É mais fácil acreditar num ser humano com oito patas do que na inocência do ex-presidiário. Augusto Nunes para a revista Oeste:
O
ex-presidente duas vezes condenado em segunda instância por lavagem de
dinheiro e corrupção passiva voltou ao noticiário político policial
pendurado na lista dos caloteiros da Receita Federal. Nas declarações de
imposto de renda, Lula escondeu uma pequena parte do que ganhou de
empreiteiros agradecidos para sonegar R$ 1,2 milhão. É mais que os R$
321 mil tungados pelo sobrinho Taiguara Rodrigues dos Santos. É dinheiro
de troco perto do que o Fisco está cobrando de José Dirceu: R$ 68
milhões. É sobretudo a confirmação de que Lula se tornou o avesso de
Getúlio Vargas, a quem costuma comparar-se. Um deixou a vida para entrar
na História. Outro saiu da História para cair na vida — sempre em
companhia de comparsas que reivindicaram o monopólio da honradez até a
descoberta de que o templo das vestais camuflava o bordel das messalinas
sem remorso.
O
advogado Cristiano Zanin, claro, debitou o caso na conta da Operação
Lava Jato. “As condenações foram anuladas pelo Supremo Tribunal
Federal”, recitou. Zanin merece um zero com louvor em Direito
Tributário, informa a curta lição de Everardo Maciel. “Uma coisa nada
tem a ver com a outra”, ensina o ex-secretário da Receita Federal. “Se o
patrimônio aumentou, paga-se o imposto e ponto final.” Mesmo que o
crime praticado por um ladrão esteja prescrito, exemplifica, o produto
do roubo tem de ser taxado. A imprensa velha não deu importância à
aparição da face sonegadora, descoberta pela revista Veja. E os
jornalistas devotos trataram de enxergar mais uma fake news, inventada
pelo gabinete do ódio. Quem não consegue enxergar a folha corrida de
Lula deveria ser indiciado por miopia conveniente, processado por
vigarice voluntária e condenado a prestar serviços gratuitos a um clube
dos cafajestes.
Para
a tribo dos cretinos fundamentais, não existiram o Mensalão, o
Petrolão, as negociatas bilionárias envolvendo empreiteiros, as
palestras de US$ 400 mil, as bandalheiras com ditaduras africanas, o
maior esquema corrupto desde o Dia da Criação, fora o resto. Tudo foi
parido por um imaginoso juiz que decidiu ser ministro ainda nos tempos
do berçário e por um bando de procuradores especializados em acusar até
bebês de colo. Mas já não fico perplexo quando vejo na TV alguém
reafirmando aos berros a inocência de Lula. Limito-me a recordar o que
houve com Newton Menon Gonçalves quando passou por Taquaritinga a
mulher-aranha. Eu tinha 9 anos quando fui conhecer a singularíssima
criatura junto com meu primo Newton, 1 ano mais velho.
A
mulher-aranha chegara na véspera a bordo de um trailer implorando por
reparos, pilotado pelo homem que — soube-se horas mais tarde — acumulava
as funções de motorista, marido e vendedor dos ingressos que custavam 2
cruzeiros. Por essa módica quantia, podia-se entrar no interior escuro
do veículo, contemplar a atração a dois passos de distância e ouvir,
contada pela protagonista, a história que explicava por que havia virado
aranha da cintura para baixo. Ambos com 5 cruzeiros no bolso da calça
curta, percorremos os 50 metros que separavam a casa dos meus pais do
trailer estacionado num canto da praça principal. Nos sete dias
seguintes, naquele palco improvisado, o drama incomparável seria exposto
ao povo de Taquaritinga. Ou às crianças da cidade, corrigia a fila de
bom tamanho mas desprovida de adultos.
A
cada meia hora, um grupo de cinco espectadores substituía o que acabara
de sair. Entrei com meu primo e três moleques que não conhecia, e
durante alguns minutos examinei a paisagem esquisita. O corpo da
mulher-aranha era dividido horizontalmente por uma mesa. Na metade
superior, vi uma mulher normal, gente como a gente, aparentando a idade
da minha mãe. O espanto emergia na parte de baixo: no lugar de pernas e
pés, havia quatro pares de patas com pelos, gordas e longas, como que
expropriadas de uma superlativa caranguejeira de filme de ficção
científica. O exame visual foi interrompido pelo começo do relato: “Eu
nasci normal, e cresci com aparência humana, mas me tornei uma pessoa
muito má”, disse a voz tristíssima. A continuação da narrativa
escancarou uma feroz espancadora dos dez mandamentos, uma praticante
compulsiva dos sete pecados capitais, uma incansável agressora dos
códigos legais, da moral, da ética e dos bons costumes. Só poderia dar
no que deu: já mulher feita, fora transformada por castigo divino em
mulher-aranha, condenada a vagar por cidades, vilas e lugarejos em
perpétua penitência.
Já
do lado de fora e com cara de velório, Newton avisou que queria ver
tudo de novo. Entrou na fila, pagou mais 2 cruzeiros, sumiu no interior
do trailer e, meia hora mais tarde, reapareceu chorando convulsivamente.
O ritual repetiu-se pelo menos uma vez nos dois dias seguintes.
Inconformado com as dimensões da tragédia, ele derramou cataratas de
lágrimas. Só parou de revisitar o palco do drama por falta de dinheiro.
Decretado o corte de verba, a mãe e duas tias tentaram inutilmente
convencê-lo de que aquilo não passava de tapeação, pura vigarice, coisa
para enganar moleques de miolo mole e caipiras que creem até em mula sem
cabeça. Ele só começou a convalescer da mais cava depressão com a
partida do trailer — e da personagem da saga apavorante. Newton morreu
muito cedo. Antes que lhe perguntasse se, casado e pai de duas filhas,
continuava acreditando na mulher-aranha.
Nada
de mais se dissesse que sim. Multidões de brasileiros engolem sem
engasgos o ilusionismo barato de Lula, as mentiras de Dilma e as
sucessivas variações da ópera do malandro encenadas pelos canastrões da
“esquerda brasileira”. Se tantos marmanjos juram que o prontuário
ambulante não cometeu uma única e escassa delinquência, por que não
poderia um homem com coração de menino comover-se com a má sorte de um
ser metade gente e metade aracnídeo? A mulher do trailer ao menos
procurava costurar uma história com começo, meio e fim para que a
medonha metamorfose parecesse verossímil. O deus da seita da missa negra
nem se deu ao trabalho de tentar mascarar parcialmente o vasto acervo
de patifarias com álibis menos mambembes. Apenas recita que é a alma
viva mais pura do Brasil, talvez do mundo, e acha que duvidar de tal
verdade devia dar cadeia. Acossado por incontáveis provas materiais,
evidências robustas, indícios veementes e pesadas suspeitas, Lula
preferiu inventar o faroeste à brasileira: os vilões é que perseguem o
mocinho, ladrões fazem o diabo para prender xerifes. Mesmo quando a
plateia exige a vitória dos homens da lei, os juízes da capital garantem
que os bandidos desfrutem do final feliz.
Os
fatos, contudo, sempre acabam prevalecendo. Como aconteceu com aquele
trailer, um dia a farsa se vai. E então o Brasil entenderá que foi menos
absurdo acreditar na história da mulher-aranha do que na pureza
incompreendida de um meliante sem cura.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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