Faz sentido pôr a engrenagem da justiça e da polícia para funcionar, porque algumas mensagens com opiniões infames - mas sem nenhuma incitação direta ao crime - foram postadas em um grupo privado de WhatsApp? Carlos Graieb para a revista Crusoé:
“É
proporcional?” Essa foi a pergunta que Jair Bolsonaro fez a uma plateia
na última terça-feira, ao discutir ações da Polícia Federal,
autorizadas pelo STF, contra oito empresários que o apoiam. Depois de
ter revelada pelo site Metrópoles uma troca de mensagens com fantasias
golpistas num grupo de WhatsApp, os executivos foram atingidos por uma
saraivada de medidas duras: bloqueio das contas no aplicativo de
mensagens e outras redes sociais; bloqueio de contas bancárias; quebra
do sigilo telefônico; apreensão de seus celulares; busca e apreensão em
suas residências. Bolsonaro não é moderado nem como pessoa, nem como
presidente. Mas não é por isso que o seu questionamento merece ser
ignorado. Faz sentido pôr a engrenagem da justiça e da polícia para
funcionar, porque algumas mensagens com opiniões infames – mas sem
nenhuma incitação direta ao crime – foram postadas em um grupo privado
de WhatsApp? É proporcional?
O
Brasil chega às vésperas das eleições às voltas com dois paradoxos. O
primeiro é o paradoxo da tolerância, formulado pelo austríaco Karl
Popper no clássico A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Naquela que
talvez seja a nota de rodapé mais famosa da história da ciência
política, ele escreveu: “A tolerância ilimitada leva ao seu próprio
desaparecimento. Se oferecermos tolerância ilimitada até mesmo aos
intolerantes; se não estivermos preparados para defender uma sociedade
tolerante contra as investidas deles; chegaremos ao ponto em que os
tolerantes serão destruídos, e a tolerância com eles.”
Desde
que Bolsonaro chegou ao poder, carregando seu histórico de elogios à
ditadura e homenagens a torturadores, o temor manifestado por Karl
Popper ganhou peso no Brasil. A atitude indulgente do presidente com
apoiadores que desejam um novo golpe militar e os seus próprios arroubos
contra a imprensa, o STF e o sistema eleitoral ampliaram ainda mais a
crença na necessidade de “defender uma sociedade tolerante contra as
investidas dos intolerantes”. O Brasil entrou para o clube das chamadas
democracias militantes, que sustentam que é preciso tolher os direitos
de quem pode ameaçar a democracia, antes que o perigo se concretize.
Tanto o inquérito das fake news, que censurou a Crusoé, quanto o
inquérito dos atos democráticos, que deu origem à investigação contra os
empresários, são resultado dessa nova maneira de pensar.
O
segundo paradoxo é que medidas tomadas para defender a democracia podem
ter o efeito contrário. Um outro austríaco, o jurista Hans Kelsen,
detectou esse ameaça: “Quem é a favor da democracia não pode cair na
contradição fatídica que consiste em defendê-la usando as armas da
ditadura.” Por isso, ele era radicalmente contrário a qualquer coisa que
se assemelhasse à democracia militante.
Os
mesmos inquéritos – das fake news e dos atos antidemocráticos – mostram
como o risco apontado por Kelsen vai se materializando no Brasil. O
primeiro, instaurado em março de 2019, tem a corte como vítima de
ameaças e mentiras, mas também como titular da investigação e
responsável pelo seu julgamento. O segundo, resultou de um drible do
ministro Alexandre de Moraes na PGR, em 2021: ele acatou o pedido de
encerramento de uma investigação feito pela Procuradoria, abrindo logo
em seguida um novo inquérito, com objetivos quase idênticos.
Com
quais critérios o STF vem cerceando a liberdade de expressão e outros
direitos individuais por meio desses inquéritos? É impossível saber, uma
vez que eles são mantidos em sigilo. Existe uma enorme diferença entre
blogueiros que produzem fake news de maneira sistemática, em escala
industrial, lucrando com isso, e tiozões do WhatsApp que ventilam suas
frustrações e delírios políticos em um ambiente fechado. Mesmo assim,
todos sofreram coerções semelhantes.
