A Gazeta do Povo publica hoje a segunda parte da correspondência mantida pela colunista Bruna Frascolla com o filósofo belga Drieu Godefridi:
Hoje
continuamos a correspondência com Drieu Godefridi, filósofo do direito
formado em Sorbonne, cujo livro O Reich Verde foi recentemente traduzido
no Brasil. Como vimos,
ele manifestou ceticismo quanto a explicações gerais que presumam que
"tudo está ligado". Segui então perguntando pelas causas do
progressismo, já que de fato a uniformidade dessa manifestação
político-cultural que cruza os continentes inalterada me espanta.
Pergunta sobre as causas do progressismo
É
possível fazer um paralelo entre o comunismo e o progressismo (chamemos
assim este conjunto ideológico anti-humano) enquanto fenômenos sociais:
tipicamente, os grupos sociais que eram comunistas ontem são
progressistas hoje. Mas à época do comunismo havia uma potência central
que podia explicar a irradiação quase uniforme do comunismo. Se um
comunista europeu soava igual a um comunista africano ou americano,
podia-se explicar o fenômeno pela influência direta da URSS. No entanto,
o mesmo se passa no caso do progressismo -- ou é ainda pior, já que o
comunismo abarcava mais vertentes adversárias e expressivas (vide o
estalinismo e o trotskismo, por exemplo). A uniformidade do progressismo
é inacreditável. Assim, a explicação mais intuitiva é perguntar cui
bono e atribuir-lhe a causa. Respondo que o progressismo é bom para quem
quiser criar monopólios, pois as quotas para LGBTQIAP+, e outras
similares, geram custos adicionais que não podem ser pagos pelos
pequenos. Posso então fechar a sua padaria por transfobia.
No
entanto, se considerarmos que o progressismo não é causado por uma
grande planificação central, teremos de procurar pelas causas nas
mentalidades. Poderemos atribuir a um mal social ou moral a condição de
causa primeira e depois acrescentar os monopolistas como atores sagazes,
porém secundários, que usam essa fragilidade social a seu favor. Ainda
que contraintuitiva, não é má ideia, e pode ser usada para explicar
também o comunismo, colocando a URSS como um ator sagaz que usava a
confusão espiritual da juventude urbana e escolarizada. Era o tipo de
abordagem usual na literatura russa.
Você pensa numa explicação desse tipo?
Resposta
Suas questões são bem interessantes e as respondo sem demora:
1.
O que explica a relativa coerência dos comunismos é o papel da URSS,
você tem razão; mas também, e de início, o papel da obra de Karl Marx
(mais Friedrich Engels). Falando em termos doutrinais, o comunismo
sempre foi um marxismo, e não se conhece experiência comunista que não
tenha reivindicado a obra de Marx. Ora, não há nenhum equivalente
doutrinal desse "farol" do comunismo naquilo que você chama de
progressismo contemporâneo. A questão só fica mais interessante!
2.
Antes de respondê-la, uma precisão terminológica: lastimo fortemente
que tenhamos relegado à esquerda o belo nome do progressismo. Por conta
própria, e ao exemplo de Friedrich Hayek, eu sou 'progressista' no
sentido preciso de que eu aprovo e celebro os imensos progressos
tecnológicos dessa civilização que o seu continente e o meu partilham.
Parece-me um erro deixar nas mãos dessa esquerda extremista e regressiva
o nome de progresso, bem como o de liberal. (Liberal, como você sabe,
designava originalmente, tanto em inglês como em francês, os partidários
do free-market [livre mercado]. Hoje, ‘liberal’, nos Estados Unidos,
designa exclusivamente a esquerda, e até os marxistas!)
3.
Me parece que a diferença maior entre a época da URSS e a nossa é a
velocidade na circulação da informação. Uma campanha de desinformação
made in URSS levava meses para ser fomentada; depois, meses, e às vezes
anos, para ser posta em funcionamento. Nos nossos dias, bastam umas
horas para que uma ideia, um meme, uma (des)informação dê várias voltas
no planeta e se imponha em nossas telas, inclusive a sua e a minha. Mas o
que explica a relativa uniformidade desse novo esquerdismo, na minha
humilde opinião, é que à matriz soviética se sucedeu a matriz
norte-americana. Dói-me escrever isto, mas os Estados Unidos são hoje o
coração cultural — no sentido gramsciano — e a matriz palpitante e
temivelmente fecunda das piores derivas desse novo esquerdismo. Isso em
todos os níveis: ideologia de gênero, neorracismo, ambientalismo. Só um
exemplo: faz meses que, nos Estados Unidos, a esquerda impõe a ideia de
que um homem pode estar grávido do mesmo jeito que uma mulher. Nada na
Europa. Seis meses depois, a mesma ideia se impõe por toda parte na
Europa. E é só um exemplo em mil. Estão derrocando estátuas nos EUA?
