A edição desta semana da Crusoé traz entrevista com o escritor e historiador mexicano Enrique Krauze, editor de Letras Libres:
O
mexicano Enrique Krauze, de 75 anos, começou sua trajetória intelectual
na célebre revista Vuelta, ao lado do poeta e ensaísta Octavio Paz, um
dos grandes nomes da literatura do século XX em língua espanhola. Hoje, o
próprio Krauze é uma referência para as discussões políticas e
culturais no México e outros países da América Latina. Sua formação é de
historiador. Mas, na tradição de Paz, ele também dirige a revista
Letras Libres e a editora e produtora Clio.
Dois
livros da extensa obra de Krauze foram publicados no Brasil. Redentores
reúne onze perfis de personagens emblemáticos da América Latina, como
José Martí, Eva Perón e Gabriel García Marquez. O Poder e o Delírio é
uma compilação de escritos sobre o venezuelano Hugo Chávez e sua
revolução bolivariana. Seu livro mais recente, ainda sem tradução
brasileira, chama-se Crítica al Poder Presidencial. É uma história da
presidência mexicana desde a década de 1980, com foco especial no atual
ocupante do cargo, Andrés Manuel López Obrador. Opositor ferrenho de
AMLO (a sigla pela qual os mexicanos se referem ao presidente), Krauze
diz que ele representa de forma acabada um dos principais flagelos da
política contemporânea: o populismo. Leia abaixo a entrevista:
O
senhor escreveu, em 2018, que o Brasil estava “prestes a cometer um
suicídio político e cultural elegendo Bolsonaro”. Quatro anos depois,
parece-lhe que aquele diagnóstico foi correto?
Poucas
coisas me tiram o sono como o populismo. E vejo em Jair Bolsonaro
traços muito fortes da liderança populista: o estilo duro, o uso
agressivo das ferramentas de comunicação, a divisão do mundo entre bons e
maus. No governo, ele confirmou algumas das piores expectativas. Agiu
de maneira terrível na pandemia e feriu o meio ambiente, sem entender a
urgência da questão climática. Em tudo isso, aliás, ele é muito
semelhante ao presidente mexicano López Obrador. O que mostra que o
populismo não distingue ideologias. Mas não foi correto falar que o
Brasil, como um todo, estava à beira do “suicídio político e cultural”.
Acabei contrariando a opinião que eu mesmo tenho sobre o país. Em
contraste com o México, vejo no Brasil uma intensidade maior de debate,
mais pluralidade, um tanto mais de liberdade e anarquia. Uso essa
palavra, anarquia, em sentido positivo, para apontar uma desconfiança
saudável em relação ao poder.
No
livro El Pueblo Soy Yo, o senhor usa uma frase de Hugo Chávez para
resumir a mentalidade dos líderes populistas: “Eu já não sou Chávez, sou
um povo”. Pouco antes de ser preso, em 2018, Lula disse aos seus
apoiadores: “Eu já não sou Lula, sou uma ideia”. Lula não é também um
populista?
Muitos
anos atrás, José Guilherme Merquior, o diplomata e grande intelectual
brasileiro de quem fui amigo, apresentou-me a José Sarney. Guardei na
memória uma frase daquela conversa: “Lula sabe quanto valem 3%”. Sarney
quis dizer com isso que Lula entendia a política, sabia dialogar e fazer
acordos, era alguém mais pragmático que ideológico. Ao contrário dos
caudilhos, a quem só interessa um número, 100%. Ainda vejo um pouco
disso em Lula, mas as histórias de corrupção, para manter o seu partido
no poder, a condescendência com os ditadores de esquerda, além de
atitudes e frases como a que você mencionou, mostraram que a veia
populista sempre esteve presente, eu é que não havia enxergado. Não
invejo o Brasil pela escolha que provavelmente terá de fazer nas
eleições deste ano.
Os países da América Latina são especialmente vulneráveis ao populismo?
É
preciso fazer distinções. O Chile, por exemplo, tem 200 anos de
tradição republicana. Ela às vezes foi eclipsada, como no governo
Pinochet, mas nunca foi inteiramente sufocada. Não vejo a cultura
caudilhista enraizada no país. Não creio que a nova constituição, que
tem traços autoritários, vá ser aprovada pela população. E também não
vejo com preocupação a eleição de Gabriel Boric. A esquerda voltou ao
poder? Isso é parte do jogo. O processo eleitoral que o levou à
presidência foi exemplar. Seu adversário reconheceu rapidamente os
resultados, que foram contundentes, e Boric prometeu governar para todos
os chilenos. Ele se distanciou da esquerda ditatorial de Cuba, da
Venezuela, da Nicarágua. Espero que não busque inspiração no México.
