Quem é e o que quer Vladimir Putin? A Rússia tudo fará para que a pergunta não tenha uma resposta, mas está atenta a todas as respostas que lhe forem dadas. Este jogo é uma hábil tática de poder. Artigo do professor Luís Caeiro, publicado pelo Observador:
A
personalidade do presidente russo tem sido objeto de numerosas
investigações de académicos, de jornalistas e dos serviços de informação
ocidentais, para inferir tendências de comportamento e desenhar o seu
perfil psicológico. O objetivo é compreender a lógica das suas decisões
políticas e torná-las mais previsíveis. Este conhecimento é importante
na condução das relações diplomáticas, nos processos de negociação e nas
tomadas de decisão, sobretudo em contextos de crise. Quais as
verdadeiras motivações do presidente russo? Como toma as decisões? As
suas ameaças devem ser levadas a sério? Pode-se confiar nas garantias
que oferece? As suas ambições expansionistas são a expressão duma
personalidade narcísica?
As
respostas têm sido tão diversas quanto contraditórias. Qual é a
verdadeira identidade de Putin, que aparece na propaganda oficial a
pilotar um jacto militar, a banhar-se num lago gelado, a observar aves, a
praticar judo, a montar a cavalo em tronco nu, a mergulhar no Mar
Negro, a dar aulas a crianças, a cantar numa discoteca… Estas mensagens
dirigem-se a todos os públicos mostrando facetas paradoxais da sua
pessoa: Putin duro e sensível, caçador e conservacionista, formal e
descontraído, próximo e distante.
A
guerra na Ucrânia é a mais recente ilustração duma comunicação ambígua,
aplicada às relações externas. Nos muitos comentários de jornalistas,
especialistas militares, universitários, e diplomatas, abundam as
tentativas para compreender os objetivos políticos e militares do
presidente russo e antecipar as suas ações. Quer controlar toda a
Ucrânia ou anexar apenas a área russófona? Pode fechar o abastecimento
de matérias-primas à Europa? Quem é Vladimir Putin? Os dados ambíguos e
desconexos postos a circular pelos porta-vozes do Kremlin, as palavras e
os silêncios do presidente, as decisões contraditórias e o
incumprimento de compromissos alimentam todas as hipóteses.
Esta
amálgama de paradoxos, não pode deixar de ser intencional. O objetivo é
responder a expectativas muito diversas e possibilitar a atribuição de
múltiplas identidades. Putin desconstrói a sua identidade para levar os
outros a atribuir-lhe a identidade que preferem ou que receiam.
A
longa carreira de Putin nos serviços de inteligência, as informações
inconsistentes sobre a sua pessoa e a imprevisibilidade na ação sugerem
que esta ambiguidade, mais que intencional, é uma tática de poder. O
objetivo é transmitir mensagens paradoxais, para que não seja possível
formular juízos claros e partilhados sobre a realidade. Os estímulos
ambíguos permitem muitas interpretações fazendo com que todos encontrem
no líder uma dimensão apelativa ou um elemento de identificação. Ao
mesmo tempo, funcionam como “testes projetivos”. Cada observador
interpreta-os de acordo com as suas crenças, motivações e expectativas,
revelando-se a si próprio na forma como dá sentido à ambiguidade. As
interpretações revelam mais acerca do intérprete, que do interpretado.
Esta
tática é aplicada por Putin na comunicação interna. A ambiguidade ajuda
a captar múltiplos públicos e reforça a unidade social à sua volta. É
uma forma de atuação que faz todo o sentido quando é aplicada por
lideranças carismáticas de tipo autoritário. Enquanto nas democracias
liberais a competição entre partidos e correntes de opinião leva à
especificação das mensagens e à individuação dos candidatos, na Rússia, a
ausência de verdadeira competição eleitoral torna esta abordagem
inadequada. O objetivo é o consenso social à volta do líder e, para
isso, interessa veicular uma imagem multifacetada que agregue os
diversos sectores da sociedade. A unidade no apoio à liderança é a
principal fonte de poder.
Do
ponto de vista externo, a tática da ambiguidade é igualmente eficaz.
Torna as decisões do Kremlin menos previsíveis, aumenta os níveis de
ansiedade e o medo de decisões radicais, e dificulta uma reação pronta
às ameaças. A tática da ambiguidade reforça o poder de quem a controla,
porque aumenta a incerteza dos oponentes e reduz a sua capacidade de
resposta.
Esta
tática também favorece a recolha de informação e o conhecimento das
motivações e fragilidades da parte oposta. A forma como as ambiguidades
são elaboradas e interpretadas funciona como uma projeção da
personalidade dos intérpretes. Se analisarmos as declarações dos altos
responsáveis do mundo ocidental e os comentários da comunicação social
sobre a situação na Ucrânia ficamos mais informados sobre quem são, o
que pensam, o que querem e o que receiam os protagonistas do Ocidente,
do que sobre as verdadeiras intenções da liderança russa. As hipóteses e
conjeturas feitas pelo Ocidente são usadas pela Rússia para conhecer os
quadros objetivo e subjetivo em que o Ocidente se move e, com base
neles, planear novas ações, aumentando a capacidade de surpreender ou de
ajustar rapidamente os planos em curso. A tática da ambiguidade
funciona como um laboratório em que os observados são atores numa sala
de visão num só sentido: são observados mas não conhecem os
observadores.
Putin
não quer simplesmente escamotear a sua identidade atrás de muitas
identidades possíveis. Quer ser o líder que os seus seguidores esperam e
conhecer melhor tanto aqueles que o apoiam como os seus adversários,
pela forma como lhe devolvem a sua identidade construída. É um jogo que
ele alimenta e do qual retira vantagens políticas e militares, para
reforçar a popularidade interna e a unidade em volta da sua liderança.
Ao mesmo tempo, fica a conhecer as motivações dos adversários,
mantém-nos confundidos e retira-lhes a iniciativa.
Quem
é e o que quer Vladimir Putin? A Rússia tudo fará para que a pergunta
não tenha uma resposta, mas está particularmente atenta a todas as
respostas que lhe forem dadas. Este jogo é uma hábil tática de poder,
que Putin e a informação russa têm conseguido executar com perícia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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