BLOG ORLANDO TAMBOSI
Juntando uma coisa e outra, isto é, a vaidade feminina à valorização da última das ovelhas, a evangélica tem um duplo incentivo para arranjar um homem horrível e sofrer na mão dele. E quando seus planos derem errado, ela vai querer a mão do Estado para botar o seu homem nos eixos. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
A
bancada evangélica costuma ser saudada como conservadora graças à sua
campanha contra o aborto e à ideologia de gênero. A campanha contra o
aborto é real. A campanha contra a ideologia de gênero é parcial. Num
aspecto muito importante, as líderes políticas evangélicas estão
enfaticamente a favor da ideologia de gênero: as pautas misândricas e
vitimistas. Ideologia de gênero designa muitas coisas, e os evangélicos
mais proeminentes no debate público costumam ser contra as muitas coisas
relativas à sopa de letras, desde o casamento gay até mudança de sexo
em menores. No entanto, se deixarmos de lado a sopa de letras e focarmos
nas mulheres, uma evangélica na política só se distingue de uma
feminista por ser contra o aborto.
O
governo Bolsonaro é um exemplo disso, já que aprovou a lei 14.164 que
leva a “violência contra a mulher” à escola. (Noutros tempos, dir-se-ia
“violência doméstica”.) Essa lei é assinada por Bolsonaro, Damares e
Milton Ribeiro; quem se destacou no ativismo por ela, porém, foi
Damares. Eis como Damares tratava
o tema do enfrentamento à violência contra a mulher: “A violência
contra a mulher, ela precisa ser encarada, mas nós só vamos trabalhar,
nós só vamos ter resultados de fato, com relação à violência contra a
mulher, começando lá na escola. Nós entendemos que tem que ir para a
sala de aula, falar com o menino e com a menina a partir de quatro anos.
O tema vai ter que ser matéria curricular. O tema vai ter que ser
discutido todos os dias em sala de aula”. A declaração é anterior à
aprovação da lei, que saiu muito menos radical; é apenas uma semana em
março para tratar do assunto. Ao meu ver, o que Damares prega nessa
declaração é abuso infantil. Por favor, imagine-se tendo que falar de
“violência contra a mulher” com um garotinho feliz de quatro anos. Agora
imagine-se falando “todo dia” sobre isso com um garotinho de quatro
anos, depois continuar quando ele fizer cinco, e assim sucessivamente.
Se não fizer isso, Damares não vai ter como trabalhar e as mulheres vão
continuar apanhando!
Crianças
de lares bons e ruins vão para a escola. Se um garotinho de quatro anos
tem um pai que bate na mãe, ele, individualmente, deve receber atenção
especializada. Na escola há crianças aflitas por todo tipo de crime; não
parece razoável dar aulas “todo dia” sobre diversos tipos de crime.
Isso seria abuso infantil. Não é doutrinando meninos de quatro anos que
se coíbe a violência doméstica, é punindo os criminosos e incitando mais
prudência nas mulheres.
Quando
as feministas tratam do assunto, o discurso é o mesmo: a chave é a
“educação”, isto é, doutrinação. E o fato de Damares propor uma
barbaridade sem causar escândalo é perturbador.
“Gênero nas escolas”, o determinismo social feminista
A
origem dessa lei é feminista radical. No começo da década de 2010,
quando eu estava na faculdade, existia um slogan que era repetido pelas
feministas: “gênero nas escolas”. Supostamente, os grandes vilões que
combatiam as feministas eram os evangélicos. (Silas Malafaia era o
arquétipo do vilão evangélico.) No início da década, ao menos no Brasil,
o “gênero” era muito mais um assunto das feministas do que dos gays. A
ideia é que homens e mulheres nascem iguais e a sociedade patriarcal os
corrompe, impondo, por meio da educação, diferentes “papéis de gênero”
aos seres humanos. O sexismo seria como o racismo: pega um acidente de
nascimento e usa-o para criar distinções e hierarquias. No caso do
racismo, o acidente de nascimento é a a cor; no sexismo, genitália. No
entanto, há uma diferença fundamental entre homens e mulheres
proporcionado por esse acidente: os homens são “estupradores
potenciais”. Como impedir o estupro? Por meio da “educação”. Seria uma
missão das escolas ensinar, desde a mais tenra idade, que homens e
mulheres são iguais. Nesse esquema, não há a possibilidade de mudar de
sexo em idade adulta: se você foi “socializado como homem”, então é
irreversivelmente homem, logo, estuprador potencial.