Qual é o caso do México?
O
México é como uma pirâmide asteca. É uma estrutura pesada,
centralizada, com muitos degraus hierárquicos. O presidente, no México,
sempre teve a aura de um monarca. Ouvi de um amigo que o México é o país
mais parecido com a China na América Latina. É uma boa imagem. Por
setenta anos, tivemos uma espécie de partido único, como os chineses: o
PRI. Ao longo do tempo, houve alguns lampejos democráticos. Por
exemplo, no final do século passado, quando o país finalmente conseguiu
desalojar o PRI do poder e arejar o ambiente. Mas não durou muito. O PRI
retornou com a eleição de Enrique Peña Nieto, em 2012. Como presidente,
ele era um excelente jogador de golfe, o esporte que adorava. Peña
Nieto era corrupto, irresponsável e, ao final, covarde. Por razões até
hoje obscuras, ele abriu caminho para que nosso atual mandatário
chegasse à presidência, usando a Justiça para atacar incessantemente o
seu principal adversário nas eleições de 2018. López Obrador estava à
espreita havia muito tempo. Ele foi do PRI, disputou eleições. Com a
preciosa ajuda de Peña Nieto, chegou finalmente ao poder e, com isso, o
México abraçou o populismo.
Seu
novo livro, Crítica do Poder Presidencial, qualifica o governo de López
Obrador como “destrutivo”. Como ele afetou a democracia mexicana em
particular?
Lopez
Obrador tem um programa de televisão de três horas, que vai ao ar todos
os dias da semana. Ele o utiliza para exaltar a si próprio e atacar
seus adversários. Alguém fez as contas no outro dia e observou que eu
mesmo já fui atacado 234 vezes nesse programa. Perto disso, Hugo Chávez
era um lorde inglês: tinha o bom gosto de só ocupar a televisão aos
domingos. Como se não bastasse, o presidente tem um exército orwelliano
nas redes sociais, financiado com dinheiro público. Eles o ajudam a
massacrar a oposição e desmoralizar os meios de comunicação, que se
defendem como podem. Como os caudilhos não gostam de instituições, AMLO,
como também o chamamos, fez o possível para desarticular as
instituições mexicanas ou corrompê-las. Por isso tivemos tantos mortos
durante a pandemia e o número de homicídios hoje atinge picos
históricos. O Judiciário ainda é um importante foco de resistência. Mas
um bom exemplo de instituição desvirtuada pelo seu governo é o Exército.
Tínhamos um Exército pequeno, que nunca exigiu muitos recursos,
dedicado basicamente a tarefas de defesa civil e muito querido pela
população. Lopez Obrador lhe deu empresas, obras e aeroportos para
administrar e o trouxe para o centro do palco, de uma maneira inédita.
Tem medo que ele tente estender o seu mandato em 2024?
As
eleições de 2024 são preocupantes. Não podemos dizer com certeza que
haverá plena liberdade de votação. Como disse certa vez Mario Vargas
Llosa, “não há limites para a deterioração”. Mesmo assim, não vejo a
possibilidade de uma extensão de mandato para López Obrador. Ele
simplesmente vai fazer tudo que estiver ao seu alcance para eleger um
preposto e continuar no comando.
Como combater o populismo?
Estaremos
sempre às voltas com o populismo enquanto nossos países não entenderem o
valor da vida democrática parlamentar. Tenho estudado a obra do alemão
Max Weber. Em 1919, ele fez, em Munique, a sua célebre conferência sobre
a política como vocação. A plateia era formada por jovens anarquistas e
comunistas que não se contentavam com nada menos que transformar
completamente a realidade. Em vez de incentivá-los, Weber lhes disse que
a política era “um rude e lento parafusar de tábuas duras”. A política
não é redentora, não salva a humanidade nem leva à felicidade eterna.
Devemos pedir a ela soluções sensatas para a economia, para a educação,
para a saúde. E isso já é bastante.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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