BLOG ORLANDO TAMBOSI
Sérgio Porto, o Stanislaw Ponte Preta, escreveu sobre o Festival de Besteira que Assola o País (Febeapá). Mas nós vivemos tempos muito cheios de alegria, liberdade, amor e democracia. Só podemos escrever sobre coisa boa, entendeu? A crônica de Orlando Tosetto para a revista Crusoé:
Dizem
alguns amigos que escrever sobre o Brasil é fácil porque nunca falta
assunto. Pela mesma razão, fazer graça com o Brasil também é fácil,
porque o assunto que nunca falta é quase sempre de teor ridículo, mesmo
quando é trágico. Algo de verdade, porém, deve haver nisso: Sérgio
Porto, que usava o pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta, ficou famoso
simplesmente relatando, com algum comentário ácido, o noticiário
brasileiro ridículo de seu tempo, juntando seus relatos sob o nome de
Febeapá, o Festival de Besteira que Assola o País.
Ora,
Stanislaw escreveu no período pós-64, sabidamente trevoso, maligno,
brutão, irrespirável. Embora tenha conseguido tirar humor de lá, sua
fórmula não pode mais ser aplicada hoje em dia, porque nós, brasileiros
hodiernos, pela graça do bom Deus e pela graça talvez até maior do novo
governo velho, vivemos tempos muito, mas olha, muito mais cheios de
alegria, liberdade, amor, democracia – tempos zelosamente vigiados e
guardados pelos mais iluminados, pelos mais esclarecidos dos próceres.
Daí que um Febeapá de hoje em dia, destes tempos em que o ridículo é do
bem, um Febeapá, eu dizia, que coligisse os ínfimos deslizes dos grandes
vultos que aí estão no leme da nossa nau, teria que ser corrigido para
algo como o Festival de Beatitude que Acaricia o País. Ou o Festival de
Benevolência e de Amor do País. Ou o Festival de Beleza que Arrasta o
País de um Lado pro Outro (não, aí ficou comprido demais e o acrônimo é
outro).
Só coisa boa, entendeu?
E,
para que não se diga que ressuscito a cobra e não mostro o
desfibrilador, passo a dar exemplos desse novo e edificante Febeapá. A
eles.
A
Petrobrás, sã e saneada que só ela, abaixando o preço da gasolina à
moda da Maria Antonieta, num balanço do leque, ou à moda do Alborghetti,
na bordoada.
Os
700 milhões de mortos por Covid, que fazem de mim e de ti, ó amigo,
dois Brás Cubas – eu, defunto autor, e tu, defunto leitor.
A ideia revolucionária de “fluidez jurídica” fluindo que é uma beleza, ainda que flua, ao que parece, prum lado só.
A
Lei da Transparência (que é tão transparente que, fala a verdade, você
nunca viu) comparada a uma menina de 11 anos estuprada pelo governo
velho.
Ex-juizão supremo mal saído das supremacias e já “adevogando” para empresa supremamente enrolada.
Lei
para regular jogos de fantasia virtuais (imagine um game com um
unicórnio ou uma fada todos desregulados – olha o descalabro).
E,
já que falamos do Alborghetti, outro juizão supremíssimo informando ao
mundo que na capital do Paraná só tem fascista (quase dois milhões
deles, que antro).
E
mais uma supremidade supremadora poetizando supremamente sobre a
liberdade: é um sentimento, uma emoção – daí que seja bom manter a coisa
(os sentimentos, as emoções) sob controle. Em todo caso, é bom saber
que aquilo que me dá quando vejo a Gal Gadot, quando me morre um tio,
quando ouço Bach ou quando o Palmeiras faz gol se chama “liberdade”.
A inovação do duplo chanceler, um que é e um que está.
Um ministro Vingador que, ufa!, alvíssaras!, cabe nas roupas do Hulk.
Um
youtuber é posto num conselhão de economia, e outro youtuber é proibido
pela justiça de contar piadas (como dizia Millôr Fernandes: humoristas
são importantes o bastante para serem calados, mas não têm importância
nenhuma para serem liberados).
E,
finalmente, deputados que criam lei para anistiar crimes que só
deputados (mentira: vereadores, senadores et caterva também) cometem.
Tudo isso entre o dia do trabalho e o dia das mães.
Eis
um pedacinho do nosso imenso e eterno Festival de Amor que Avassala o
País, o Feamapá. Como eu disse: só coisa boa. Agora, porém, vejamos: é
fácil mesmo ser brasileiro, amigo? Voamos em céu de brigadeiro,
navegamos em mar manso, caminhamos pela estrada do rei? Estamos firmes
no rumo do humor, da galhofa, da fuzarca enfim? Ou há no ar algo para
nos preocupar além dos aviões de carreira?
* * *
Eu
me lembro – por ter lido; sou jovenzão – que no pós-64 se cassava
deputado mais facilmente do que se caçava passarinho. Uma olhadinha
rápida nessas enciclopédias online que são o alívio do pobre e do
apressado mostra que entre 1964 e 1975 foram cassados 186 deputados
federais, a grande maioria em razão dos Atos Institucionais 1 e 5 – ou
seja, por razões ideológicas.
O novo governo velho está perdendo, por enquanto, por 186 a 1. Nos palácios, o placar é considerado aceitável.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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