POLITICA LIVRE
Um dos símbolos da chamada frente ampla que elegeu o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a ministra Simone Tebet (MDB) tem o desafio de refundar o Ministério do Planejamento e Orçamento, órgão criado há 61 anos e que foi extinto no governo de Jair Bolsonaro (PL).
A recriação da pasta preserva tarefas ligadas às suas raízes históricas —o planejamento da economia de governo, como diz o próprio nome—, mas apresenta também distinções em relação ao passado recente.
As secretarias dedicadas à gestão cotidiana do Executivo migraram para o novo Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, criando uma percepção de aparente esvaziamento —que Tebet rejeita.
A aposta da ministra para manter o protagonismo político conquistado nos últimos meses é impulsionar a agenda de avaliação de políticas públicas. Em uma primeira demonstração desse objetivo, ela criou uma secretaria para essa área, compondo o segundo escalão da pasta com o mesmo status das importantes secretarias de Orçamento Federal e de Planejamento.
A tarefa é elencada entre as melhores práticas internacionais e ganha força ao ser colocada como missão central da pasta, mas carrega consigo o desafio político de convencer os demais ministérios e o Congresso Nacional de que muitas ações defendidas e aprovadas por eles podem não ser tão eficientes e, por isso, merecem ser revisadas ou revogadas.
No próprio governo há dúvidas sobre o real poder da ministra para implementar as transformações pretendidas, que precisarão do apoio e do esforço de Lula para avançar e ultrapassar barreiras.
Por outro lado, interlocutores avaliam que a defesa da eficiência do gasto ajuda a suavizar o discurso, sobretudo para uma representante do centro liberal em um governo de esquerda.
Tebet embarcou na nova gestão sob o olhar cauteloso de quem é de fora. A principal dúvida é como será sua interação com o ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), e demais integrantes do governo, afeito à expansão de gastos públicos.
Em seu discurso de posse, a ministra fez questão de ressaltar que possui “alguma divergência” na área econômica, embora tenha depois minimizado, afirmando que as convergências são maiores.
A relação Tebet-Haddad também é acompanhada de perto porque ambos são considerados possíveis nomes para a disputa presidencial de 2026.
A negociação para o ingresso da ministra no governo já expôs os primeiros ruídos. Tebet queria ficar com a gestão do PPI (Programa de Parcerias de Investimentos), alocada na Casa Civil, e ter sob seu guarda-chuva os bancos públicos.
As duas investidas foram frustradas, mas hoje o discurso oficial é de que o objetivo era assegurar a participação do Planejamento no Conselho do PPI, formado por ministros —o que de fato ocorreu.
“Quando falei do PPI, queria saber se nós teríamos ingerência porque cabe a nós o planejamento. E o planejamento precisa ser global. Era só isso”, disse Tebet em recente entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
O Planejamento também ficou sem o braço da Gestão, que inclui a Secretaria de Patrimônio da União (responsável pela administração de mais de 700 mil imóveis no país), a Secretaria de Gestão de Pessoal (que cuida das políticas para o funcionalismo federal) e a Secretaria de Coordenação e Governança das Estatais (que faz a ponte com empresas públicas e estabelece diretrizes de pessoal e benefícios a essas instituições).
A cisão do Planejamento e a criação do Ministério da Gestão foi sugerida ainda na transição, por motivos técnicos e políticos. Um dos objetivos era aliviar a carga sobre o Planejamento, uma vez que as tarefas de gestão consomem tempo e poderiam sufocar as demais áreas.
A motivação política, segundo relatos colhidos pela reportagem, foi justamente a perspectiva de um representante da chamada frente ampla ocupar o Ministério do Planejamento. Antes de Tebet, o atual ministro dos Transportes, Renan Filho (MDB), chegou a ser cotado para o cargo.
A lógica da divisão era manter a ascendência do PT sobre áreas historicamente ligadas ao partido, como a política de pessoal —que vai negociar reajustes com os servidores e tratar de concursos. A pasta ficou sob o comando de Esther Dweck, identificada com o partido (embora não filiada) e que já foi secretária de Orçamento no governo Dilma Rousseff (PT).
Membros do governo ressaltam que as modificações feitas na estrutura do Planejamento foram decididas antes de Lula escolher Tebet como titular da pasta.
Mas a divisão ainda teve outra consequência: a diluição do peso de voto de Tebet na JEO (Junta de Execução Orçamentária), colegiado responsável por decisões de política fiscal e de distribuição de recursos entre os ministérios. Além dos componentes habituais (Casa Civil, Fazenda e Planejamento), a JEO terá a participação da Gestão —ou seja, três ministros mais alinhados ao PT terão poder de voto.
