Não foram apenas os africanos a serem sujeitos a condições de trabalho degradantes. No mundo colonial atlântico essa desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a pobreza que com a cor da pele. Artigo do historiador João Pedro Marques para o Observador:
Afirmei, no meu anterior artigo
no Observador, que a nossa esquerda woke só tem olhos para o suposto
racismo estrutural dos portugueses. Essa é uma das suas ideias fixas.
Outra é a escravatura dos negros, desvalorizando a dos outros povos ou a
dos próprios negros, desde que não haja sido feita por europeus e
americanos — ocidentais, numa palavra. É por isso, também, que as
pessoas dessa área política e ideológica costumam ser indiferentes a
formas acentuadas ou extremas de exploração e sujeição que não sejam
essa forma específica de tráfico e escravidão de africanos.
Esta regra tem excepções, claro. A antropóloga Cristiana Bastos escreveu,
há cerca de um ano, um artigo sobre os malefícios da economia de
plantação no qual sugeriu um paralelo entre as actuais condições de
exploração do trabalho de imigrantes, em Odemira e outros pontos do
país, e as que muitos milhares de portugueses enfrentaram em meados dos
século XIX, na Guiana e nas Caraíbas britânicas. A autora explicou,
adequadamente, que depois da abolição do tráfico de escravos e da
escravidão nas colónias inglesas foi necessário obter mão-de-obra por
outros meios para prover à carência de braços, em particular no
duríssimo trabalho da safra açucareira. Os britânicos foram encontrar
essa mão-de-obra na Índia e em várias regiões assoladas pela pobreza,
uma das quais a ilha da Madeira. Foram dezenas de milhar de madeirenses
que, como escreveu a antropóloga, “se sujeitaram a condições extremas
nas plantações de açúcar e muitos ali perderam a vida”.
O
artigo de Cristiana Bastos teve o mérito de chamar a atenção para
aspectos mal conhecidos da história da exploração do trabalho, mas
estranhamente não produziu grande eco nem suscitou desenvolvimentos
entre a nossa esquerda woke, que tanto gosta de bater no peito,
indignada com as injustiças do passado. E, no entanto, há muito terreno
para levar essa história mais adiante, e para assinalar que não foram só
as colónias britânicas que recorreram ao trabalho quase escravo de
portugueses pobres. O Brasil fê-lo em larga escala, na mesma época, e o
fenómeno assumiu tal dimensão e tais facetas que ficou, então, conhecido
por “escravatura branca”, ainda que, técnica e juridicamente não fosse
tráfico nem escravidão. Era, todavia, dessa forma que aparecia referido
nos jornais portugueses e brasileiros e que se abordava e debatia nas
nossas Cortes. E muito compreensivelmente, diga-se, pois as condições de
transporte através do Atlântico e de trabalho, nas fazendas e
plantações, faziam lembrar as do tráfico transatlântico de escravos e da
escravidão colonial dos negros.
Os
navios utilizados no transporte desses emigrantes para o Brasil (e
outros pontos das Américas) estavam equipados com vários dos apetrechos
que se usavam no tráfico negreiro e que eram proibidos pela legislação
anti-tráfico. A própria relação entre a tonelagem desses navios e o
número de passageiros transportados era, muitas vezes, equivalente à que
se verificava nesse tráfico. A sobrelotação era um elemento
omnipresente na travessia do Atlântico e as suas consequências podiam
ser agravadas pelo tratamento a bordo. A título de exemplo refira-se que
na galera Defensora, que em 1855 saíu sobrelotada do Porto, morreram 47
emigrantes, vítimas da fome e dos maus-tratos.
Os
engajadores ao serviço de companhias de colonização brasileiras
recebiam uma comissão por cada engajado. Estabeleciam contratos com os
emigrantes em Portugal, pagavam-lhes a passagem, tratavam dos papéis
necessários e ficavam com as suas vidas na mão. Por vezes, os próprios
capitães dos navios angariavam trabalhadores para irem para o Brasil sem
contrato fixo. As suas viagens eram feitas a crédito, estipulando-se
que o seu custo seria suportado no ponto de chegada por quem viesse a
contratar cada um dos emigrantes — que, já no Brasil, ficariam num
depósito ou no porão do navio, esperando que alguém pagasse aos
referidos capitães, ou seus representantes, a importância devida. Quem o
fizesse, adquiria o direito de explorar o trabalho dos pobres
expatriados durante um determinado período de tempo, o que se
estabelecia mediante um acordo geralmente muito desfavorável aos
recém-chegados. É que, vendo-se em situação desesperada, estes
costumavam aceitar qualquer contrato que lhes propusessem, só para se
verem livres da prisão em que se encontravam. Na descrição de um jornal
brasileiro da época as coisas passavam-se assim: “O capitão desembarca,
vai ao consignatário, começa a distribuir ou, para melhor dizer, começa a
vender os escravos de nova espécie e quem desejasse um homem, uma
criança, uma mulher, dava quarenta pesos, recebia um bilhete, ia a
bordo, escolhia a dedo; podiam-se retalhar famílias à vontade.”
