a descrever um mecenas em quem
Os Lusíadas extinguirão aquela que hoje consensualmente consideramos a
principal qualidade portuguesa. Acha no fundo que Os Lusíadas nos pode
transformar em estrangeiros.
Postado há 37 minutes ago por Orlando Tambosi
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