Apostemos que as estátuas também vão tremer sobre seus pedestais na
Europa! O que é verdadeiro quanto à Europa provavelmente o é para os
outros países do orbe "ocidental" no sentido civilizacional (Austrália,
Nova Zelândia, América do Sul etc.) A matriz cultural desse novo
esquerdismo é norte-americano, assim como a matriz cultural do século XX
era soviética.
Pergunta sobre a especialização temática
É
sem dúvida uma explicação simples e plausível. E é compatível com a
teoria de John Gray das religiões apocalípticas: após a queda do Muro de
Berlim, os EUA se tornaram o novo farol do Fim da História, e um outro
hegeliano -- Francis Fukuyama -- se tornou o profeta oficial. O mundo
inteiro caminhava "inexoravelmente" rumo a uma democracia americana e
uma economia de mercado; a paz seria eterna.
Quanto
ao nome, Thomas Sowell disse que os progressives são como as firmas
falidas que mudam de nome para escapar das cobranças. A infâmia racista e
eugenista da Progressive Era fez com que os progressives se chamassem
de liberals. Assim, é por haver existido um movimento com esse nome que
eu o uso. Quanto à história americana desse movimento, acho-a bem
explicada em Liberal Fascism, de Jonah Goldberg. Mas ele tomou essa
expressão de H. G. Wells, um inglês bem importante. Seria muito
conveniente uma história completa dessa ideologia de origem anglófona
que teve relações estreitas com o nazismo.
Hoje
os EUA são mesmo o novo centro de um império cultural à Gramsci. E é
interessante notar que diferentes aspetos de sua ideologia são
enfatizados em diferentes países. Suponho que o mais importante no
Canadá seja o gênero; na Europa, o ambientalismo. Aqui, é a raça. Desde a
II Guerra o Ocidente sabia que o Brasil não tinha segregação. A FEB
reuniu homens de todas as cores e eles trabalhavam como amigos. Depois a
UNESCO convidou Gilberto Freyre, um antropólogo cultural contrário ao
eugenismo e ao racismo, para coordenar um estudo que faria do Brasil um
exemplo de "relações raciais" para o mundo. Desde a influência da
Fundação Ford, porém, é preciso dizer que Gilberto Freyre é racista e
que o Brasil tem um "racismo velado" pior do que o racismo dos EUA.
Florestan Fernandes (um sociólogo comunista da USP) se tornou o pensador
racial oficial. Mas havia um outro antropólogo de esquerda, Darcy
Ribeiro, que endossava as teses de Freyre relativas à ausência do
racismo propriamente dito no Brasil.
Na
nova fase americana da esquerda global, é obrigatório introduzir
affirmative action em tudo: no começo, na universidade; agora, no
dinheiro que os partidos políticos gastam com os candidatos. Há um
grande problema: não dá para dizer sempre, no Brasil, se alguém é branco
ou negro. Como resolver? No começo, não tinham coragem de propor
tribunais raciais, e as universidades criaram o sistema de
autodeclaração. Sem surpresas, mesmo os brancos de olhos azuis se
declararam negros. As universidades então criaram as "comissões de
heteroidentificação de autodeclarações" -- i.e., tribunais raciais --
para decidir se o indivíduo é branco ou negro. No primeiro ano, dois
gêmeos idênticos foram declarados branco e negro pelo tribunal racial da
UnB.
O
Brasil tem uma Constituição (de 1988) antirracista, então a questão foi
levada ao Supremo Tribunal, que interpretou as quotas raciais como
constitucionais. No entanto, essa sujeição do político ao judiciário
parece já um sintoma da influência dos EUA. Essa sujeição foi notada por
Tocqueville, bem como a isolação entre a administração e a política.
Não creio que o povo que elegeu Trump seja progressive, mas creio que os
administradores sejam. Com juristas e burocratas autoritários, é
possível, nesse sistema, subjugar o povo.
Assim,
é plausível dizer que a democracia dos EUA degenera por causa dessas
duas particularidades, e que a força desse país exportou os vícios de
seus sistema político?
Resposta
1.
