Avanço da reprodução assistida levanta dilemas sobre limites éticos da fertilidade
Especialista
da Organon alerta para importância de equilíbrio entre direito à
fertilidade e riscos da “fabricação de pessoas perfeitas”; medicina
reprodutiva deve crescer 23% ao ano no Brasil até 2026
As técnicas de reprodução assistida (TRA) transformaram radicalmente a
forma como lidamos com a infertilidade. Estima-se que mais de 12
milhões de crianças no mundo já tenham nascido por meio dessas
tecnologias, número que deve crescer para quase 400 milhões até o fim do
século, de acordo com um estudo publicado na revista Reproductive
Medicine (Faddy et al, 2018)1. No Brasil, uma pesquisa da
Redirection International indica que o setor da medicina reprodutiva
deve crescer em média 23% ao ano até 2026. Atualmente, o mercado
nacional movimenta R$ 1,3 bilhão e deve chegar à casa de R$ 3 bilhões.
Mas à medida que o número de bebês, cifras e a ciência avançam, também
se intensificam os debates éticos. Afinal, até onde é possível — e
desejável — intervir no processo natural de concepção?
Dados da Rede Latino-Americana de Reprodução Assistida apontam que o
Brasil é o líder no ranking de fertilização in vitro, inseminação
artificial e transferência de embriões, além de concentrar 40% de todos
os centros de reprodução assistida da América Latina. “É essencial
lembrar que estamos lidando com pessoas que não conseguem ter filhos
naturalmente e que veem nessas técnicas uma chance de realizar um sonho.
Mas a medicina reprodutiva não é mágica. Ela possui limites clínicos e
éticos”, afirma Viviane Santana, especialista em reprodução humana e
gerente médica da Organon farmacêutica.
Entre os principais dilemas está o uso de testes genéticos para
selecionar embriões. A técnica conhecida como PGT (Preimplantation
Genetic Testing) permite identificar alterações cromossômicas e doenças
hereditárias antes da implantação do embrião no útero. “É uma ferramenta
valiosa quando falamos de prevenção de doenças graves. Mas e quando o
teste revela alterações cromossômicas compatíveis com a vida?”,
questiona Viviane.
Outro ponto delicado é a chamada gestação por substituição —
equivocadamente conhecida como “barriga de aluguel”. No Brasil, o
procedimento só pode ser feito sem qualquer tipo de remuneração e por
familiares de até quarto grau, com exceções concedidas mediante
aprovação do Conselho Federal de Medicina. Ainda assim, Viviane relata
dilemas que fogem à regulamentação, como casos em que tentantes recorrem
à própria mãe para gestar o filho: “Essa criança será filha ou neta da
mulher que a gestou? Irmã ou filha do pai/mãe biológico?”.
A ausência de uma legislação específica no Brasil é um dos entraves.
“Vivemos um paradoxo: ao mesmo tempo que temos uma normativa bastante
permissiva, ainda operamos com base em resoluções médicas, sem uma lei
específica. Isso abre margem para judicializações e inseguranças
jurídicas”, explica Viviane. Para ela, mais do que proibir ou liberar
práticas, o país precisa ampliar o acesso às TRA — hoje disponíveis
quase que exclusivamente em clínicas privadas. “Muitos países já possuem
financiamentos governamentais que asseguram e incentivam os tratamentos
de reprodução assistida. Estamos sofrendo com o envelhecimento e
diminuição da população mundial, e o maior acesso a tratamentos de
reprodução assistida e planejamento familiar são fundamentais para o bom
funcionamento da sociedade a longo prazo.”
Doação de óvulos, embriões e espermatozoides também entra na pauta
dos dilemas. Apesar das regras rígidas que garantem anonimato e
segurança, a prática ainda gera debates sobre direitos,
responsabilidades e possíveis conflitos familiares. “É fundamental que
tudo seja feito com consentimento formal e respaldo médico. O que não
pode acontecer — e infelizmente ainda acontece — é o uso de métodos
informais e inseguros, como a busca por doadores em redes sociais.”
O destino dos embriões congelados que não são mais de interesse dos
casais também se tornou um desafio. Segundo as regras atuais, eles só
podem ser descartados ou doados para pesquisa após três anos de
criopreservação, mediante a vontade expressa dos responsáveis. “Há
clínicas acumulando milhares de embriões sem definição. É uma questão
ética que precisa ser enfrentada com urgência”, alerta.
Para Viviane, a medicina reprodutiva representa um direito
fundamental e uma oportunidade de transformar vidas. Mas precisa
caminhar com responsabilidade. “A possibilidade de formar uma família é
um desejo legítimo e deve ser respeitado. O que não podemos é deixar que
o avanço tecnológico ultrapasse os limites éticos e transforme a
reprodução em um processo de fabricação de seres humanos sob medida”,
conclui.
Referência:
-
Faddy MJ, Gosden MD, Gosden RG. A
demographic projection of the contribution of assisted reproductive
technologies to world population growth. Reprod Biomed Online. 2018
Apr;36(4):455-458. doi: 10.1016/j.rbmo.2018.01.006. Epub 2018 Feb 3.
|
Nenhum comentário:
Postar um comentário