Quando no final dos aos 80 assistimos ao ayatollah Khomeini a lançar a "fatwa" sobre Rushdie, ignorávamos que a gramática da servidão faria de todos nós blasfemos. Helena Matos para o Observador:
“Salman
Rushdie incendiou parte do mundo muçulmano com a publicação, em
setembro de 1988, do livro “Os Versículos Satânicos”, levando o fundador
da República Islâmica, ayatollah Rouhollah Khomeini, a emitir uma
“fatwa” (decreto religioso) em 1989 apelando ao seu assassínio…” –
Recapitulemos: “Salman Rushdie incendiou parte do mundo muçulmano com a
publicação, em setembro de 1988, do livro Os Versículos Satânicos“.
Portanto não foi “parte do mundo muçulmano” que foi intolerante mas sim
Salman Rushdie que, qual pirómano, a incendiou com esse seu livro. Não
tivesse ele escrito tal livro e não tinha havido incêndio algum, certo?
Mas prossigamos que não acaba aqui este exercício ideologico-gramatical
da Lusa, logo replicado em vários sites. Se repararmos nesta notícia
Salman Rushdie não se limitou a incendiar parte do mundo muçulmano com a
publicação do livro Os Versículos Satânicos, é também ele quem leva
Khomeini (quiçá contrariado, acrescento eu) a emitir a “fatwa” que o
condenava a ele mesmo Salman Rushdie: “Salman Rushdie incendiou parte do
mundo muçulmano com a publicação, em setembro de 1988, do livro “Os
Versículos Satânicos”, levando o fundador da República Islâmica,
ayatollah Rouhollah Khomeini, a emitir uma “fatwa” (decreto religioso)
em 1989 apelando ao seu assassínio…” Regra nº 1 da gramática da
servidão: o mundo muçulmano, da rua aos dirigentes, limita-se a reagir!
O
que é a gramática da servidão? Aquela que não tem por fim registar e
fixar as regras da comunicação oral e escrita mas sim instituir uma
grelha sectária sobre o mundo. Por isso não interessa que as regras
sejam absurdas e muitas delas só se consigam usar em contextos
artificiais. Por exemplo, ninguém, a não ser em momentos criados para o
efeito, diz todas, todes e todos para chamar os outros mas o propósito
da gramática da servidão não é, como acontece nas gramáticas comuns,
facilitar a comunicação mas sim criar ângulos que permitam avaliar
ideologicamente os falantes: o orador da conferência disse todos em vez
de todas e todos? E disse ou não todes? Esqueceu-se ou propositamente
não escreveu tod@s na comunicação?… Como cada uma destas grelhas vem
acompanhada de uma rotulagem de intenções – no caso dos todas, todes, e
todos será linguagem inclusiva – de imediato se passa a avaliar não
apenas se o orador usa ou não linguagem inclusiva mas também e sobretudo
se ele é contra a inclusão. É claro que este falejar não é nem deixa
de ser inclusivo, nem a inclusão passa por tal destrambelho, mas isso
não interessa. Aquilo que interessa é que esta gramática da servidão
permite que as palavras a que recorremos sejam usadas não para avaliar o
que dizemos mas sim o que moralmente somos ou, mais rigorosamente, qual
o grau de servidão que mostramos perante os nossos
inquisidores-ayatollahs.
Não
é por uma questão de eficácia de comunicação que recorro à imagem dos
inquisidores-ayatollahs. Na gramática da servidão o erro é pecado e os
zelos arrebatados da blasfémia esconjuraram o raciocínio, por isso o que
choca e causa escândalo não é aquilo que alguém diz ou escreve mas sim a
ofensa que outros experimentam perante aquelas palavras. Não por acaso
todos os dias actores, cantores, jornalistas… se desfazem em desculpas
perante as fúrias de gente que se diz ofendida:
“Agir
pede desculpa pelo tema “Filha da Tuga”. Depois da polémica com o tema
“Filha da Tuga”, interpretado por Irma Ribeiro, Agir pediu desculpa
publicamente e explicou a canção. O produtor da música, que está a dar
que falar pela frase “sou branca para os pretos/Para os brancos sou
preta”, recorreu ao perfil de Instagram para explicar a forma como foi
composta.” (depois de tudo lido não se sabe se rir ou chorar!); “Shawn
Mendes pede desculpa a Sam Smith por se referir ao cantor por “ele”. Em
março de 2019, Smith explicou que não se considerava homem nem mulher,
flutuava “algures no meio”, anunciando depois nas redes sociais o
estatuto de não binário.” (na gramática da servidão as formas de tratamento funcionam como um teste ao grau de servidão dos falantes); “Beyoncé
vai mudar letra da canção “Heated” por causa de termo considerado
ofensivo. Um termo que pode ser usado de forma pejorativa contra pessoas
com deficiência consta na nova música de Beyoncé e está a causar
reações de desagrado. A artista já anunciou que vai mudar a letra” (amanhã será o tom que é considerado ofensivo; depois o sotaque, depois a acentuação…)
Este
paradoxo “tu ofendeste-me com o que disseste mas não foi nada disso que
eu quis dizer sim disseste peço desculpa se disse” substituiu o
anterior antagonismo em que se discordava e procurava rebater aquilo que
o outro dizia e escrevia. O “não tens razão” deu lugar ao “sinto-me
ofendido”. Na verdade não interessa realmente o que se diz ou escreve
mas sim a reacção emocional do outro. É esta transferência que
encontramos nas palavras da presidente da ILGA, Ana Aresta, para
explicar a queixa apresentada por esta associação (e também pela Opus
Diversidades) na ERC. Em causa estão artigos que estas associações
consideram de “cariz transfóbicos, com argumentos falaciosos”. Mas não
só. Nessa lista de textos que seguiram para a ERC também constarão “Outros
artigos, menos imediatos do ponto de vista do insulto, soam a
discussões inofensivas, intelectuais e etéreas mas chegam à maior parte
das pessoas LGBTQIA+, que os lêem como atos de bullying”. Ou seja,
não conta o que se escreve e nem sequer o que se pode ou não interpretar
no que está escrito mas sim as intenções, sublinho as intenções, que o
outro detecta naquilo que lê. O sentir-se ofendido é a
institucionalização da blasfémia sobre o raciocínio.
Quando
no final dos aos 80 assistimos ao ayatollah Rouhollah Khomeini lançando
a “fatwa” sobre Salman Rushdie foi como se estivéssemos a ver algo
proveniente do fundo dos tempos. Em contra-ciclo com o que acreditávamos
ser uma crescente liberdade. Mal sabíamos que a gramática da servidão
nos transferiria a todos do âmbito do raciocínio subjacente ao debate
para as fúrias blasfemas da cultura do cancelamento.
O calvário de Salman Rushdie é o símbolo daquilo em que não quisemos acreditar.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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