A saga 'Revelações Pré-históricas' conta a saga de uma civilização perdida que teria sobrevivido a um apocalipse na Era do Gelo. Seria impressionante, não fosse uma grande mentira. Filipe Vilicic para a Crusoé:
É
exigida muita imaginação e criatividade do público para acompanhar as
ideias mirabolantes do escritor e jornalista inglês Graham Hancock
(foto), o nome por trás da minissérie Revelações Pré-históricas. Sucesso
comercial da Netflix, a coletânea de oito episódios esteve entre as dez
séries mais assistidas do serviço de streaming em mais de sessenta
países, incluindo no Brasil, e contabilizou, apenas na primeira semana
de estreia, em novembro, 21 milhões de horas assistidas em todo o mundo.
A popularidade se deve ao apelo sensacionalista da teoria apresentada
ao longo de quatro horas de divagações. Teses que são tão incríveis
quanto falaciosas.
Hancock
mistura mitologias diversas, de lendas mesoamericanas sobre a
existência de gigantes construtores de pirâmides a histórias da
Mesopotâmia acerca de um grupo de sábios que sobreviveu a um dilúvio,
para especular da existência de uma civilização antiga, à la Atlântida,
que teria existido ao longo da Era do Gelo. E a alucinação não para aí.
Para ele, os poucos remanescentes dessa cultura perdida se aventuraram
pelos oceanos, há cerca de 10 mil anos, com a missão de ensinar as bases
civilizatórias – ciências, leis, agricultura… e tudo mais! – a tribos
de humanos selvagens. Assim é resumido, no início do último episódio:
“Há muito tempo, a humanidade dividia a Terra com uma sociedade mais
evoluída, fossem eles atlantes, gigantes ou deuses na Terra. Até a
chegada de um terrível cataclisma global (…) apenas alguns poucos
escolhidos foram poupados (…) misteriosos professores, que normalmente
chegavam por mar, para ajudá-los a criar as bases do renascimento da
humanidade”.
A
fórmula de cada episódio é a mesma (e, vale o aviso, enfadonha para o
espectador). Primeiro, Hancock visita um monumento antigo, como a cidade
subterrânea de Derinkuyu, na Turquia. Daí ele diz, sem qualquer
fundamento científico, que quase tudo que os arqueólogos sabem a
respeito da construção do local está errado. Por fim, mescla teorias da
conspiração, pseudociência e mitos para garantir que um povo que viveu
há 12 mil anos seria responsável não só por erguer as estruturas
colossais, como também por ensinar um amontoado de tecnologias e
costumes a babilônios, egípcios e outros povos.
Em
carta endereçada à Netflix em 30 de novembro último, a Sociedade
Americana de Arqueologia (SAA), renomada organização fundada em 1934 e
que conta com 5.500 membros, acusa Revelações Pré-históricas de
“depreciar publicamente os arqueólogos e desvalorizar a profissão
arqueológica com base em falsas alegações e desinformação”. A mensagem
solicita ao serviço de streaming que reclassifique o gênero da produção
como “ficção científica”, em vez de “documentário”. Completa-se com
outra acusação: “a teoria apresentada tem uma associação de longa data
com ideologias racistas e da supremacia branca”.
Faz
três décadas que Hancock defende suas ideias mirabolantes. Teve início
em 1992, com a publicação do livro The Sign and the Seal (O Sinal e o
Selo). Desde então, ele lançou outros onze livros sobre a mesma
história. O de maior sucesso é As Digitais dos Deuses – um dos poucos
que foram lançados no Brasil –, traduzido em 27 línguas e que
contabiliza mais de 5 milhões de exemplares vendidos. Tanto nessas obras
quanto na série, o autor defende a história de que uma raça superior de
humanos teria, há cerca de 10 mil anos, sobrevivido a um grande evento
apocalíptico que provocou dilúvios ao redor do planeta (a única das
teses de Hancock com fundamento científico é a provável existência de
tal cataclisma). Assim como arrisca ainda mais ao dizer que o mesmo povo
teria alertado para futuros desastres, como as mudanças climáticas que
hoje tomam o planeta. Ele, inclusive, chega a descrever esse povo
superior com as mesmas características físicas que a de arianos.
A
proposta tem óbvias raízes eugenistas. Em 1935, por exemplo, uma
unidade da SS, a tropa de choque de Adolf Hitler, foi até destacada para
procurar por resquícios de Atlântida. Os nazistas acreditavam na
mesmíssima ideia de que os atlantes teriam sido uma raça superior
nórdica que teria se perdido após um desastre, mas cujos sobreviventes
foram decisivos para ensinar e espalhar processos civilizatórios pelo
planeta. “Hancock se apoia em versões contadas por colonizadores sobre
os mitos locais para sugerir que os nativos não teriam sido inteligentes
o suficiente para desenvolver suas próprias artes, arquitetura, suas
heranças culturais”, analisou, em conversa com a Crusoé, o arqueólogo
americano Carl Feagans.