É
um amálgama de determinismo social e misandria. O homem se define por
meio de sua educação, e seu diferencial em relação à mulher é a
possibilidade de estuprar. As feministas costumam repetir que homens
podem ser estuprados, mas só por outros homens.
No
início da década de 10, “gênero” era mesmo coisa de feminista. Na UFBA,
quem dava o recém-criado “bacharelado em gênero e diversidade” era o
velho Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM), que
ficava no meu campus. Num ambiente muito mais tolerante do que hoje, o
NEIM era só era referido em tom jocoso. Um professor gay foucaultiano
aludia brincando às “mulheres do NEIM”. Um amigo petista se referia às
tabacalibãs (tabaca é um regionalismo que designa vagina). Pois bem: as
feministas lésbica-misândricas do NEIM queriam “gênero nas escolas”,
pois do contrário os evangélicos imporiam papéis de gênero subalterno às
meninas. Segundo a visão conspiratória dessas feministas, homens e
mulheres só são diferentes por causa da educação. Todos os homens são
“estupradores potenciais” porque “o patriarcado” os socializou assim. É
preciso resolver o problema por meio da “educação”.
Tudo
é muito confuso. À época, um amigo gay começou a me falar de Judith
Butler, a filósofa oficial da ideologia de gênero. Ele gostava muito, os
professores dele não conheciam e eu tampouco. Pelo que ele me
explicava, eu achava estranha a ideia de alguém poder ser uma mulher em
função do papel de gênero, porque o comportamento que ele usava como
exemplo era muito estereotipado. Por essa régua, eu não sou mulher e
Astolfo Pinto é, ao menos enquanto interpretava Rogéria. Daí ele dizia
que o comportamento estereotipado de algumas mulheres trans se devia à
necessidade delas de se autoafirmar. Mas o meu amigo se afligia à época
porque as suas amigas lésbicas queriam convencê-lo de que ele era um
potencial estuprador de mulheres porque é homem. Se tem pênis, foi
socializado como homem; se foi socializado como homem, é homem; se é
homem, pode estuprar mulheres. Daí ele respondia que não gosta de mulher
e as amigas lésbicas diziam que não importa, pois “sexo é relação de
poder”. Por aí vocês veem como é leve e aprazível a vida de militante.
As lésbicas ficavam obcecadas por pênis e estupro, chamando gays e
travestis de estupradores potenciais; os gays e travestis ficavam
furiosos e inventaram um nome científico para xingar as mocreias:
“transfóbicas”. E se eu já ficava incomodada com aquela descrição
estereotipada do que é uma mulher, imaginem as lésbicas.
No
frigir dos ovos, o que aconteceu foi que as organizações gays se
transformaram em associações de sopa de letras e ganharam das feministas
lésbicas essa briga. Com o casamento gay legalizado na maior parte do
Ocidente, a nova frente tornou-se direitos trans. E aí, senhoras e
senhores, é que houve o grande cisma no progressismo que baniu as
tabacalibãs: a feminista acha que pessoas barbadas de vestido não devem
frequentar espaços femininos passou a ser xingada como TERF, sigla de
trans-exclusionary radical feminist, ou “feminista radical que exclui
trans”. Como a celeuma foi muito mais forte em inglês, vem-me à mente o
bordão “Trans women are women”, “Mulheres trans são mulheres”. E se você
nega isso, você é conservador.
Moral da história: o feminismo radical virou conservadorismo, frente à ideologia da moda.
