POLITICA LIVRE
Dom Angélico Sândalo Bernardino afirma já ter vivido diversas fases de um mesmo Brasil. Do país predominante rural que tateou reformas ao que repousou sob a penumbra de uma ditadura militar, do que foi palco das greves do ABC paulista ao que se redemocratizava e via, novamente, a sua população ir às ruas e reivindicar melhores condições de vida. De todos eles, o clérigo guarda histórias e a lembrança de preservar um voto de fé. “Eu sempre, teimosamente, tenho esperança”, diz ele.
O bispo emérito de Blumenau (SC) recebeu a reportagem em sua casa no Jardim Primavera, na zona norte da capital paulista, um dia após completar 90 anos de idade —ou 90 anos e nove meses, como se apressa em corrigir. “Somados os nove meses no ventre da dona Catarina, minha mãe querida”, explica.
Ao longo do dia de celebração, conta, não pôde desgrudar do telefone. “Foi gente da Espanha, do povo, de favela, de quando eu morei em Ribeirão Preto, gente branca, gente japonesa, gente negra. Ô, meu Deus do céu”, diz ele, entre um sorriso e um suspiro, ao revisitar as ligações que recebeu na quinta-feira (19).
“Um deles [dos que telefonaram] é meu amigo de quando eu era bispo da Pastoral Operária e ele era do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. Ficamos amigos. Batizei o filho dele, o neto dele… Quando a segunda esposa estava no hospital —a primeira foi para o céu—, me perguntou: ‘Dom Angélico, o senhor viria aqui benzer a minha esposa?’. ‘É claro’. Quando ela morreu, fui abençoar o corpo. Depois, se casou. ‘Dom Angélico, viria celebrar o casamento?’. ‘É claro’”, emenda, antes de confirmar que o amigo de longa data a quem se refere é o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Amigo do petista desde os anos 1970, quando comandava a Pastoral Operária, o bispo esteve ao lado de Lula em momentos de alegria, como o casamento com a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, no ano passado, e de perdas irreparáveis. Um deles foi o sacramento dado a dona Marisa Letícia na véspera de sua morte, ocorrida em 2017.
“Lula estava com as mãos postas, em silêncio, ao lado da cama. O salão [quarto] estava repleto de pessoas. Eu fiz a cerimônia da unção dos enfermos. Ao término, peguei a mão da esposa dele e pus a mão no ombro do Lula. Rezamos o Pai Nosso, que é a oração que Jesus nos ensina”, relembra o bispo.
Nascido em Saltinho, no interior paulista, Dom Angélico cursou filosofia e teologia e atuou como jornalista em publicações como os jornais Diário de Notícias e O São Paulo, ambos de natureza católica. Nesta última profissão não chegou a se graduar, mas guarda até hoje, dentro de sua carteira, o seu registro junto ao Sindicato dos Jornalistas de São Paulo.
Nesta conversa, o bispo emérito defende que, diante da perda de fiéis no Brasil, o catolicismo atue “corajosamente na evangelização” e lance mão de meios modernos de comunicação, diz rezar constantemente pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), afirma nunca ter visto tanta miséria no país e defende que a Igreja e a sociedade discutam mais sobre sexualidade e alternativas ao aborto.
“Nós precisamos nos aprofundar. Nós não falamos claramente a respeito de pênis, a respeito de vagina, a respeito de bumbum, a respeito do prazer, a respeito da evolução”, afirma.
UM BRASIL DE LUTA
O Brasil do tempo da minha ordenação de padre era um Brasil que estava crescendo. Era um Brasil de muita esperança, de muita luta pacífica. Depois, conhecemos a ditadura —ou melhor, o golpe militar, que foi dado porque havia já movimentos reivindicatórios por condições melhores de vida, de maneira particularmente especial no campo. Eu era jornalista e diretor do jornal Diário de Notícias, da Arquidiocese de Ribeirão Preto. A gente estava ao lado dos trabalhadores rurais.
Já naquele tempo, era um Brasil de luta, mas também um Brasil de sofrimento e de repressão.
Fui nomeado bispo em 1974 pelo grande papa Paulo 6º. Naquela ocasião, eu morava na periferia. Sempre fui um bispo da periferia de São Paulo. Primeiro na Vila Carvalho, depois na Vila Fraternidade, e assim por diante.
Fui nomeado bispo-auxiliar em São Paulo e integrei, meu Deus do céu, a equipe de dom Paulo Evaristo [Arns]. Minha ordenação aconteceu na Catedral da Sé, em 1975. Era o Brasil de muita luta, de muita organização, e dom Paulo me encarregou, então, da Pastoral Operária. Fiquei durante 25 anos nela.
Quantas vezes não saímos da periferia, da praça do Forró lá em São Miguel, e caminhávamos —olhe!—, milhares de pessoas, até a praça da Sé.
Tive contato com o [ex-governador de São Paulo] Mario Covas [do PSDB]. E ele disse: “Vou lá numa assembleia de vocês”. Nós, então, esperamos. Havia muitas pessoas reunidas, reivindicando sarjeta na calçada, creche, saúde e uma porção de coisas de que tinham necessidade. Era o Brasil de então. Vi o povão, mas o Mario Covas não apareceu. Falei: “Ele não veio”. Daqui a pouco, ele chega e fala: “Eu tô aqui” [risos]. Ficamos amigos caminhando juntos.