Além
de trabalhar para o governo americano, Feagans mantém o site Archeology
Review, renomado entre a comunidade acadêmica, no qual escreve sobre
histórias relacionadas ao seu campo. Nele, o arqueólogo publicou textos
críticos – e que têm atraído 6 mil leitores por semana – sobre cada
episódio de Revelações Pré-históricas. Suas impressões resumem bem a
revolta com a qual cientistas receberam a produção da Netflix.
Para
Feagans, o método de Hancock se resume a “inventar uma conclusão,
depois procurar por histórias que possam dar suporte à ideia, ignorando
qualquer informação ou dado que prova que a mesma conclusão é falsa”.
“Simplesmente não é assim que funciona a ciência”, ele acrescenta. Não,
mesmo. Nos artigos para o Archeology Review, Feagans disseca, com
atenção aos detalhes, a narrativa de Revelações Pré-históricas.
No
terceiro episódio da série, por exemplo, o apresentador duvida sobre as
capacidades dos habitantes pré-históricos da ilha de Malta de construir
templos megalíticos descobertos na região: “Esses fazendeiros, que os
arqueólogos dizem ter construídos nada maior que uma cabana, realmente
conseguiram fazer tudo isso?”. Feagans rebate, ecoando a comunidade
científica: “Arqueólogos jamais disseram que os nativos de Malta só
conseguiam construir cabanas. O que afirmamos, com muitas provas, é o
contrário, de que eles com toda certeza ergueram esses templos, que para
Hancock teriam sido criados por sua ‘civilização perdida’”.
No
Archeology Review há vários exemplos de erros cometidos pelo escritor
inglês. Alguns são fáceis de serem percebidos por qualquer espectador,
nem precisa de diploma em arqueologia. Talvez o mais óbvio deles é que
Hancock jamais, em nenhum momento, mostra qualquer evidência – objetos,
ruínas, ossadas e congêneres – que comprovem a existência dos atlantes
que teriam, pela narrativa criada, salvado a civilização. Ele se apoia
tão-somente em textos mitológicos, muitos dos quais adaptados e
recontados por colonizadores, como pistas. E será que esse povo perdido
não foi achado por falta de esforço de cientistas – como alega, de forma
superficial, o dono da teoria? Difícil de engolir essa desculpa quando
se lembra que vivemos em uma era na qual paleontólogos já escavaram
fósseis de ancestrais humanos que viveram há mais de 3 milhões de anos.
Quem,
então, acredita em Hancock? Suas ideias são populares tão-somente entre
fãs de teorias da conspiração e negacionistas. Seu maior defensor é o
podcaster Joe Rogan, famoso por, dentre outros absurdos, ter dado voz a
um grupo supremacista branco em seu programa, promover o movimento
antivacina (principalmente durante a pandemia de Covid) e por uma lista
imensa de falas racistas, xenófobas e misóginas. O problema: seu podcast
no Spotify chega a atrair mais de 10 milhões de ouvintes em um único
episódio.
E
por que a Netflix deu cartaz a essas ideias absurdas? Não existe,
ainda, uma resposta oficial. Contudo, há hipóteses. Como a de que seu
filho, Sean Hancock, teria aberto as portas. Como? Ele trabalha em um
cargo executivo na Netflix, justamente no departamento responsável por
analisar novas propostas de produções originais da marca. Seria
coincidência? Pode ser. O que já se sabe, todavia, é que o serviço de
streaming continua a insistir em categorizar a produção como
“documentário”.
Independentemente
das perguntas ainda em aberto e das prováveis respostas, pode-se
afirmar com certeza: acreditar no que se vê em Revelações Pré-históricas
é tão obtuso quanto levar à sério teorias como a de que alienígenas
teriam passado pela Terra há milênios e nos ensinado tudo que sabemos.
Por curiosidade, tem uma outra série popular, do canal History Channel,
que aventa essa hipótese: Alienígenas do Passado. Ou ainda seria como se
um pseudocientista do futuro, digamos que de uma civilização que venha a
existir daqui a 10 mil anos, lesse O Senhor dos Anéis e achasse que um
dia o planeta fora povoado por elfos e hobbits.
Filipe Vilicic é jornalista e autor do livro O Clique de 1 bilhão de dólares, sobre o Instagram
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