BLOG ORLANDO TAMBOSI
Por mais que acreditem em dever salvar o mundo com suas sentenças, os juízes precisam levar em conta que estão submetidos ao texto constitucional. André Marsiglia para a revista Crusoé:
Se
há hoje no humor uma pessoa incontestavelmente provocativa é Léo Lins. A
provocação não se destina apenas a seu público, mas também a grupos
minorizados, alvo constante de suas piadas e, por tabela, ao Judiciário,
que recebe os queixosos e os ouve. O problema é que como advogado
constitucionalista, sempre tenho a fantasia de acreditar que o
Judiciário, uma vez provocado, apertado contra a parede dos
acontecimentos, diante das dificuldades do dia a dia, se comportará de
modo democrático, não autoritário. Sempre me estrepo.
Na
última semana, o Judiciário decidiu ouvir um pedido cautelar do
Ministério Público do Estado de São Paulo e tascar no humorista uma
série de restrições que não consigo chamar por outro nome diferente de
censura.
“De
antemão, ressalto que as medidas infra determinadas não se configuram
como censura (…)”, diz o texto da decisão, antes de basicamente impedir o
humorista de existir artisticamente. A ordem legal proíbe o humorista
de manter, transmitir, publicar, divulgar, distribuir ou encaminhar,
arquivos ou o que quer que seja que tenha conteúdo depreciativo ou
humilhante em razão de raça, cor, etnia, religião, cultura, origem,
procedência, orientação sexual ou de gênero, condição de pessoa com
deficiência ou idosa, crianças, adolescentes, mulheres, ou qualquer
categoria considerada como minoria ou vulnerável.
Léo
Lins faz piadas com minorias? Faz. Pesadas? Sim. Ofensivas? Muitas
vezes. Mas são piadas. E o Judiciário, por mais que acredite dever
salvar o mundo com suas sentenças, precisa levar em conta que está
submetido ao texto constitucional e proibido de censurar, por mais boa
intenção que tenha. Se levarmos a ferro e fogo as imposições da decisão
contra Léo Lins, qualquer humorista da atualidade teria uma gigantesca
dificuldade de sustentar sua liberdade de expressão em cima de um palco.
Ao buscar impedir que o humorista se manifeste no futuro, a decisão
flerta com a censura prévia, vedada expressamente no julgamento da ADPF
130 pelo Supremo Tribunal Federal.
As
restrições ao exercício da liberdade de expressão são possíveis, mas
apenas quando essenciais, e precisam ser temporárias, justificáveis e
específicas. As vedações impostas pela decisão são genéricas e
abstratas, dão margem a que toda e qualquer coisa caiba no balaio das
proibições. Diferentemente do entendido pelo Judiciário, neste caso, a
liberdade de expressão não é uma concessão dada àqueles que se comportam
bem; ela serve justamente para os que não se comportam poderem nos
provocar, causando reflexão. Esta é a essência do humor, aliás, e de
qualquer discurso artístico. Como já escrevi nesta mesma Crusoé sobre o
mesmo Leo Lins, em ocasião diversa, o humor mais tosco sempre teve na
história uma dupla função: servir como instrumento de crítica social,
como nos ensina o provérbio latino ridendo castigat mores, e aliviar a
tragédia com o riso.
Não
se pode examinar o discurso humorístico como se cada palavra fosse
dotada apenas da possibilidade de sua interpretação literal e
potencialmente ofensiva: um ator que faz no teatro o papel de um
pedófilo não comete o crime de pedofilia, um assassino num livro não
comete assassinato, o personagem de uma piada, seu autor e intérprete
não cometem crimes. O humor é arte; a piada, ficção. O limite à arte
pode ser dado pela plateia, pelo repúdio social, mas não pelo Direito.
Não
há suporte constitucional para que, em nome de louváveis valores
democráticos como os que a decisão judicial procurou proteger, se impeça
alguém de se manifestar e viver de sua profissão.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi

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