As evangélicas absorvem o discurso
Como
pouca gente suporta a pecha de radical, a maioria das mulheres de
esquerda aceitou que mulheres trans são mulheres. A postura, creio eu,
também tem muito a ver com a orientação sexual. Se a esquerdista for
heterossexual, seu feminismo consistirá em reclamar do
namorado/ficante/ex/marido etc. “Os homens são todos iguais!”, diz a
bisneta feminista da bisavó carola que dizia a mesma coisa. Mas se a
esquerdista for lésbica e aceitar as teorias de Judith Butler, ela pode
concluir que na verdade é um homem preso no corpo de uma mulher, fazer
uma jornada de transição de gênero e, no final, fazer parte da nata das
minorias oprimidas na prestigiosa condição de homem trans.
Se
há um assunto capaz de unir mulheres frívolas, é falar mal de homem.
Mulheres frívolas há em todos os credos e opiniões políticas, e a
política com certeza obrigou feministas e evangélicas a conversarem. Um
resultado é esse aí, o do “gênero nas escolas”. Como vimos, a educação é
um substitutivo à punição.
Tal
como as feministas, Damares também é contra o “punitivismo”. Em
entrevista a esta Gazeta, ela alega que há tantos casos de agressão à
mulher, que não haveria cadeia bastante para os agressores. Além disso,
as mulheres tendem a voltar para eles. Assim, em vez de julgar a vítima e
punir o agressor, cabe à turma do Direito punir com umas rodas de
conversa aí, para o cara repensar a vida, porque no fim das contas ele
estava reproduzindo a violência do lar no qual fora criado (ou
socializado, diria a feminista). Em vez de prestar serviços à
comunidade, o agressor poderia ter como pena um sermão desses. E nesse
sentido aparece também a infame lei que criminaliza a suposta “violência
psicológica” contra a mulher, sancionada por Bolsonaro. (Critiquei-a
aqui.) A mulher, explica Damares, só aceitava aquela condição por ser
uma vítima de violência. Aí precisa condenar o homem a ouvir blá-blá-blá
após transformá-lo juridicamente num criminoso.
Problema comum entre evangélicas
Por
que as evangélicas em específico? A especificidade é relativa tanto ao
sexo quanto à religião. Comecemos com o sexo: segundo uma síntese muito
sagaz de Jordan Peterson, as mulheres têm a sua jornada do herói ao
domar a fera, como em A bela e a fera. Quanto mais medonha a fera, maior
o desafio; quanto maior o desafio, maior a vitória. Logo, uma mulher
vaidosa que queira se sentir poderosa vai pegar o homem mais complicado
possível com o fito de transformá-lo num príncipe. Isso pode ter um lado
bom, que é o fato de ela insistir em um homem em vez de tratá-lo como
descartável. Mas pode também ser uma grande cilada para ela, caso não
saiba medir as próprias forças e avaliar o perigo com o qual está
lidando. (Já escrevi sobre as feministas que não sabem lidar com o
perigo também, aqui.)
Quanto
ao fato religioso, é comum entre evangélicos aumentar muito a própria
desgraça na fase pré-conversão. Quanto mais criminoso e degradado, maior
o milagre operado por Deus ao dar-lhe a graça. Vão dizer até que são
ex-aidéticos. (Eu creio que haja influência barroca nisso, e já escrevi
sobre. Todo evangélico ex-tudo seria um pouco como Gregório de Mattos.)
Por tabela, quanto mais desgraçado o homem que a evangélica achar, mais
divina será a sua conquista.
Juntando
uma coisa e outra, isto é, a vaidade feminina à valorização da última
das ovelhas, a evangélica tem um duplo incentivo para arranjar um homem
horrível e sofrer na mão dele. E quando seus planos derem errado, ela
vai querer a mão do Estado para botar o seu homem nos eixos.
Ao
cabo, no que depender do pseudoconservadorismo das evangélicas, o
Estado deve tomar conta dos maridos -- o que bem se parece com o que
Foucault temia. O meu professor foucaultiano estava certo. "As mulheres
do NEIM" são mesmo um caso sério.
Postado há 2 hours ago por Orlando Tambosi
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