Isto que você escreve sobre a especialização dos nossos continentes nos
diversos registros desse novo esquerdismo é bem exato: "é interessante
notar que diferentes aspetos de sua ideologia são enfatizados em
diferentes países. Suponho que o mais importante no Canadá seja o
gênero; na Europa, o ambientalismo. Aqui, é a raça." É isso mesmo. O
ecologismo é provavelmente a única variante desse novo esquerdismo na
qual a Europa ocidental possui uma distância de vantagem sobre os
Estados Unidos. A União Europeia, enquanto construção burocrática não
democrática, se presta maravilhosamente à imposição de uma agenda
ecologista extremista. Está muito claro que é o caso dos nossos dias,
sob a influência do Comissário europeu Frans Timmermans, provavelmente o
pior extremista que chegou ao poder na Europa Ocidental após 1945. Esse
socialista holandês convertido ao ecologismo fanático é a encarnação
perfeita da tese que defendo em O Reich Verde.
Continua
sendo verdade que o sol último desse novo esquerdismo é
norte-americano. Não nos esqueçamos do que distingue os EUA da Europa,
bem como da América do Sul: a força. Setecentos bilhões de dólares de
orçamento militar anual: a caldeira norte-americana desse novo
esquerdismo se apoia sobre um poder sem igual na superfície do globo e
sobre o impacto massivo de sua indústria cultural sobre nossas
cosmovisões nacionais.
2.
Sua descrição dos malfeitos do neorracismo da esquerda contemporânea
também é perfeita. Como descrevi no meu ensaio Estampillés — essai sur
le néo-racisme de la gauche [Carimbados: Ensaio sobre o neorracismo da
esquerda], levar em conta o fator racial leva necessariamente às
consequências que você descreve: tribunais raciais. Vão chegar a medir
os crânios, como faziam os nacional-socialistas alemães, para certificar
a raça dos candidatos à universidade? Costuma-se esquecer, mas o
nazismo não era um "white supremacism" [supremacismo branco], senão um
"aryano-supremacism" [supremacismo ariano], i. e., eles tinham "o
Ariano" como uma raça superior a todas as demais. No começo e antes de
todos, o Eslavo, que é tão branco quanto possível. Os cientistas
nazistas consideravam o Eslavo como uma espécie de animal mal-evoluído.
Mas como era tão branco quanto um alemão, amiúde louro e de olhos
claros, os nazistas tomaram de empréstimo ao teórico francês Vacher de
Lapouge sua teoria de raças baseadas na forma do crânio. Acrescento uma
imagem de uma dessas cientistas nazistas trabalhando, i. e., medindo o
crânio de uma cigana, em 1938:
E os que têm ancestrais mestiços? Esse neorracismo é tão grotesco em sua teoria quanto monstruoso em seus efeitos práticos.
3.
A judicialização do político é uma coisa boa e ruim. Que há uma parte
da judicialização consubstancial à separação dos poderes, no sentido de
Aristóteles, John Locke, Montesquieu e Friedrich Hayek, é incontestável.
Desse ponto de vista, é desejável, por exemplo, que uma corte
constitucional esteja em condições de deter uma lei que viole a
constituição. Sem isso, o próprio conceito de constituição é esvaziado
de sentido e voltamos à democracia radical e arbitrária no sentido da
Atenas do século V a. C. Por outro lado, o que é detestável é a chegada
ao poder de uma geração de juízes, na Europa como nos EUA, que
"legislate from the bench", i. e., que substituem com a sua visão do
justo a dos representantes democraticamente eleitos. Só um exemplo: na
Europa, toda a política do asilo se deu sob o golpe da jurisprudência
extremista e delirante da Corte Europeia dos Direitos Humanos, e
notadamente a decisão Hirsi, que impõe uma política "open borders" de
fato, não seria desejada por 10% dos cidadãos europeus, caso lhes
houvessem dado voz nesse assunto. Essa deriva não é só deplorável; ela
ameaça o fundamento — a definição — de nossas democracias. É sintomática
desse ponto de vista a reação da esquerda Democrata à decisão Dobbs
(2022) da Corte Suprema, que se limita a constatar que não existe
direito federal ao aborto na Constituição — um truísmo — sem impedir de
modo algum os Estados de praticarem o aborto caso esse seja o desejo
democrático da maioria dos seus cidadãos. Os Democratas não podem
aceitar isso, pois exigem que suas preferências subjetivas, até as mais
extremistas, sejam impostas por todos os meios, sem se importar com a
fraude dos mecanismos democráticos.
Agradeço por essa troca agradável que, espero, será tão interessante para você e seus leitores quanto para mim.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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