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O livro do príncipe Harry tem mais sentimentos que O Meu Pé de Laranja Lima, e não num bom sentido. Me peguei desejando que o príncipe William tivesse batido mais vezes no irmão menor. A crônica de Alexandre Soares Silva para a Crusoé:
Resolvi
ler o livro de memórias do Príncipe Harry, Spare (em português, O que
Sobra), pra ver se continuava monarquista depois disso.
É,
sou monarquista. Não um monarquista filosófico, reflexivo, sensato, com
quem até dê gosto conversar. Mais uma espécie de monarquista por
instinto. Não vou saber argumentar com você se você vier defendendo a
república, vou só sorrir e oferecer mais bebida.
Até
li os argumentos em defesa da monarquia, e sei alguns que não são
ruins. O problema é que, como os argumentos que provam a existência de
Deus, eles são bons mas não convencem ninguém. Nenhum argumento racional
convence ninguém de nenhuma coisa, jamais.
Você
já disse no meio de uma conversa: “Ah tá, entendi o seu ponto agora,
você tem razão, e eu estava errado”? Eu disse, uma vez, mas foi só pra
ver a cara de surpresa da outra pessoa. Quando percebemos o nosso erro
numa conversa, disfarçamos e fazemos algum esforço pra desperceber.
Nossos cérebros são muito eficientes em desperceber coisas.
Bom,
se os nossos cento e trinta e três anos de república não servem de
argumento irrespondível em favor da monarquia, nada serve. Se você olha
para esses cento e trinta e três anos de república (Revolta da Vacina,
dinheiro na cueca, José Sarney) e acha que a ideia de monarquia é que é
bizarra e ridícula, é inútil argumentar com você.
Mas
me deixe falar do livro do príncipe Harry. Estava enrolando pra entrar
no assunto porque o livro é tão chato quanto você imaginou que seria.
Mas quero só falar duas coisas:
1)
O Império Britânico foi construído à base do “stiff upper lip” — “lábio
superior rígido”, se formos traduzir literalmente (significando
estoicismo, austeridade, controle dos próprios sentimentos). Isso era
verdade especialmente para a aristocracia, onde qualquer demonstração de
sentimentos era considerada de mau-gosto (“coisa da classe média”). Mas
o príncipe Harry, um pouco seguindo a linha kitsch da mãe, a princesa
Diana, tem tão pouco controle dos sentimentos que seu lábio superior,
longe de ser rígido, parece estar num permanente ataque epiléptico. Tudo
no seu livro é sentimento, sentimento, sentimento. “Por que meu irmão
William não percebia como eu me sentia?” “Eu estava nervoso, lutando
para manter minhas emoções sob controle…” – e por aí vai, 416 páginas
disso.
Um
livro com mais sentimentos que O Meu Pé de Laranja Lima. E não num bom
sentido. Me peguei desejando que o príncipe William tivesse batido mais
vezes no irmão menor.
2)
Estou convencido que só três pessoas no mundo todo leram esse livro do
início ao fim: J.R. Moehringer, o escritor contratado pelo príncipe para
escrever o livro (e só leu o livro porque é inconveniente escrever de
olhos fechados); o próprio príncipe, que aposto que só leu o livro
quando foi gravar a versão em audiobook (dá pra ouvir a surpresa na sua
voz ao chegar em alguns trechos); e o primeiro resenhista que criticou o
livro para um jornal (seja ele quem for).
Todos
os outros jornalistas devem muito a esse primeiro e diligente
jornalista, o Jornalista Número 1, porque ele que se deu ao trabalho de
ler o negócio e citar os trechos mais salientes ou ridículos. Tudo que
os outros tiveram que fazer depois foi citar esses mesmos trechos. É o
meu método também. Corri os olhos pelo livro, li umas vinte páginas, mas
a verdade é que estou lendo uns livros tão bons (um romance de
espionagem e uma história da Grécia) que fui adiando o momento de ler a
porcaria do livro do príncipe e agora é tarde demais, de modo que vamos
fingir que eu sou a quarta pessoa no mundo que leu o livro.
A
informação mais chocante contida no livro do príncipe, e que vocês já
devem ter visto noticiado em algum lugar, é a de que ele estava em
Brasília na invasão do dia 8 de janeiro. Para citar direto do livro:
“…só
de zoeira (just for fun), segui a multidão pra dentro da Câmara dos
Deputados. Foi então que vi minha mãe, a princesa Diana, a dois metros
de mim. Ela parecia dourada, luminosa. Estaria eu alucinando? Era ainda
efeito do ayahuasca que tinha tomado dois meses antes? Não: olhei melhor
e vi que era uma estátua de bailarina, que parecia carregar em si o
espírito e a graça de mamãe. Num gesto ousado, arranquei a estátua do
pedestal e a coloquei dentro da minha jaqueta. “Rápido, Harry! Por
aqui!”, disse meu novo amigo brasileiro, Carluxo…” (da página 235 de O
que Sobra, Objetiva, 1a edição.)
(Isso é verdade? Isso é realmente uma citação do príncipe? Como vou saber, se não li o livro?)
Para
tirar qualquer dúvida: sim, continuo monarquista mesmo depois de ler
esse livro um pouco cretino e chorão. Perto de qualquer figura da
história da nossa república, o príncipe Harry é um exemplo de
virilidade, lealdade, estoicismo, candura, bom-gosto, discrição, etc etc
etc.
Postado há 14 hours ago por Orlando Tambosi
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