O que é uma mulher? A juíza Jackson não soube ou não quis responder, espelhando as temerosas e prudentes evasivas da "Esquerda” perante os delírios dos seus mais recentes “ativistas radicais”. Jaime Nogueira Pinto para o Observador:
Quando
o Presidente Biden anunciou a sua intenção de indicar para a vaga
deixada pelo juiz Stephen Breyer “a primeira mulher negra a ocupar o
cargo de juíza no Supremo Tribunal de Justiça”, parecia não haver
dúvidas sobre o que era uma mulher. Mas na audiência para o Supremo de
Ketanji Brown Jackson, a mulher indicada para o cargo, a dúvida
instalou-se.
A
resposta evasiva da juíza Jackson sobre qual seria a sua definição de
mulher, remetendo para os biólogos um eventual esclarecimento, não
tardou a ser louvada: afinal, o que era uma mulher? A definição era
complexa e sensível, envolvendo um sem número de ciências, variantes,
contextualizações, considerações. Mas se a réplica à pergunta
armadilhada lhe valeu louvores, não a livrou do inevitável
apedrejamento, não por excesso mas por défice de correcção: para quê
trazer a Biologia ao debate, e não ciências mais exactas, como a
Filosofia da Biologia e a Sociologia e o Direito de Género? Estaria a
Juíza a insinuar que era a Biologia, com a sua insana fixação no “sexo
atribuído à nascença”, que determinava o que quer que fosse?
O que é uma mulher?
A
polémica já tinha estalado do outro lado do Atlântico, no Dia da
Mulher, onde também houvera quem tivesse ficado à deriva ao tentar
definir o que os dicionários traduzem por “pessoa adulta do sexo
feminino”.
No
passado dia 8 de Março, em entrevista à BBC, a trabalhista Anneliese
Dodds, ministra sombra para as Mulheres e as Igualdades, após laboriosos
esforços para encontrar uma definição neutra e inclusiva de “mulher”,
não conseguira melhor do que um gaguejado “depende do contexto”. E, no
entanto, a mesma ministra sombra tinha publicado nesse mesmo dia a
promessa de que o Partido Trabalhista tudo faria para promover os
direitos dos tais “objectos indefiníveis”, que, no contexto empolgado e
simplista da exortação partidária, a deputada trabalhista não hesitara
em designar por “mulheres”: “Labour will lift women up, not hold them
back”.
J.R.
Rowling, a autora de Harry Potter, registando a contradição, sugerira
que alguém fizesse chegar à senhora ministra sombra “um dicionário e uma
coluna vertebral”, antecipando também uma futura proposta trabalhista
para que o Women’s Day passasse a We Who Must Not Be Named Day.
Rowling
é trabalhista e feminista, mas, ao que parece, o seu feminismo,
porventura antigo e ultrapassado, tem vindo a ser considerado “tóxico”
(trans-exclusive radical feminist é um dos muitos insultos que lhe
arremessam), e o mundo fictício de “feitiçaria branca e heteronormativa”
que deu ao mundo, a par das suas declarações polémicas e das suas
marcadas tendências “binárias” e “natalistas”, parecem tê-la
transformado, do dia para a noite, numa bruxa a queimar.
O
afastamento da biologia da definição de mulher veio também recentemente
garantir uma vitória retumbante nas competições da Liga Universitária
Feminina de Natação Americana a Lia Thomas (o ex-nadador Will Thomas,
que chegou a competir sem grandes resultados na categoria do sexo que
lhe foi atribuído à nascença). As outras concorrentes, após terem
sofrido no pódio a opressão dos resquícios biológicos de masculinidade
tóxica que, aparentemente, terão sobrevivido à transformação de Lia,
limitaram-se a protestar, não ousando evocar “gender based
discrimination” para acusar a atleta trans de concorrência desleal. De
qualquer forma, entre a pressão académica e mediática e as evidências
práticas, o assunto começa a levantar problemas de equidade que os
organismos desportivos e de ética desportiva têm dificuldade em
arbitrar, pelo que se prevê, também no mundo do desporto, mais uma
frenética multiplicação de pequenas leis, subdivisões e sub-categorias. A
conhecida frase de Chesterton – “When you break the big laws, you do
not get freedom, you do not even get anarchy, you get the small laws.” –
promete não perder a actualidade.
Uma
coisa é certa: apesar dos silêncios e das evasivas, já não restam
dúvidas de que reina a dúvida e a incerteza entre as várias esquerdas
sobre estas escorregadias matérias.
A
normalidade alternativa que os discípulos e simpatizantes da Cultura do
Cancelamento e do Novo Despertar querem instaurar, e que seduz cada vez
mais “activistas”, é sectorial, minuciosa e exigente – e tem um
infinito capital de queixa e de denúncia. No capítulo do sexo e do
género, dado o rol de auto-determinações cada vez mais específicas e
minoritárias e o constante acrescentar de letras à já sobrecarregada
sigla LGBTQ+, qual deverá ser agora a mais neutra e inclusiva definição
de mulher (ou de homem, ou de ser humano, ou do que quer que seja), fora
da obsoleta realidade binária? Ninguém sabe, e ninguém, nem o mais
credenciado dos militantes de uma qualquer esquerda, ousa arriscá-la, a
menos que queira voluntariamente submeter-se ao apedrejamento dos
“activistas” de alguma variante identitária erradamente incluída ou
excluída. Daí as prudentes ou temerosas hesitações da juíza Jackson e da
deputada Dodds, as acusações de que J. K. Rowling tem sido alvo e o
relativo silêncio das nadadoras da Liga Universitária Feminina de
Natação Americana.
O fim da Esquerda Social?