Na leitura de petistas, o trabalho à frente do Ministério do Planejamento vai exigir uma convergência de ideias com os projetos da Presidência e um diálogo amplo com a Casa Civil para evitar ruídos nas decisões. Isso poderia limitar o espectro de ações a serem implementadas pela pasta, reconhecem esses interlocutores.
Além disso, todas as medidas para melhorar a eficiência do gasto estudadas pelo Planejamento precisarão ter o aval e a proteção do presidente para avançar.
Aliados de Tebet afirmam que ela tem disposição para o diálogo e demonstra sintonia com demais integrantes do governo em temas como o social, mas “não será subalterna” e buscará defender suas posições à frente do ministério.
A ministra do Planejamento terá, na Secretaria de Orçamento, uma importante ferramenta para barrar iniciativas consideradas prejudiciais às contas públicas ou impor discussões consideradas prioritárias. Na avaliação de técnicos experientes, é no Orçamento que se faz o real ajuste das contas, enquanto a Fazenda, por meio do Tesouro Nacional, fica com a gestão do caixa.
Um dos desafios será finalmente conectar a avaliação de políticas a esses instrumentos. O Brasil já tem, desde 2016, uma estrutura voltada à realização de diagnósticos sobre programas. Nascido como um comitê, o Cmap (Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas) ganhou esse status em 2019.
De lá para cá, o Cmap já avaliou 60 políticas que custaram, ao todo, R$ 1 trilhão aos cofres públicos. O órgão emitiu 147 recomendações de mudanças, mas boa parte dos estudos segue dormindo nas gavetas dos ministérios e do Congresso, sem surtir qualquer efeito. O próprio governo, procurado diversas vezes por meio do Ministério da Fazenda, não informa se há um levantamento de quais sugestões levaram a medidas efetivas.
Um dos relatórios do Cmap mira o abono salarial, espécie de 14º salário pago a trabalhadores com carteira que ganham até dois salários mínimos (hoje R$ 2.604). Sua concepção se deu em 1970, mas o formato atual está previsto na Constituição de 1988 e em uma lei de 1990.
O abono é criticado pela falta de clareza em seus objetivos e pela focalização genérica na comparação com outras políticas, como o próprio Auxílio Brasil —voltado a famílias em situação de pobreza e extrema pobreza. Há ainda falhas operacionais, como pagamentos a quem não tem direito e até para trabalhadores falecidos.
O governo Dilma conseguiu implementar mudanças no abono salarial que ajudaram a reduzir seu custo, mas ele continuou existindo. No governo Bolsonaro, o então ministro Paulo Guedes (Economia) tentou restringir ainda mais o alcance da política, primeiro na reforma da Previdência —sem sucesso.
Depois, o próprio ex-presidente vetou novas investidas. “Não posso tirar de pobres para dar para paupérrimos”, disse Bolsonaro.
Entre especialistas ouvidos pela reportagem, uma das principais causas apontadas para essa desconexão entre a avaliação de políticas e a implementação de mudanças é a ausência de uma obrigação legal para que o Orçamento leve em consideração as recomendações. Sem esse comando, a decisão de rever gastos fica sujeita à vontade política e ao lobby de interessados.
Vinícius Amaral, consultor legislativo do Senado, diz que o processo de mudança exige também um grande esforço de comunicação para que a sociedade entenda os motivos das alterações. “A melhor forma de obter êxito nesse processo é apresentar evidências robustas de que o balanço de custos e benefícios da política [a ser modificada] é desfavorável para a sociedade”, afirma.
O Banco Mundial aponta como fator crucial a capacidade de comprometimento dos envolvidos na discussão e a união em prol do objetivo a ser alcançado. “Quem negocia, quem é excluído e quais barreiras bloqueiam a entrada na arena política determinam a seleção e implementação de políticas e, consequentemente, seu impacto nos resultados do desenvolvimento”, diz relatório da instituição.
Tebet demonstra determinação nessa agenda e escolheu um time qualificado nessa frente, que inclui o secretário de Avaliação de Políticas, Sergio Firpo, e o novo titular do Orçamento, Paulo Bijos.
Em artigo de 2021, Bijos escreveu defendeu a institucionalização do processo de avaliação como forma de evitar o vaivém de propostas malogradas em momentos de necessidade de recursos. Ele usa o recente caso da rejeição da mudança no abono por Bolsonaro como um exemplo prático disso.
“Nesse sentido, a RG [revisão de gastos] pode ser interpretada como um estabilizador do processo decisório, ainda que possa ter o efeito de apenas mitigar, e não afastar, a ocorrência de decisões desacertadas”, escreveu Bijos.
“Já há elementos institucionais favoráveis à recepção de ambas as práticas [de revisão de políticas públicas] pelo Brasil, embora ainda reste em aberto o desafio sobre como implementá-las”, afirmou o agora secretário de Tebet.
Fábio Pupo/Idiana Tomazelli/Danielle Brant/Folhapress
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