BLOG ORLANDO TAMBOSI
Há uma história que nos fala exatamente do quanto o respeito a princípios foi crucial no nascimento da moderna ideia da tolerância e dos direitos individuais. É a história de Voltaire. Fernando Schüler para a revista Veja:
Glenn
Greenwald é um jornalista consagrado, e por óbvio controverso. Nominado
um dos 100 pensadores globais pela Foreing Policy, anos atrás, é um
tipo difícil de enquadrar nas réguas tradicionais da política. Por estes
dias, suas posições vêm chamando a atenção. Em meio à escalada da
censura no Brasil, enquanto boa parte da imprensa se cala, ele defendeu a
liberdade de expressão como um valor universal. Disse que era preciso
preservar os direitos de todos, fossem “trumpistas, petistas,
terroristas em Guantánamo, ou bolsonaristas”. E com isso tocou na
ferida: direitos de bolsonaristas? Está de brincadeira?
De
quebra, fez uma crítica a essas pessoas “que o elogiam como o melhor
repórter do mundo quando seu jornalismo ajuda o partido delas, mas
imediatamente o atacam quando sua reportagem as prejudica”. O que mais
me chamou a atenção foi sua defesa incondicional de princípios, coisa
incomum por aqui. “Quem defende um princípio”, diz ele, “não está do
lado de nenhuma facção, à esquerda ou à direita”. Glenn carrega junto
com ele a tradição do Bill of Rights americano. Cultura por vezes
estranha na tradição latino-americana.
O
interessante foi o debate que surgiu com suas declarações. O primeiro
truque foi associar Glenn ao “bolsonarismo”, o não argumento que nosso
pensamento preguiçoso lança contra qualquer um que arrisque divergir da
tribo dominante. Aqui pelos trópicos, parece difícil aceitar a ideia
simples de que se pode discordar 100% de uma opinião, mas defender “até à
morte” seu direito à expressão. O segundo truque é dizer que Glenn
defende “prerrogativas americanas” e que “não estamos nos Estados
Unidos”. Também aí há um erro. Quem disse que nossa Constituição
autoriza a censura prévia? Ou deixa de proteger o devido processo, o
contraditório, que inclui o acesso de advogados aos autos de um
processo? Ou quem sabe a inviolabilidade de nossos representantes,
inscrita em seu Art. 53? Mais do que brasileiras, são prerrogativas
civilizatórias, próprias de qualquer república digna desse nome.
Há
ainda um terceiro truque, que consiste em associar quem defende a
liberdade de expressão ao apoio a “esses vândalos”. É a lógica do tudo
ou nada. Ou se defende, acriticamente, qualquer medida repressiva do
Estado, ou se está deixando de “defender a democracia”. Lógica absurda. É
evidente que se deve diferenciar quem usa da violência, bloqueando
estradas ou invadindo um palácio, de quem emite meramente uma opinião,
desprezível que seja, nas redes sociais. Diferenciar essas coisas é
parte essencial, em última instância, da fronteira que separa um regime
autoritário de uma democracia liberal.
A
visão de Glenn se situa em uma faixa estreita, nos dias atuais, a um só
tempo crítica das visões autoritárias que brotam na sociedade e do
autoritarismo que vem do Estado, via infração a direitos individuais. E
que termina por retroalimentar o radicalismo político. Gosto desse
caminho estreito. Já critiquei, aqui nesta coluna, a censura ao PCO, o
Partido da Causa Operária; ao economista Marcos Cintra, por fazer duas
ou três perguntas sobre as urnas eletrônicas; ou ainda ao empresário
Luciano Hang, por “não dizer nada” em um grupo de WhatsApp.
Ainda
agora baniram mais uma leva de brasileiros. Um deles foi o Nikolas
Ferreira, o jovem deputado mais votado do país. Qual foi exatamente seu
crime? Ele pediu que as investigações dos atos do dia 8 de janeiro
envolvessem também autoridades federais. Dançou. Um deputado deveria ser
inviolável em “palavras, opiniões e votos”, como diz a Constituição,
para, inclusive, pedir as investigações que julgar devidas. No Brasil de
hoje, foi calado. A maioria ri. Outros dão de ombros. Ainda outros
andam com medo. Essas coisas surgem sempre quando aceitamos que cabe ao
Estado decidir sobre a verdade, quando entra em cena o delito de opinião
e quando admitimos que os tribunais, que deveriam preservar a lei, ajam
com “ousadia” diante da lei, como leio por aí.
Há
uma história que nos fala exatamente do quanto o respeito a princípios
foi crucial no nascimento da moderna ideia da tolerância e dos direitos
individuais. É a história de Voltaire e o martírio de Jean Calas,
comerciante de Toulouse acusado de matar o próprio filho, em 1761. Calas
tinha 63 anos e era um protestante numa cidade marcada pelo fanatismo
católico. A acusação era frágil, mas ele foi condenado ao suplício e à
morte. Cada parte de seu corpo foi quebrada. Enfiaram um funil na sua
garganta, por onde despejaram 17 litros de água. Depois o colocaram na
roda, onde foi esticado até arrebentar. A tudo ele suportou repetindo
que era inocente. Sua obstinação tocou a alma de Voltaire. Ele viu
naquilo toda a barbárie do século, mas também a chama da dignidade
individual. Convencido de sua inocência, torna para si uma questão de
honra a reabilitação da memória de Jean Calas.
O
que encanta nesse episódio trágico é a atitude “absurda” de Voltaire.
Voltaire era um homem consagrado, havia acabado de publicar o Cândido, e
andava prestes a inaugurar seu Castelo de Ferney. E nem sequer conhecia
Jean Calas. Apesar disso, por dois anos, se dedicou à reabertura do
caso simplesmente em obediência a um princípio. Por fim conseguiu. Em
março de 1765 três anos depois do suplício, os juízes de Paris revisaram
a condenação, e a viúva de Calas foi recebida em Versalhes por Luis XV.
Na sequência, Voltaire escreve seu Tratado sobre a Tolerância. Afirma
princípios simples e até hoje válidos: a ideia de que todos merecem um
julgamento justo, que a tolerância é a via possível para vivermos em paz
e prosperar. E que é preciso superar o fanatismo, essa “sombria
superstição que induz as almas fracas a imputar crimes a qualquer um que
não pense como elas”.
A
política hoje substituiu a religião, como a paixão pública. A mensagem
de Voltaire permanece: abrindo mão de certos princípios, só nos resta o
universo incerto dos instintos, de nossas preferências e juízos
precários sobre o bem e o mal. Se no Brasil de hoje achincalhamos um
jornalista por defender a liberdade de expressão e o direito ao devido
processo, é porque estamos com um problema.
Se
aceitamos passivamente a volta da censura prévia, o banimento de
jornalistas e deputados da internet, ou coisas ainda piores, como o
bloqueio de contas bancárias, pressão econômica, censura a emissoras e
mesmo a prisão por delito de opinião, é porque estamos com um problema
bastante complicado. Algo que não será resolvido por uma razão
instrumental, que diz “é preciso esticar um pouco a Constituição porque
há um inimigo a ser derrotado”.
Lembrar
de Voltaire é fazer o percurso inverso, que nos vincula a certos
princípios feitos precisamente para frear nossos instintos. Princípios
que não são “americanos”, mas que estão todos lá, na Constituição e nas
leis brasileiras, cujo respeito é a única via possível para reconciliar
este país que por vezes mal conseguimos reconhecer.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 25 de janeiro de 2023, edição nº 2825
Postado há 9 hours ago por Orlando Tambosi
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