Num mundo em que pouca coisa é o que parece ser, as hipóteses são várias - e todas elas deixam o líder russo em posição ruim. Vilma Gryzinski:
Moscou
virou um vespeiro onde, nos mais altos escalões, se entrechocam
sentimentos como ódio, desejo de revanche, medo e dúvidas. Muitas
dúvidas. Todas provocadas pela bomba que matou Daria Dugina de uma forma
que plantou a guerra na Ucrânia bem no centro do poder russo.
Quem
matou a filha de Alexander Dugin, um filósofo que mistura sacadas
geniais com insanidades eslavófilas, proporcionando o embasamento
teórico para o expansionismo que Vladimir Putin abraçou com tanto entusiasmo?
Algumas das hipóteses:
1- Os serviços de inteligência da Ucrânia.
É a hipótese mais óbvia. Forças especiais infiltraram-se recentemente
na Crimeia, sob controle total russo desde 2014, explodindo alvos
militares. Em outras regiões ucranianas ocupadas, houve pelo menos dois
atentados a bomba contra autoridades locais que passaram colaborar com
os russos. Ameaças contra colaboracionistas têm aparecido nos muros das
localidades sob ocupação.
Se
quisessem um alvo “soft”, um nome importante ligado ao regime, mas sem o
aparato de segurança de que se cerca as autoridades e os oligarcas, não
seria impossível pensar em Alexander Dugin – e era ele quem deveria
estar no Toyota destroçado, se não fosse por uma mudança de última hora.
As
atrocidades que Dugin diz sobre os ucranianos nacionalistas poderiam
ser usadas como justificativa para um terrível como um atentado contra
um civil – “matar e matar e matar”, foi uma delas.
O
FSB, serviço secreto que substituiu a KGB, já fez até um roteiro: a
responsável pelo atentado foi uma integrante do batalhão Azov que se
infiltrou na esfera de Daria Dugina, alugando um apartamento no prédio
onde ela morava “para obter informações sobre seu modo de vida”.
Ela é identificada como Natália Pavlovna Vovk, tendo chegado à Rússia “com sua filha de doze anos, em 23 de julho”.
O
serviço russo divulgou até um vídeo mostrando um Mini Cooper cinza,
cruzando a fronteira com a Estônia. Nele estaria a assassina.
Tempo transcorrido entre a morte de Daria Dugina e a conclusão da FSB sobre os responsáveis: 36 horas.
Obviamente,
um atentado desses exigiria a participação em campo de várias dezenas
de agentes e mostraria um nível de mobilização e infiltração que ninguém
atribuiria à Ucrânia até agora.
Também
demonstraria que a FSB e outros organismos de inteligência, com o
imenso poder de controle que só é possível em regimes autoritários,
falharam miseravelmente em identificar uma ameaça sob suas barbas.
Vladimir
Putin, cujo poder total é firmemente ancorado no controle sobre os
organismos de segurança, ficaria mal nessa hipótese. Qualquer sinal de
fraqueza num regime de força é interpretado como a antessala da
derrocada.
Note-se
que na carta de pêsames que Putin mandou a Dugin, lamentando a perda de
“uma pessoa brilhante e talentosa com um verdadeiro coração russo”, não
há nenhuma referência aos possíveis responsáveis pelo “crime vil e
cruel”.
2-
A segunda hipótese é de que a morte de Daria Dugina resultou de uma
operação do tipo “falsa bandeira”. Agentes russos armaram a provocação
de forma a justificar mais brutalidade na guerra contra a Ucrânia.
Note-se
que as críticas internas a Putin que chegam à tona são todas acusando-o
de “pegar leve” com a Ucrânia. Nacionalistas mais exaltados exigem que
alvos como o Ministério da Defesa, o palácio presidencial e o Congresso
ucraniano, chamado Verkhovna Rada, sejam explodidos pelos mísseis que a
Rússia tem o poder de mandar para qual quer ponto do território
ucraniano.
Margarita
Simonian, diretora de redação da RT e do grupo estatal que controla
órgãos como as agências Sputnik e RIA Novosti, resumiu esse sentimento
ao tuitar depois do atentado: “Centros de decisão, centros de decisão”.
A
referência, obviamente, é às principais instituições ucranianas – ou
talvez até de países vizinhos. O senador Vladimir Dzhabarov, citado pelo
New York Times, disse que, se a Estônia não entregasse imediatamente a
suposta autora do atentado, “daria todos os motivos para a Federação
Russa tomar medidas duras”.
