BLOG ORLANDO TAMBOSI
A expressão vem ocupando o papel que palavra "neoliberalismo" desempenhava alguns anos atrás: o de rotular tudo o que a esquerda considera ruim. Diogo Schelp para a revista Crusoé:
Se
formos levar ao pé da letra as manchetes na imprensa brasileira a
respeito da recente eleição para os representantes que vão escrever uma
nova Constituição para o Chile, o eleitorado do país deu uma guinada
para o fascismo menos de dois anos depois de ter optado pelo presidente
mais à esquerda que já ocupou o Palácio da Moeda desde o fim da ditadura
de Augusto Pinochet, em 1990. O Partido Republicano chileno, que
conquistou 45% das cadeiras do Conselho Constituinte, é tachado nos
títulos das notícias quase sempre como sendo de extrema direta,
classificação que vem sendo atribuída com a mesma liberalidade ao
partido Chega!, de Portugal, ao Vox, da Espanha, à Frente Nacional, da
França, ao AfD, da Alemanha, à ala trumpista do Partido Republicano e ao
bolsonarismo, no Brasil.
“Extrema
direita” vem cumprindo o papel que a expressão “neoliberalismo”
desempenhava alguns anos atrás, o de rotular ou explicar tudo o que a
esquerda considera ruim: da austeridade econômica à guerra às drogas, da
epidemia de obesidade ao cinema de Hollywood. Como observou o
historiador mexicano Mauricio Tenorio-Trillo, “neoliberalismo é um
conceito explicativo todo-poderoso, dotado de uma forte e negativa carga
ética por meio de uma bombástica falta de especificidade“. Ou seja, é
um termo tão banalizado que se tornou vazio de significado.
Algo
semelhante está acontecendo com “extrema direita“. Assim como
“neoliberalismo“, a expressão existe e há um uso correto para ela — que
não é o que tem prevalecido na imprensa, nas redes sociais e nas
conversas de bar. Não basta defender valores conservadores, políticas
macroeconômicas ortodoxas ou mesmo mais restrição à imigração para ser
classificado como extrema direita. A chave para essa definição está mais
no grau de adesão a princípios democráticos do que em programas de
governo.
A
classificação mais aceita atualmente no meio acadêmico é a que foi
esquematizada pelo cientista político holandês Cas Mudde, da
Universidade da Georgia, nos Estados Unidos. Mudde é um dos maiores
estudiosos dos fenômenos do extremismo político e do populismo nos dias
de hoje.
O
campo da direita é dividido em extrema direita, direita radical,
direita e centro direita. À esquerda, a mesma coisa: extrema esquerda,
esquerda radical, esquerda e centro esquerda. A separar os dois lados
está o centro político. Mudde caracteriza o extremismo, tanto à direita
quanto à esquerda, como a rejeição à soberania popular por meio do voto,
à ordem constitucional e, por extensão, à própria democracia. A extrema
direita e a extrema esquerda, portanto, almejam a substituição de
regimes democráticos por ditaduras. Exemplos atuais seriam movimentos
neonazistas ou neofascistas, de um lado, e partidos comunistas ao estilo
soviético, de outro.
Já
o radicalismo político, na definição de Mudde, se caracteriza pela
busca de mudanças aceleradas na sociedade e no sistema político e se
opõe à noção de democracia liberal, com seu pluralismo e ênfase na
defesa de minorias, mas aceita o caráter procedimental da democracia, ou
seja, a necessidade de se submeter ao crivo eleitoral. Os radicais,
portanto, aceitam em linhas gerais o jogo democrático, mas estão
dispostos a testar seus limites e a passar por cima da diversidade de
interesses e opiniões existentes na sociedade para obter os resultados
políticos que almejam.
Para
a direita radical, esses resultados podem ser o endurecimento de penas e
a flexibilização das armas para a população como forma de coibir a
criminalidade, a proibição do casamento gay, para reforçar uma sociedade
sustentada em núcleos familiares com mulher, homem e filhos, ou a
imposição de restrições à imigração para proteger a economia e a
identidade nacionais.
Já
para a esquerda radical, os resultados podem ser, por exemplo, a
desapropriação de terras ou imóveis privados para a reforma agrária ou
para serem distribuídos a pessoas sem moradia. Quanto aos métodos, esses
podem flertar, à direita e à esquerda, com o autoritarismo e com a
violência, por meio da desobediência civil, de manifestações violentas e
de discursos virulentos contra adversários.
Percebe-se,
portanto, que os partidos e movimentos normalmente enquadrados na
extrema direita na realidade são, pela classificação de Mudde, de
direita radical. Isso vale, por exemplo, para o Partido Republicano
chileno, com seu discurso antissistêmico e antipolítico. Seu principal
líder, José Antônio Kast, já exaltou o ditador Pinochet, mas não defende
a volta da ditadura militar.
