A liberdade de expressão não é um bem secundário nas democracias. Coluna de Fernando Schüler para a revista Veja:
“Golpe
foi soltar o presidiário!”, diz um dos membros do agora famoso grupo
dos “golpistas do WhatsApp”. Outro integrante mira no STF:
“A Corte age à revelia da Constituição!”, diz e conclui: “Até quando
vamos assistir o abuso prevalecer?”. A frase mais grave veio na forma de
um desejo: “Prefiro um golpe à volta do PT”. Ele parece falar de
variações do modelo chinês, que junta autoritarismo com mercado, e
engata: “Ninguém vai deixar de fazer negócios com a gente”. Por fim,
alguém arrisca uma digressão whats-filosófica, dizendo que “a espécie
humana sempre foi violenta”, e que seria “uma utopia pensar que as
coisas sempre se resolvem ‘na boa’”.
É
o Brasil em transe. Não por essas frases desconexas, algumas com o
lamentável traço autoritário, aliás, ditas aos milhares no universo
cacofônico das redes, dos bares, dos clubes, nos jogos de beach tennis
Brasil afora. O transe é estarmos em meio a uma campanha presidencial
discutindo essas coisas. Mais estranho ainda é que alguém tenha
mobilizado o aparato repressivo do Estado, bloqueado contas, quebrado
sigilos, em razão dessa fraseologia whatsappiana. Talvez porque
deixamos que tudo fosse longe demais. Transformamos em questão de Estado
alguém dizer, em um grupo fechado, que sonha com o Brasil governado
como uma grande comunidade Osho, ou por um ditador como Trujillo, do
romance de Vargas Llosa, ou quem sabe ainda pelos irmãos Castro. Do meu
ponto de vista, isso tudo é uma grande bobagem, ainda que seja um
direito de as pessoas pensarem assim.
O
problema é isso se tornar um crime, sob o ponto de vista do Estado
brasileiro. Em primeiro lugar, porque o único ponto de vista aceitável
para o Estado é o que está escrito na Constituição e nas leis. E não há
rigorosamente nada ali que torne crime algum cidadão manifestar
preferência por esse ou aquele modelo político. O que as nossas leis
fazem é criminalizar a “ação de grupos armados” contra a ordem
constitucional, como está escrito na Constituição, ou “tentar depor, por
meio de violência ou grave ameaça”, o governo legitimamente
constituído, como se lê no Código Penal.
Nossos
legisladores foram sábios. Sua preocupação foi estabelecer limites
claros e objetivos para a ação repressiva do Estado sobre os cidadãos. E
mais: confiar que os agentes de Estado teriam a sabedoria de não dispor
desse poder de modo trivial. Que saberiam distinguir entre um punhado
de palavras expressando a preferência de alguém por viver sob uma
ditadura, seja ela qual for, em um grupo pessoas, e um chamado à ação
subversiva que possa representar um risco crível às instituições. É
evidente que nada disso se verifica nesse episódio triste. Mesmo o
participante que expressa de maneira mais nítida o seu desejo de
ditadura não faz uma ameaça. O que ele faz essencialmente é cogitar, e
“não há crime de cogitação”, como explica, elegantemente, o ex-ministro
do STF Marco Aurélio Mello.
A
liberdade de expressão não é um bem secundário nas democracias. Não por
acaso, os americanos colocaram sua proteção irrestrita como o primeiro
princípio da Declaração de Direitos, na Constituição. O.k., somos do
Sul, somos latinos, temos duas ditaduras nas costas poluindo nossa
cabeça, somos uma democracia precária sob muitos aspectos, e não
pertencemos à tradição do Bill of Rights. Tudo isso é verdade. Mas
também nós fizemos uma opção pela liberdade de pensamento como um valor
essencial na Carta de 1988. Só que agora parecemos ter esquecido. É
disso que se trata o presente episódio. Algo que vai além da liberdade
de expressão. Não o direito de expressar uma opinião em público, mas de
fazê-lo em um espaço privado. Não de falar no Facebook, mas no espaço da
casa, do grupo, da mesa de bar. Direito de expressar visões, inclusive,
contrárias à Constituição. Ideias que digam, por exemplo: “Não gosto
desta Constituição, gostaria de outra, semelhante à da Venezuela ou do
Reino do Butão”. Isto pelo fato de que não temos, graças ao bom Deus,
uma “Constituição do pensamento” no Brasil. Temos uma Carta ordenando
instituições e assegurando direitos, ao invés de dizer o que as pessoas
estão tituladas a pensar ou a deixar de pensar.
A
modernidade liberal se fez exatamente no reconhecimento dessa fronteira
por vezes visível, através das leis, e por vezes invisível, pela força
da cultura cívica, entre as esferas pública e privada da vida social. Da
esfera da liberdade regulada positivamente pelo Estado, e dos espaços
da intimidade, cuja regra é a liberdade negativa, ou como não
impedimento externo. A distinção vem do grande Isaiah Berlin. Ele nos
lembra que nenhuma sociedade é livre se não souber reconhecer “que há
áreas limitadas, onde os homens devem ser invioláveis”. A esfera do
gosto, do pensamento, do desejo, da opinião, das crenças. Pois é isso,
no fundo, que está em jogo. No Brasil, já admitimos que um órgão de
Estado tutele a opinião; aceitamos que puna pessoas em nome da verdade.
Agora ensaiamos aceitar que seu poder não se restrinja aos espaços
tradicionais da liberdade de expressão, mas se projete sobre as esferas
da intimidade. Espaços em que o grande panóptico instalado no coração do
Estado parecia não alcançar, mas agora alcança. Na prática, já havíamos
admitido o delito de opinião no espaço público. Agora inventamos o
delito de opinião no espaço privado.
O
resultado é o medo. Algo que me fez lembrar da leitura de um livro
monumental: O Fim do Homem Soviético, da premiada escritora russa
Svetlana Aleksiévitch. Ela nos conta como as cozinhas russas, durante
gerações de famílias soviéticas, funcionaram como refúgio da intimidade.
O lugar em que se podia falar dos livros proibidos, das ideias
perigosas e, principalmente, “falar mal do governo, e não ter medo”.
Tudo com o cuidado de não ter “gente estranha” por perto, com o som
ligado na sala, para abafar uma escuta, e com um travesseiro sobre o
telefone, por via das dúvidas. Svetlana fala de um tempo absurdo, ao
qual as pessoas iam se acostumando. Tomando cuidado, cochichando,
aprendendo a driblar o Leviatã bisbilhoteiro. Relendo o seu relato, me
dei conta da sorte que temos de viver em uma grande democracia, em que
não precisamos cochichar, escondidos na cozinha. Mas também de como tudo
pode ser frágil. Sobre como é preciso prestar atenção a certos
princípios, para que tudo não escoe pelo ralo, sem a gente sequer
perceber.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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