Corre também a versão de que o próprio Dugin havia criticado Putin a ponto de ter se tornado persona non grata.
A
vantagem da hipótese “bandeira falsa” é que nunca poderia ser
comprovada. A desvantagem é que indicaria uma disposição de Putin a
sacrificar até seus mais qualificados adoradores. Nem uma única pessoa
em posição de poder na Rússia estaria dormindo tranquila desde o
atentado que matou Daria Dugina.
3-
Existe ainda a possibilidade de que uma facção insatisfeita desse mundo
dos organismos de inteligência tenha resolvido agir por conta própria –
algo inimaginável, para um líder como Putin, um ex-agente da KGB, mas a
Rússia é um país que sempre desafia imaginações.
Esta
possibilidade foi cogitada pelo principal propagandista ucraniano, o
espertíssimo Mikhailo Podoliak, ao tuitar: “As serpentes dos serviços
especiais russos começaram uma briga intraespécies”.
Nesse
mundo complicado de fumaça e espelhos, um truque de magia usado como
metáfora para a eterna duplicidade dos serviços de inteligência, também
não pode ser descartada a hipótese de uma ação não hierarquizada de
agentes ucranianos.
No
mês passado, Volodymyr Zelensky demitiu não apenas o diretor do SBU, um
amigo de infância que havia colocado no comando de um serviço de
inteligência que originalmente replicava o modelo da KGB, como trocou o
comando de mais 28 cargos de um organismo inflado, com mais de 30 mil
integrantes.
Zelensky,
abraçado pela população como um herói nacional, também tem resistências
internas, na esfera militar e correlatos, que não admitem nem discutir a
possibilidade de um acordo com a Rússia. Seria varrido do mapa se
fizesse qualquer coisa parecida com concessões.
E
ainda existe a hipótese de que agentes ucranianos tenham sido
manipulados por operadores russos para criar o pretexto de uma
radicalização ainda maior de Moscou.
Só
na Rússia um escritor que não é nada íntimo de Putin – parece que mal
se conheceram – poderia estar no centro de um ato brutal como o que
matou Daria Dugina e de uma guerra cujas consequências ainda estão se
desdobrando.
Dugin
já foi chamado de “profeta fascista” que defende um império
euroasiático comandado pela Rússia e comparado a uma espécie de Rasputin
de centros de estudos que atraem fanáticos, embora seja difícil
enquadrá-lo nos clichês habituais.
No
Brasil, ele atraiu as atenções intelectuais de pessoas como o falecido
Olavo de Carvalho e da filósofa Flavia Virginia, inevitavelmente
descrita como filha do cantor Djavan. Com ela, escreveu artigos como o
que define o Brasil como um exemplo de pluriculturalismo, uma sociedade
“onde as culturas se misturam e não é possível seguir um fio condutor de
forma fidedigna porque as raízes não estão mais lá – por razões
históricas, foram apagadas”.
Dugin
acerta quando diagnostica o desamparo espiritual que o modelo emanado
dos Estados Unidos criou em muitas sociedades – e erra em praticamente
todo o resto.
No
site Geopolítica, uma de suas recentes contribuições fala extensamente
sobre uma partilha da Ucrânia entre Rússia e Polônia. Pleno de certezas,
ele garante que “a intensificação do papel da Polônia no conflito
agrava o grau da guerra entre Rússia e o Ocidente. Teoricamente, existem
duas soluções: concordar em dividir a Ucrânia, tentando tomar para si o
máximo possível e permitir que a Polônia aja por conta própria e não em
nome da Otan; ou seguir até o fim sob o risco de o confronto chegar ao
nível nuclear”.
“Se
não houvesse o risco de guerra nuclear, eu estaria inclinado a apoiar a
ideia de tomar o controle de todo o território ucraniano”, concede
Dugin.
Parece loucura, mas é real.
Sua
filha seguia o mesmo modelo de pensamento. Numa de suas últimas
entrevistas, exaltou o papel dos países que não tomaram posição contra a
Rússia. “Lula da Silva
disse que Volodymyr Zelensky é o culpado pela guerra”, afirmou
(”Zelensky quis a guerra. Se não quisesse, teria negociado um pouco
mais”, foram as palavras literais do candidato na entrevista à revista
Time).
As
teorias conspiratórias sobre sua morte, alimentadas por possíveis
conspirações reais, não vão parar nunca. Amanhã a guerra completa seis
meses e a Ucrânia comemora os 31 anos de sua vida independente – sem
gente nas ruas, como advertiu o governo, prevendo que a resposta russa
será maligna.
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