A BALA ASSASSINA
Foi um tempo de muita luta na Pastoral Operária. Eu tive na equipe, por exemplo, trabalhadores que foram presos. Eles não tinham nada a ver com subversão, e não eram subversivos, apenas reivindicavam trabalho e salário justo para todo trabalhador. E eu cito de maneira especial o Santo Dias [metalúrgico assassinado por um policial militar quando participava de uma das primeiras greves da categoria em São Paulo]. Ele era da minha equipe de Pastoral Operária.
Dom Paulo chegou e falou: “Angélico, o corpo do Santo Dias está lá no Instituto Médico Legal. Vamos até lá?”. Eu falei: “Vamos”. Dom Paulo chegou, foi abrindo caminho, e eu atrás dele. Um dos corpos era do Santo Dias. Nu. E varado o corpo pela bala do repressor.
Tenho dito pelo Brasil afora: nunca vi a imagem de Jesus com o peito varado pela lança como naquele momento vi o corpo do Santo Dias, militante da Pastoral Operária. Varado pela bala assassina.
Era o Brasil de muita luta. E ressalto e insisto: mas luta pacífica. Nunca armados, a não ser alimentados por Jesus, que é o nosso mestre.
MINHA TEIMOSIA
Eu sempre, teimosamente, tenho esperança. Naqueles tempos de luta, dom Paulo sempre dizia o seguinte: “Coragem, vamos avante. De esperança em esperança, na esperança sempre”.
Eu, teimosamente, cultivo o positivo nas pessoas e na sociedade. Vejo erros enormes, mas, de esperança em esperança, vou caminhando.
Agora, o mundo de hoje, que tristeza a guerra da Ucrânia, a maldita guerra da Ucrânia. E depois o mundo dos armamentos militares, inclusive o Brasil entra nisso. O dinheiro que é gasto em armas de destruição no mundo não tem cabimento. Se uma parcela mínima fosse destinada para o pão, para o alimento, para a moradia, saúde, educação, todos os bens que Deus ensinou a todos, e que se acumulam nas mãos de poucos, não haveria miséria no mundo.
No Brasil, querido e amado, nós vemos também muita dificuldade, muita miséria. Na minha vida de 90 anos, nunca vi tanta miséria, tanto morador de rua, tanta gente batendo na porta [perguntando] “tem um pãozinho aí? Tem alguma coisa?”. Nunca vi também violência tamanha —contra a mulher, na família, na sociedade.
Por isso, nós gritamos com Jesus. E eu repito com alegria aquilo que o meu amigo pessoal, o arcebispo de Aparecida [dom Orlando Brandes], já disse e por isso foi até desrespeitado: o Brasil precisa de “amai-vos”, e não de “armai-vos”.
Sempre tenho esperança de um mundo e de um Brasil diferente. Mas eu tenho muita esperança no Brasil de agora.
O CATOLICISMO EM BAIXA
Precisamos nos renovar como Igreja. A Igreja, antes de tudo, tem a missão de ser comunidade de Jesus, atenta ao que Jesus manda. E ser uma Igreja em saída, que vá realmente às periferias. Bispos, padres, religiosos, religiosas, leigos e leigas formando realmente uma comunidade evangelizadora, anunciadora do Reino de Deus, que é feito de justiça, amor e paz.
Diminuiu muito o número das comunidades eclesiais de base. O que aconteceu? Irmãos evangélicos começaram a montar pequenas igrejas de culto na periferia. E em atendimento a que, prioritariamente? Às necessidades básicas do povo.
Eu sempre digo que eu não sou filho da Igreja, eu sou cria, porque eu não me compreendo a não ser na Igreja.
Sempre acho que nós, cristãos, precisamos nos converter constantemente àquilo que Jesus quer de nós. Porque muitas vezes a gente fica mais preocupado com edifícios, com organizações, isso e mais aquilo, quando o templo vivo do Espírito Santo é cada pessoa.
Tenho confiança de que as igrejas cristãs se renovem, e que, inclusive, certas igrejas que se proliferam nas periferias também sejam atentas não a promessas eleitoreiras, simplesmente alienantes, mas que se comprometam como nós, Igreja Católica, com as reais necessidades do povo.
A Igreja precisa entrar corajosamente na evangelização, inclusive se utilizando desses meios moderníssimos de comunicação.
RELAÇÃO COM A POLÍTICA
Eu não tenho nenhum partido político, eu tenho opções quando voto. Isso eu tenho. Tenho amigos de diversos partidos e faço questão de valorizar a política.
Nós não estamos atrelados, como Igreja, a nenhum candidato. Não. Nós somos favoráveis àqueles candidatos que realmente lutam para que haja emprego para todos, salário justo, trabalho para todos, moradia, saúde. Aí nós apoiamos. E é nesse ímpeto que eu caminho também.
