MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

A desproporção

 



Faz sentido pôr a engrenagem da justiça e da polícia para funcionar, porque algumas mensagens com opiniões infames - mas sem nenhuma incitação direta ao crime - foram postadas em um grupo privado de WhatsApp? Carlos Graieb para a revista Crusoé:


“É proporcional?” Essa foi a pergunta que Jair Bolsonaro fez a uma plateia na última terça-feira, ao discutir ações da Polícia Federal, autorizadas pelo STF, contra oito empresários que o apoiam. Depois de ter revelada pelo site Metrópoles uma troca de mensagens com fantasias golpistas num grupo de WhatsApp, os executivos foram atingidos por uma saraivada de medidas duras: bloqueio das contas no aplicativo de mensagens e outras redes sociais; bloqueio de contas bancárias; quebra do sigilo telefônico; apreensão de seus celulares; busca e apreensão em suas residências. Bolsonaro não é moderado nem como pessoa, nem como presidente. Mas não é por isso que o seu questionamento merece ser ignorado. Faz sentido pôr a engrenagem da justiça e da polícia para funcionar, porque algumas mensagens com opiniões infames – mas sem nenhuma incitação direta ao crime – foram postadas em um grupo privado de WhatsApp? É proporcional?

O Brasil chega às vésperas das eleições às voltas com dois paradoxos. O primeiro é o paradoxo da tolerância, formulado pelo austríaco Karl Popper no clássico A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Naquela que talvez seja a nota de rodapé mais famosa da história da ciência política, ele escreveu: “A tolerância ilimitada leva ao seu próprio desaparecimento. Se oferecermos tolerância ilimitada até mesmo aos intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra as investidas deles; chegaremos ao ponto em que os tolerantes serão destruídos, e a tolerância com eles.”

Desde que Bolsonaro chegou ao poder, carregando seu histórico de elogios à ditadura e homenagens a torturadores, o temor manifestado por Karl Popper ganhou peso no Brasil. A atitude indulgente do presidente com apoiadores que desejam um novo golpe militar e os seus próprios arroubos contra a imprensa, o STF e o sistema eleitoral ampliaram ainda mais a crença na necessidade de “defender uma sociedade tolerante contra as investidas dos intolerantes”. O Brasil entrou para o clube das chamadas democracias militantes, que sustentam que é preciso tolher os direitos de quem pode ameaçar a democracia, antes que o perigo se concretize. Tanto o inquérito das fake news, que censurou a Crusoé, quanto o inquérito dos atos democráticos, que deu origem à investigação contra os empresários, são resultado dessa nova maneira de pensar.

O segundo paradoxo é que medidas tomadas para defender a democracia podem ter o efeito contrário. Um outro austríaco, o jurista Hans Kelsen, detectou esse ameaça: “Quem é a favor da democracia não pode cair na contradição fatídica que consiste em defendê-la usando as armas da ditadura.” Por isso, ele era radicalmente contrário a qualquer coisa que se assemelhasse à democracia militante.

Os mesmos inquéritos – das fake news e dos atos antidemocráticos – mostram como o risco apontado por Kelsen vai se materializando no Brasil. O primeiro, instaurado em março de 2019, tem a corte como vítima de ameaças e mentiras, mas também como titular da investigação e responsável pelo seu julgamento. O segundo, resultou de um drible do ministro Alexandre de Moraes na PGR, em 2021: ele acatou o pedido de encerramento de uma investigação feito pela Procuradoria, abrindo logo em seguida um novo inquérito, com objetivos quase idênticos.

Com quais critérios o STF vem cerceando a liberdade de expressão e outros direitos individuais por meio desses inquéritos? É impossível saber, uma vez que eles são mantidos em sigilo. Existe uma enorme diferença entre blogueiros que produzem fake news de maneira sistemática, em escala industrial, lucrando com isso, e tiozões do WhatsApp que ventilam suas frustrações e delírios políticos em um ambiente fechado. Mesmo assim, todos sofreram coerções semelhantes.

Os empresários bolsonaristas disseram boçalidades. “Prefiro golpe do que a volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo mundo”, escreveu o dono do Shopping Barra World, José Koury. “O golpe teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo, 2019, teríamos ganhado outros 10 anos a mais”, escreveu o proprietário da fabricante de móveis Grupo Sierra, André Tissot. “O 7 de Setembro está sendo programado para unir o povo e o Exército e ao mesmo tempo deixar claro de que lado o Exército está. Estratégia top, e o palco será o Rio. A cidade ícone brasileira no exterior. Vai deixar muito claro”, disse o dono da loja de surfwear Marco Aurélio Raymundo, o Morongo. Também postaram comentários Luciano Hang, o “véio da Havan”; o empreiteiro Ivan Wrobel, da W3; Afrânio Barreira, da rede de restaurantes Coco Bambu; José Isaac Peres, da rede de shoppings Multiplan; e o dono da construtora Tecnisa, Meyer Nigri. Foram esses os alvos da PF. Mas há crime naquilo que eles disseram?

“Com base nas mensagens que foram divulgadas, penso que as medidas contra eles são erradas por inteiro”, diz o advogado André Marsiglia, colaborador de Crusoé. “A nossa Constituição nos obriga a viver numa democracia, mas não obriga todas as pessoas a amar a democracia ou acreditar nela. Quando pessoas se organizam para planejar ou financiar um golpe, podemos falar em crime. Mas o que foi divulgado daquele grupo de WhatsApp são apenas opiniões. Não há crime de pensamento previsto em nosso ordenamento jurídico”.

Durante a semana, circulou a tese de que STF teria em mãos outras provas, oriundas do inquérito das fake news, que justificariam as medidas duras tomadas contra os empresários. Nesta quinta-feira, a Folha de S. Paulo publicou uma história diferente: a decisão de Alexandre de Moraes teria sido tomada, tão somente, com base na reportagem que revelou as mensagens. O objetivo seria verificar se os empresários financiam de alguma forma crimes contra a democracia. Isso levanta duas hipóteses inquietantes. Primeiro, que até hoje a PF e o STF não levantaram nenhuma informação sobre o financiamento de atos antidemocráticos, fazendo com que os eventos desta semana fossem usados para tentar avançar nessa apuração. Em segundo lugar, que um mero palavrório deu origem a bloqueios, quebras de sigilo, apreensões de bens e até mesmo buscas nas casas dos envolvidos.

“Como não conheço o inquérito, falo em tese. Nenhuma dessas medidas é leve”, afirma o advogado criminalista e professor do Ibmec Ivan Yokoi. “Quando elas são decretadas em processos comuns já se sabe exatamente qual o crime que está sendo investigado. Além disso, o juiz precisa justificar com clareza a urgência e a necessidade de cada uma das ações. Sempre que for possível uma medida menos gravosa, é a ela que se deve recorrer. Por exemplo: se for possível obter informações a tempo pela quebra do sigilo telefônico, é preferível fazer isso do que recorrer a um mandado de busca e apreensão”.

A ação desta semana contra os empresários bolsonaristas foi proporcional? Não, não foi. Ela reforçou a impressão de que inquéritos iniciados com o propósito declarado de proteger a democracia ameaçam criar um regime de arbitrariedades. Reconhecer esse fato não equivale a livrar a cara do bolsonarismo, negando que a violência e o autoritarismo fazem parte do seu imaginário e que, se pudessem, o presidente e seus seguidores adorariam implantar uma ditadura. Significa apenas que a proteção à democracia não pode ser feita a qualquer custo.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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