MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 22 de janeiro de 2023

Negacionismo e teorias da conspiração no Netflix

 



A saga 'Revelações Pré-históricas' conta a saga de uma civilização perdida que teria sobrevivido a um apocalipse na Era do Gelo. Seria impressionante, não fosse uma grande mentira. Filipe Vilicic para a Crusoé:


É exigida muita imaginação e criatividade do público para acompanhar as ideias mirabolantes do escritor e jornalista inglês Graham Hancock (foto), o nome por trás da minissérie Revelações Pré-históricas. Sucesso comercial da Netflix, a coletânea de oito episódios esteve entre as dez séries mais assistidas do serviço de streaming em mais de sessenta países, incluindo no Brasil, e contabilizou, apenas na primeira semana de estreia, em novembro, 21 milhões de horas assistidas em todo o mundo. A popularidade se deve ao apelo sensacionalista da teoria apresentada ao longo de quatro horas de divagações. Teses que são tão incríveis quanto falaciosas.

Hancock mistura mitologias diversas, de lendas mesoamericanas sobre a existência de gigantes construtores de pirâmides a histórias da Mesopotâmia acerca de um grupo de sábios que sobreviveu a um dilúvio, para especular da existência de uma civilização antiga, à la Atlântida, que teria existido ao longo da Era do Gelo. E a alucinação não para aí. Para ele, os poucos remanescentes dessa cultura perdida se aventuraram pelos oceanos, há cerca de 10 mil anos, com a missão de ensinar as bases civilizatórias – ciências, leis, agricultura… e tudo mais! – a tribos de humanos selvagens. Assim é resumido, no início do último episódio: “Há muito tempo, a humanidade dividia a Terra com uma sociedade mais evoluída, fossem eles atlantes, gigantes ou deuses na Terra. Até a chegada de um terrível cataclisma global (…) apenas alguns poucos escolhidos foram poupados (…) misteriosos professores, que normalmente chegavam por mar, para ajudá-los a criar as bases do renascimento da humanidade”.

A fórmula de cada episódio é a mesma (e, vale o aviso, enfadonha para o espectador). Primeiro, Hancock visita um monumento antigo, como a cidade subterrânea de Derinkuyu, na Turquia. Daí ele diz, sem qualquer fundamento científico, que quase tudo que os arqueólogos sabem a respeito da construção do local está errado. Por fim, mescla teorias da conspiração, pseudociência e mitos para garantir que um povo que viveu há 12 mil anos seria responsável não só por erguer as estruturas colossais, como também por ensinar um amontoado de tecnologias e costumes a babilônios, egípcios e outros povos.

Em carta endereçada à Netflix em 30 de novembro último, a Sociedade Americana de Arqueologia (SAA), renomada organização fundada em 1934 e que conta com 5.500 membros, acusa Revelações Pré-históricas de “depreciar publicamente os arqueólogos e desvalorizar a profissão arqueológica com base em falsas alegações e desinformação”. A mensagem solicita ao serviço de streaming que reclassifique o gênero da produção como “ficção científica”, em vez de “documentário”. Completa-se com outra acusação: “a teoria apresentada tem uma associação de longa data com ideologias racistas e da supremacia branca”.

Faz três décadas que Hancock defende suas ideias mirabolantes. Teve início em 1992, com a publicação do livro The Sign and the Seal (O Sinal e o Selo). Desde então, ele lançou outros onze livros sobre a mesma história. O de maior sucesso é As Digitais dos Deuses – um dos poucos que foram lançados no Brasil –, traduzido em 27 línguas e que contabiliza mais de 5 milhões de exemplares vendidos. Tanto nessas obras quanto na série, o autor defende a história de que uma raça superior de humanos teria, há cerca de 10 mil anos, sobrevivido a um grande evento apocalíptico que provocou dilúvios ao redor do planeta (a única das teses de Hancock com fundamento científico é a provável existência de tal cataclisma). Assim como arrisca ainda mais ao dizer que o mesmo povo teria alertado para futuros desastres, como as mudanças climáticas que hoje tomam o planeta. Ele, inclusive, chega a descrever esse povo superior com as mesmas características físicas que a de arianos.