Quando me convidam, por exemplo, para a posse política disso e daquilo, eu digo não. Agora, para um ato religioso, eu vou. Preciso fazer essas distinções fundamentais.
Fui batizar o filho do Lula? Fui. O neto, a bisneta? Fui. Por quê? Eu sou ministro. Fui dar unção dos enfermos para a esposa do Lula, fui ao funeral? Fui. Marquei presença. Fui convidado para o casamento? É claro, estou lá, presente, com alegria. Querem que eu benza a casa onde vão morar? Conte comigo.
ABORTO
[Dom Angélico é questionado sobre revogações feitas pelo governo Lula de portarias que dificultavam o acesso ao aborto legal] Eu vi pelos jornais e não aprofundei ainda com a própria CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil]. O que eu faço votos é que esse governo dê muita esperança para esse país. Tenho confiança de que esse governo realmente seja favorável plenamente à vida.
A Igreja —de uma forma, eu digo, até radical— é a favor, e não contra isso ou aquilo. Ela é a favor. E, nesse caso, a Igreja é a favor da vida.
Na questão do aborto também é preciso que nós mudemos. Nós temos que mudar, mudar a educação na família, na escola, nos seminários, nos colégios e assim por diante. A respeito do quê? Da afetividade e da sexualidade.
Nós precisamos nos aprofundar. Nós não falamos claramente a respeito de pênis, a respeito de vagina, a respeito de bumbum, a respeito do prazer, a respeito da evolução. Quando nós ficamos jovens, adolescentes, na puberdade vem a fecundidade. Nós precisamos falar da fecundidade. E qual é a finalidade e a prioridade disso tudo? É a vida.
Como é o funcionamento do sexo num casal? Um celibatário é diferente, como eu, mas como é que funciona a questão sexual? Nós não falamos sobre isto. Nós somos, afetiva e sexualmente, uma sociedade de tabus. Não se conversa. Então só é “eu sou contra aborto, eu sou favorável”. Espera um pouquinho.
Nós também precisamos nos perguntar se alguém que engravidou, se engravidou, muitas vezes, sendo profanada na própria família, aquela menina, aquela jovenzinha… Então engravidou, vai abortar? Não, a gente pode perguntar: não há outros meios de a gente adotar aquela criança e efetivamente apoiar aquela mãe?
A gente precisa se perguntar qual é o amparo que se dá a uma menina que muitas vezes é profanada dentro da própria família e comete um aborto.
LULA E IGREJAS
O Lula realmente é católico, respeita profundamente todas as religiões e tem proclamado que o governo dele respeita o culto religioso. Essa é a posição dele. Vamos separar, não vamos instrumentalizar a religião. Não vamos usar o nome santíssimo de Deus em vão.
Nós precisamos respeitar os Poderes para que não aconteça esse desastre que aconteceu no dia 8 [de janeiro], em que vimos realmente depredações verdadeiramente criminosas. Em nome de quê?
Não é por aí. Temos que respeitar realmente o voto popular, mesmo que seja contra o nosso candidato.
JAIR BOLSONARO
Quando vejo que atacam o Bolsonaro dessa forma ou daquela forma, muitas vezes com desrespeito à pessoa, eu tenho dito: rezo constantemente pela saúde do ex-presidente. Rezo, também, para que ele possa, quem sabe, mudar a maneira de agir. Por quê? Porque eu reconheço, não estando de acordo com as ideias e atitudes dele, que ele é filho de Deus, é meu irmão. Somos todos irmãos, porque somos filhos do mesmo pai.
O Lula é meu irmão, meu amigo. Tem gente que diz: “Ah, mas ele é comunista”. É lamentável.
Nós precisamos, nos seminários, entre nós, bispos, evoluir no conhecimento da doutrina social da Igreja. A Igreja não é a favor do comunismo nem a favor do capitalismo que está aí. A Igreja anuncia uma sociedade numa economia verdadeiramente solidária. Não é possível que a riqueza se acumule vergonhosamente nas mãos de poucos, e multidões não tenham saúde, educação, moradia, não tenham nada.
A Igreja prega isto porque ela é fiel à mensagem de Jesus, de tal forma que aí nós precisamos evoluir no conhecimento e na prática da doutrina social da Igreja.
A ALEGRIA DE CADA DIA
Para mim, é preciso que a gente viva. O que Jesus diz? Ele não diz “se preocupe com o passado” ou “se preocupe com o futuro”. Não. A cada dia, basta o seu peso, basta o seu fardo. Então, o meu empenho é viver diariamente com alegria e com entusiasmo.
Eu tenho dor, “ai”, na perna, e fico muitas vezes “ai, minha coluna”. Agora, quando me perguntam “como vai, dom Angélico?”, a minha resposta é a seguinte: eu vou bem, graças a Deus. Nas mãos de Deus que é Pai, forte e alegre, e vamos para frente.
É assim que procuro viver a cada dia. E tendo um companheiro que nunca me abandona, que é o caminho, a verdade e a vida: Jesus. Eu repito e grito a honra que eu tenho na vida. Eu devo tudo, mas tudo, a Ele.
Bianka Vieira/Folhapress
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