A
ideia de que não há limites à imaginação e à criação de identidades nem
barreiras da natureza quer agora afirmar-se como realidade científica,
como Ciência, como várias ciências ou simplesmente como a Ciência, e não
se conforma com a designação de Ideologia, expressão insultuosa cuja
“invenção” alguns atribuem à extrema-direita de Bolsonaro, outros à
campanha do Não no Acordo de Paz da Colômbia e outros ainda à Igreja
Católica de São João Paulo II e Bento XVI.
Mas
mesmo que a Ideologia de Género, parte da Ideologia Woke, não seja
exactamente uma ideologia, é, pelo menos, um insidioso “projecto moral”.
Um projecto centrado na tríade sexo, género e raça que proporciona
modernidade, activismo, fanatismo e conforto cívico aos utentes, que
contamina e seca quase tudo, Cultura, Ciência, Pensamento, Liberdade de
Expressão, mas que não belisca a Economia, atirando para a irrelevância
velhas causas, comuns à esquerda social e à direita social, mas
tradicionalmente definidoras da Esquerda, como a Justiça e a Igualdade
económica.
Que
a esquerda não-identitária pode estar a acordar para esta mortífera
ameaça ao seu coração ideológico, é o que convincentemente defende o
escritor e jornalista David Rieff, em “Only the Economic Left Can Beat the Woke”
(Compact, 24 de Março 2020). Para Rieff, o “radicalismo cultural” e o
“conformismo económico” do novo “projecto moral” são notoriamente
compatíveis – compatíveis entre si e com o Capitalismo ou o
Hiper-Capitalismo, que alimentam e de que se alimentam. Daí que, na
América, talvez só a esquerda anti-identitária possa combater
eficazmente a nova moral, já que Rieff deposita poucas esperanças numa
direita “disposta a virar as costas ao capitalismo” ou na “remoralização
do mundo cristão” e vê como altamente improvável a reedição da fusão
entre “falcões neoconservadores” e “conservadores religiosos” da América
da Guerra Fria.
Para
o novo consenso, a representação é tudo e a sub-representação que urge
corrigir não é a económica ou a social: é a dos não-brancos e a dos
sexualmente descoincidentes. A crítica à cultura popular ou de consumo é
inexistente (desde que sejam cumpridos os preceitos vocabulares e as
quotas de género e raça, os filmes, por exemplo, podem – ou até devem –
ser medíocres e estupidificantes); e o interesse dos cultores do novo
caldo cultural pelas desigualdades sociais e pelo funcionamento e
práticas reais das empresas e das multinacionais é praticamente nulo
(desde que assegurada a representatividade dos sub-representados e
certificadas as bandeiras, os pronomes e os slogans a agitar pelos
capitalistas e híper-capitalistas).
O
pessimismo de Rieff nesta “low, dishonest, cretinous era” – dominada,
pelo menos na sua América, pela ideologia ou pelo projecto moral Woke – é
quase total. Mas ainda que Rieff detecte reacções articuladas à
direita, é no acordar do que ainda resta da Esquerda Social ou Económica
que o filho de Philip Rieff e Susan Sontag vê tímidos sinais de
esperança.
“Acordai!”
John
Hirschman, do American Conservative, atribuiu a dificuldade da
candidata a juíza do Supremo Tribunal norte-americano em providenciar
uma definição de mulher às “várias e concorrentes afirmações de esquerda
sobre identidade e sexo”.
Se
os Estados Unidos são uma sociedade patriarcal, governada por homens
que querem dominar as mulheres, então, para resistir a esse domínio e
confrontar o opressor, há que desafiar a definição da mulher-vítima, e
encontrar uma outra para a mulher-emancipada. Foi o que fez o feminismo.
Mas como fazê-lo agora, com a galopante proliferação de géneros e
sub-géneros, de oprimidos e sub-oprimidos a colidir com um feminismo
tornado, também ele, obsoleto, quando não “tóxico”?
Por
uma questão de “representatividade sem apropriação cultural” percebe-se
que se queira no elenco do Supremo Tribunal de Justiça norte-americano
uma juíza mulher e negra. O problema é que o ímpeto representativo dos
fiéis da Ideologia Woke tende agora a privilegiar categorias menos
monolíticas e mais modernas e exóticas de sub-representados; e a juíza
Jackson, conhecedora do terreno que pisa, quer tudo menos ofender a
poderosa ala radical da esquerda cultural americana que se prepara para
determinar a agenda do Partido (agenda essa que pode custar cara aos
Democratas em Novembro).
Irão
as esquerdas tradicionais, as esquerdas feministas, as esquerdas que
queriam a redistribuição dos recursos, o fim da “oligarquia capitalista”
e da “tirania imperialista”, as esquerdas que não se mostravam
especialmente interessadas em refazer realidades biológicas e
sintáticas, sucumbir sem estrebuchar àquilo a que naturalmente chamariam
“uma ideologia burguesa de liberalismo individualista”? Esperarão ver
algum dia alguma das suas lutas nas agendas dos novos “activistas
radicais”?
Entretanto,
e até que estas esquerdas acordem, o dia 8 de Março, Dia da Mulher
(esse ser indefinível), ou o dia 1 de Maio, Dia do Trabalhador (esse
desconhecido) empalidecem perante o frenesi do hasteamento de bandeiras
do dia 31 de Março, Dia Internacional da Visibilidade Transsexual, ou do
definitivamente definido até à próxima fobia dia 17 de Maio, Dia
Internacional Contra a Homofobia, a Transfobia e a Bifobia. E entre os
liberais que, à direita, entregam o destino comunitário à mão invisível
do mercado de capitais e de ideias e uma esquerda silenciosamente ferida
de morte e dividida, muitos outros dias do género se seguirão.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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