Também
entram na classificação de direita radical o Chega!, em Portugal, o
Vox, na Espanha, o Reagrupamento Nacional (antiga Frente Nacional, de
Marine Le Pen), da França, o bolsonarismo, no Brasil, e a ala do Partido
Republicano ligada ao ex-presidente Donald Trump, no Estados Unidos,
entre outros partidos e movimentos políticos ao redor do mundo.
Na
Europa, essas agremiações surgiram principalmente na esteira da aversão
ao multiculturalismo e à imigração. Nos Estados Unidos, da resistência a
mudanças culturais e aos efeitos econômicos da globalização. Na América
Latina, da percepção de que políticas progressistas exacerbaram a falta
de segurança pública e aceleraram mudanças comportamentais indesejadas
na sociedade.
Em
comum, além de alguns pontos de seus programas de governo, todos esses
movimentos exploram a insatisfação com os partidos tradicionais,
acusados de corrupção e decadência moral, e se apresentam como
alternativas contra o sistema vigente, mas em linhas gerais aceitam as
regras eleitorais do jogo democrático.
Essas
características remetem a outro traço da maioria desses movimentos: o
populismo, que divide a sociedade em “povo“, de um lado, e “elite
corrupta“, de outro, dois grupos hermeticamente antagônicos e
contrários. No caso dos grupos políticos acima mencionados, “povo”
normalmente é entendido de maneira restrita, não incluindo minorias e
imigrantes, por exemplo, e as “elites” podem ser políticas, empresariais
e intelectuais.
Por
esse motivo, outra forma de classificar partidos como o Vox, o Chega!, o
bolsonarismo ou os republicanos chilenos é como direita radical
populista ou, simplesmente, direita populista.
Em
seu sistema de classificação, Cas Mudde agrupa a extrema direita e a
direita radical (que, como vimos, são essencialmente diferentes no que
se refere à aceitação da democracia) sob o guarda-chuva de um terceiro
conceito, o de “far-right“. A tradução dessa expressão do inglês para o
português causa confusão e pode ser justamente a origem da banalização
do termo “extrema direita“. Isso porque tanto “far-right” quanto
“extreme right“, quando aparecem no noticiário internacional, costumam
ser traduzidas pela imprensa brasileira como “extrema direita“, apesar
de não serem exatamente a mesma coisa. Far-right, a rigor, engloba tanto
a extrema direita quanto a direita radical. Publicações acadêmicas
brasileiras e portuguesas têm tentado fazer a diferenciação traduzindo
“far-right” ora como “direita extremada“, ora como “ultradireita“.
O
importante para o leitor, quando se deparar com esses termos, é saber
que eles se referem ao espectro político que inclui tanto a extrema
direita (antidemocrática) quanto a direita radical ou direita populista
(democrática com ressalvas). Ambas se diferenciam da direita tradicional
(“mainstream right“, que inclui direita e centro-direita), pelo caráter
antissistêmico, pelo autoritarismo latente e pela baixa disposição ao
diálogo com os opostos.
Os
rótulos acima não são herméticos. Mudde e outros estudiosos costumam
observar que o crescimento eleitoral nos últimos anos de grupos de
direita radical levou partidos e líderes da direita tradicional a
incorporar parte de seus discursos e métodos. Há, por outro lado, uma
tendência de absorção de pautas da esquerda por partidos da direita
radical, como o apoio à distribuição de benefícios sociais (uma mudança
de postura que ocorreu, por exemplo, no Reagrupamento Nacional, de
Marine Le Pen, na França, no Alternative für Deutschland (AfD), da
Alemanha, e no governo de Jair Bolsonaro, no Brasil). Além disso, é
possível encontrar, no seio de grupos de direita radical, elementos
extremistas e, portanto, com ambições ditatoriais, como ocorre no AfD
alemão, que dá abrigo a integrantes de tendência neonazista.
Uma
coisa é certa: estando à direita ou à esquerda do espectro político,
ninguém gosta de ser chamado de extremista ou radical. Em 2021, durante a
campanha presidencial em que saiu derrotado para o esquerdista Gabriel
Boric, Kast entrou em discussão com Mudde no Twitter porque não queria
ser rotulado como sendo de “ultradireita“. Mudde respondeu que, para
isso, Kast precisaria parar de exaltar Pinochet e de falar em cavar
trincheiras para impedir a entrada de imigrantes no Chile.
No
lado oposto, o Podemos, da Espanha, faz grande esforço para desviar do
rótulo de esquerda radical ou populista, apesar de ser exatamente isso:
radical e populista.
A
confusão, portanto, é inevitável para muitos brasileiros, mas para
acadêmicos e jornalistas acostumados a lidar com esse assunto, é preciso
usar os termos de maneira apropriada. O leitor, ao final, só tem a
ganhar com isso.
Postado há 1 week ago por Orlando Tambosi
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