A proposta tem óbvias raízes eugenistas. Em 1935, por exemplo, uma unidade da SS, a tropa de choque de Adolf Hitler, foi até destacada para procurar por resquícios de Atlântida. Os nazistas acreditavam na mesmíssima ideia de que os atlantes teriam sido uma raça superior nórdica que teria se perdido após um desastre, mas cujos sobreviventes foram decisivos para ensinar e espalhar processos civilizatórios pelo planeta. “Hancock se apoia em versões contadas por colonizadores sobre os mitos locais para sugerir que os nativos não teriam sido inteligentes o suficiente para desenvolver suas próprias artes, arquitetura, suas heranças culturais”, analisou, em conversa com a Crusoé, o arqueólogo americano Carl Feagans.


Além de trabalhar para o governo americano, Feagans mantém o site Archeology Review, renomado entre a comunidade acadêmica, no qual escreve sobre histórias relacionadas ao seu campo. Nele, o arqueólogo publicou textos críticos – e que têm atraído 6 mil leitores por semana – sobre cada episódio de Revelações Pré-históricas. Suas impressões resumem bem a revolta com a qual cientistas receberam a produção da Netflix.

Para Feagans, o método de Hancock se resume a “inventar uma conclusão, depois procurar por histórias que possam dar suporte à ideia, ignorando qualquer informação ou dado que prova que a mesma conclusão é falsa”. “Simplesmente não é assim que funciona a ciência”, ele acrescenta. Não, mesmo. Nos artigos para o Archeology Review, Feagans disseca, com atenção aos detalhes, a narrativa de Revelações Pré-históricas.

No terceiro episódio da série, por exemplo, o apresentador duvida sobre as capacidades dos habitantes pré-históricos da ilha de Malta de construir templos megalíticos descobertos na região: “Esses fazendeiros, que os arqueólogos dizem ter construídos nada maior que uma cabana, realmente conseguiram fazer tudo isso?”. Feagans rebate, ecoando a comunidade científica: “Arqueólogos jamais disseram que os nativos de Malta só conseguiam construir cabanas. O que afirmamos, com muitas provas, é o contrário, de que eles com toda certeza ergueram esses templos, que para Hancock teriam sido criados por sua ‘civilização perdida’”.

No Archeology Review há vários exemplos de erros cometidos pelo escritor inglês. Alguns são fáceis de serem percebidos por qualquer espectador, nem precisa de diploma em arqueologia. Talvez o mais óbvio deles é que Hancock jamais, em nenhum momento, mostra qualquer evidência – objetos, ruínas, ossadas e congêneres – que comprovem a existência dos atlantes que teriam, pela narrativa criada, salvado a civilização. Ele se apoia tão-somente em textos mitológicos, muitos dos quais adaptados e recontados por colonizadores, como pistas. E será que esse povo perdido não foi achado por falta de esforço de cientistas – como alega, de forma superficial, o dono da teoria? Difícil de engolir essa desculpa quando se lembra que vivemos em uma era na qual paleontólogos já escavaram fósseis de ancestrais humanos que viveram há mais de 3 milhões de anos.

Quem, então, acredita em Hancock? Suas ideias são populares tão-somente entre fãs de teorias da conspiração e negacionistas. Seu maior defensor é o podcaster Joe Rogan, famoso por, dentre outros absurdos, ter dado voz a um grupo supremacista branco em seu programa, promover o movimento antivacina (principalmente durante a pandemia de Covid) e por uma lista imensa de falas racistas, xenófobas e misóginas. O problema: seu podcast no Spotify chega a atrair mais de 10 milhões de ouvintes em um único episódio.

E por que a Netflix deu cartaz a essas ideias absurdas? Não existe, ainda, uma resposta oficial. Contudo, há hipóteses. Como a de que seu filho, Sean Hancock, teria aberto as portas. Como? Ele trabalha em um cargo executivo na Netflix, justamente no departamento responsável por analisar novas propostas de produções originais da marca. Seria coincidência? Pode ser. O que já se sabe, todavia, é que o serviço de streaming continua a insistir em categorizar a produção como “documentário”.

Independentemente das perguntas ainda em aberto e das prováveis respostas, pode-se afirmar com certeza: acreditar no que se vê em Revelações Pré-históricas é tão obtuso quanto levar à sério teorias como a de que alienígenas teriam passado pela Terra há milênios e nos ensinado tudo que sabemos. Por curiosidade, tem uma outra série popular, do canal History Channel, que aventa essa hipótese: Alienígenas do Passado. Ou ainda seria como se um pseudocientista do futuro, digamos que de uma civilização que venha a existir daqui a 10 mil anos, lesse O Senhor dos Anéis e achasse que um dia o planeta fora povoado por elfos e hobbits.

Filipe Vilicic é jornalista e autor do livro O Clique de 1 bilhão de dólares, sobre o Instagram

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