O
próprio acto de escolha podia ser profundamente humilhante para os
emigrantes. Muitas vezes o potencial empregador pedia às raparigas que
levantassem os vestidos para mostrarem as pernas. Os rapazes imberbes
podiam ser despidos para verificar que não tinham doenças. A alguns
inspeccionava-se a boca e os dentes para aferir da idade e estado de
saúde. Em suma, fazia-se com os emigrantes, dizia o mesmo jornal, “o
mesmo que se costuma fazer com os escravos e animais, quando se querem
vender”. Por fim, também as condições de exploração evocavam a
escravidão pois os emigrantes podiam ser obrigados aos serviços mais
pesados e chegavam a sofrer castigos físicos infamantes como os que se
aplicavam aos escravos negros.
A
“escravatura branca” era, na verdade, uma forma de trabalho forçado.
Mas não era um caso pontual ou único, nem algo que apenas dissesse
respeito a portugueses. No século XIX várias partes das Américas usaram
macivamente essa forma de exploração do trabalho e recorreram em larga
escala a trabalhadores indianos e chineses, os chamados cúlis:
Cuba
terá recebido, entre 1847 e 1874, 125 mil cúlis chineses e se não
recebeu mais foi porque 15 mil morreram no transporte de barco até à
ilha espanhola. Apesar de serem formalmente trabalhadores livres,
contratados por oito anos, esses cúlis eram praticamente escravos. Os
seus contratos de trabalho não tinham cláusulas de repatriamento e
nenhum deles conseguiria poupar o suficiente, dos salários pouco mais do
que simbólicos que recebiam, para pagar uma viagem de retorno. Assim,
os que sobreviviam ao prazo do contrato, e que ficavam livres mas sem
modo de vida numa terra estranha, eram presos por vadiagem e forçados a
assinar novo contrato. Mas havia pior do que isso. Os cúlis chineses que
por essa altura eram transportados de Macau, através do Pacífico, para
as costas do Peru e do Equador, para trabalharem nas minas ou na
indústria do guano, raramente tinham a possibilidade de renovarem os
seus contratos pois morriam em números assustadores, ao cabo de um ou
dois anos de trabalho.
Só
para as Américas, nos 70 anos que vão de 1838 a 1918, terão emigrado
mais de um milhão de pessoas sujeitas a trabalho forçado vindas da Índia
e da China. Se lhes juntarmos os africanos, os portugueses e outros
europeus, os números duplicam. E triplicam ou quadriplicam se alargarmos
a área geográfica de modo a incluir o Hawai, as ilhas Fidji, Samoa, a
Austrália, a Malásia, a Birmânia, o Norte da Índia, o Ceilão e várias
partes de África.
Portugal
usou esse sistema de trabalhadores contratados a termo certo, mas, na
prática, impossibilitados de voltar para casa, em várias partes de
África, nomeadamente no arquipélago de São Tomé e Príncipe. Outros
colonizadores europeus também o fizeram nos territórios que
administravam. É claro que, ao contrário do que sucedia com a
escravidão, estes indivíduos não eram, em bom rigor, propriedade de um
senhor. Mas os seus serviços podiam ser vendidos e transmitidos por
herança, e as condições de vida eram semelhantes, quando não mais
penosas e desumanas, do que a escravidão havia sido.
Essa
é a primeira conclusão que importa sublinhar. Uma segunda conclusão que
convém nunca perder de vista é que não foram apenas os africanos a
serem sujeitos a condições de trabalho duríssimas e degradantes. Ainda
que com nuances, e em diferentes graduações, essa enorme desgraça tocou a
muitos europeus e asiáticos, como os indentured servants britânicos e alemães
— isto é, os trabalhadores vinculados que, nos séculos XVII e XVIII, se
utilizaram em larga escala na Virgínia e outras colónias da América do
Norte —, ou os cúlis chineses de que falei acima. No mundo colonial
atlântico essa desgraça esteve muitas vezes mais relacionada com a
pobreza e outras determinantes económicas do que com a cor da pele.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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