Os
empresários bolsonaristas disseram boçalidades. “Prefiro golpe do que a
volta do PT. Um milhão de vezes. E com certeza ninguém vai deixar de
fazer negócios com o Brasil. Como fazem com várias ditaduras pelo
mundo”, escreveu o dono do Shopping Barra World, José Koury. “O golpe
teria que ter acontecido nos primeiros dias de governo, 2019, teríamos
ganhado outros 10 anos a mais”, escreveu o proprietário da fabricante de
móveis Grupo Sierra, André Tissot. “O 7 de Setembro está sendo
programado para unir o povo e o Exército e ao mesmo tempo deixar claro
de que lado o Exército está. Estratégia top, e o palco será o Rio. A
cidade ícone brasileira no exterior. Vai deixar muito claro”, disse o
dono da loja de surfwear Marco Aurélio Raymundo, o Morongo. Também
postaram comentários Luciano Hang, o “véio da Havan”; o empreiteiro Ivan
Wrobel, da W3; Afrânio Barreira, da rede de restaurantes Coco Bambu;
José Isaac Peres, da rede de shoppings Multiplan; e o dono da
construtora Tecnisa, Meyer Nigri. Foram esses os alvos da PF. Mas há
crime naquilo que eles disseram?
“Com
base nas mensagens que foram divulgadas, penso que as medidas contra
eles são erradas por inteiro”, diz o advogado André Marsiglia,
colaborador de Crusoé. “A nossa Constituição nos obriga a viver numa
democracia, mas não obriga todas as pessoas a amar a democracia ou
acreditar nela. Quando pessoas se organizam para planejar ou financiar
um golpe, podemos falar em crime. Mas o que foi divulgado daquele grupo
de WhatsApp são apenas opiniões. Não há crime de pensamento previsto em
nosso ordenamento jurídico”.
Durante
a semana, circulou a tese de que STF teria em mãos outras provas,
oriundas do inquérito das fake news, que justificariam as medidas duras
tomadas contra os empresários. Nesta quinta-feira, a Folha de S. Paulo
publicou uma história diferente: a decisão de Alexandre de Moraes teria
sido tomada, tão somente, com base na reportagem que revelou as
mensagens. O objetivo seria verificar se os empresários financiam de
alguma forma crimes contra a democracia. Isso levanta duas hipóteses
inquietantes. Primeiro, que até hoje a PF e o STF não levantaram nenhuma
informação sobre o financiamento de atos antidemocráticos, fazendo com
que os eventos desta semana fossem usados para tentar avançar nessa
apuração. Em segundo lugar, que um mero palavrório deu origem a
bloqueios, quebras de sigilo, apreensões de bens e até mesmo buscas nas
casas dos envolvidos.
“Como
não conheço o inquérito, falo em tese. Nenhuma dessas medidas é leve”,
afirma o advogado criminalista e professor do Ibmec Ivan Yokoi. “Quando
elas são decretadas em processos comuns já se sabe exatamente qual o
crime que está sendo investigado. Além disso, o juiz precisa justificar
com clareza a urgência e a necessidade de cada uma das ações. Sempre que
for possível uma medida menos gravosa, é a ela que se deve recorrer.
Por exemplo: se for possível obter informações a tempo pela quebra do
sigilo telefônico, é preferível fazer isso do que recorrer a um mandado
de busca e apreensão”.
A
ação desta semana contra os empresários bolsonaristas foi proporcional?
Não, não foi. Ela reforçou a impressão de que inquéritos iniciados com o
propósito declarado de proteger a democracia ameaçam criar um regime de
arbitrariedades. Reconhecer esse fato não equivale a livrar a cara do
bolsonarismo, negando que a violência e o autoritarismo fazem parte do
seu imaginário e que, se pudessem, o presidente e seus seguidores
adorariam implantar uma ditadura. Significa apenas que a proteção à
democracia não pode ser feita a qualquer custo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário