Os próximos dias serão atípicos no Vaticano, entre reuniões com cardeais e uma viagem simbólica. A possível renúncia do Papa continua a pairar — e a polêmica sobre D. Manuel Clemente, de Portugal, também. Reportagem de João Francisco Gomes para o Observador:
Habitualmente,
agosto é um mês calmo no Vaticano. É o mês em que o Papa tira férias e
se recolhe na sua residência de verão em Castel Gandolfo, nos arredores
de Roma, e em que o frenesim eclesiástico em torno da Santa Sé se
suspende: os cardeais, bispos e padres que trabalham na cúpula global da
Igreja Católica também tiram férias e são raras as notícias e novidades
que saem do país mais pequeno do mundo.
Este
ano, porém, é diferente. Ninguém está de férias no Vaticano, onde se
vive em turbilhão pelos dias potencialmente decisivos que se aproximam.
A agenda do Papa Francisco
para os próximos dias é intensa e põe em evidência o momento
determinante que se vive na Igreja Católica por estes dias, incluindo em
Portugal: este sábado, o Papa preside a um consistório ordinário
público para a criação de novos cardeais e para votações sobre futuras
canonizações; no domingo, Francisco faz uma visita pastoral a L’Aquila,
cidade na Itália central carregada de simbolismo
por ser o lugar onde está sepultado o Papa Celestino V, que renunciou
ao cargo no século XIII; e entre segunda e terça reúnem-se em Roma todos
os cardeais do mundo para um consistório que servirá, essencialmente,
para um debate em torno da nova constituição Praedicate Evangelium,
o documento que coloca em prática a prometida reforma da Cúria Romana,
uma das principais bandeiras do Papa Francisco, agora finalmente
concluída.
Todos
estes acontecimentos, agendados desde o início do verão, têm feito
crescer a especulação em torno do que poderão significar estes quatro
dias de agitação no Vaticano.
A
visita a L’Aquila, a criação de novos cardeais e a conclusão da reforma
da Cúria Romana levantaram dúvidas sobre se o Papa Francisco se estaria
a preparar para renunciar ao cargo,
sobretudo quando estes dados são olhados à luz dos problemas de saúde
que começam a pesar sobre o Papa argentino. Ainda em julho, o líder da
Igreja procurou contradizer os rumores,
garantindo que, para já, não pretendia renunciar ao cargo — mas não
afastou a possibilidade de o vir a fazer no futuro, caso sinta que não
tem condições para continuar. Nos bastidores da Igreja Católica, a
opinião mais consensual é a de que Francisco não deverá renunciar ao
cargo enquanto Bento XVI, Papa emérito hoje com 95 anos de idade, for
vivo.
Agosto não está a ser um mês calmo no Vaticano, ao contrário que acontece noutros anos
Por
outro lado, o foco está também nos cardeais, os célebres “príncipes da
Igreja”. O que significam as novas escolhas do Papa? Quem se começa a
posicionar como possível sucessor de Francisco?
Apesar
de os consistórios serem acontecimentos costumeiros no Vaticano — este é
o oitavo consistório público convocado pelo Papa Francisco para a
criação de novos cardeais desde que foi eleito, em 2013, tendo-se
realizado praticamente um por ano —, a história recente também já
ensinou que destes eventos banais podem surgir anúncios inesperados. Foi
o que aconteceu em fevereiro de 2013, num consistório público convocado
pelo Papa Bento XVI para decidir as datas de algumas canonizações: sem
que ninguém pudesse prever, o Papa alemão aproveitou o facto de os
cardeais estarem reunidos no Vaticano para anunciar que pretendia renunciar ao cargo. Subsiste, então, a pergunta: com todo este contexto, estará Francisco a preparar-se para algum anúncio importante?
Estes
consistórios acontecem durante um período de grande relevo para a
Igreja Católica contemporânea: o processo sinodal que está em curso até
ao final do próximo ano e que pretende aumentar a participação dos fiéis
leigos nas tomadas de decisão dentro da Igreja. O debate tem ocorrido
em vários níveis — paroquial, diocesano, nacional, continental e global —
e procurado envolver os fiéis, para que sejam as bases, e não a
hierarquia, a definir os temas sobre os quais a Igreja contemporânea se
deve debruçar, a identificar os problemas e propor as soluções. Esta
iniciativa do Papa Francisco acontece justamente numa altura em que a
Igreja continua a ser assolada pela crise dos abusos sexuais de menores
cometidos por membros do clero e encobertos pela hierarquia — um
problema que o próprio Papa tem atribuído com frequência ao
clericalismo, uma subversão das lógicas de autoridade na Igreja que
fecha o poder de decisão na elite do clero.
Precisamente
devido à crise dos abusos, estes dias de agitação em Roma também podem
ter uma importância concreta para Portugal. O cardeal-patriarca de
Lisboa, D. Manuel Clemente, vai ao Vaticano participar no consistório
numa altura em que está sob fogo em Portugal, depois de nas últimas
semanas terem vindo a público várias notícias que levantam suspeitas
sobre o modo como lidou com denúncias de abusos sexuais de menores no
passado. Na sequência dessas notícias, D. Manuel Clemente reuniu-se com o Papa Francisco no Vaticano no início de agosto e, sabe o Observador, colocou o seu lugar à disposição do líder da Igreja Católica.
As
reuniões dos próximos dias são o primeiro momento em que o Papa
Francisco se deverá debruçar sobre os cardeais da Igreja Católica desde
que o escândalo eclodiu em Portugal, pelo que não é de descartar que
alguma decisão sobre o futuro de D. Manuel Clemente possa ser conhecida
no decorrer da próxima semana.
Como escrevia esta semana
o jornalista norte-americano John Allen Jr., um dos mais reputados
analistas da Igreja Católica global e da vida do Vaticano, os dias que
se aproximam reúnem os ingredientes certos para atrair a Roma enorme
atenção mediática universal — mas há um grande risco de que, no final,
as expectativas mediáticas saiam frustradas, uma vez que o Papa
Francisco poderá preferir colocar a tónica destes encontros nos assuntos
que considera mais relevantes, incluindo a guerra na Ucrânia, a
perseguição aos católicos em países como a Nigéria ou a Nicarágua
(situações que têm feito manchetes por todo o mundo) e a discussão em
torno da nova constituição da Cúria Romana, que é, afinal, uma das
grandes concretizações do seu pontificado.
Afinal, o que acontece realmente em Roma nos próximos dias — e que resultados podemos mesmo esperar?
Quem são e o que representam os novos cardeais?
A
ocupada agenda do Papa Francisco para os próximos quatro dias começa no
sábado às 16h00. É para essa hora que está agendado o consistório
ordinário público para a criação de novos cardeais e para a canonização
dos beatos Giovanni Battista Scalabrini e Artemide Zatti. A celebração
vai decorrer na Basílica de São Pedro, no Vaticano, e seguir-se-á um
período de cumprimentos aos novos cardeais até às 20h. A nomeação de
novos cardeais, escolhidos a dedo pelo Papa Francisco de entre padres e
bispos de todo o mundo, é uma prerrogativa exclusiva do Papa e é a
principal ferramenta que o líder da Igreja Católica tem ao seu dispor
para moldar o futuro da instituição no longo prazo: afinal, são os
cardeais quem tem o poder de votar na eleição do próximo Papa.
Francisco
não tem hesitado em usar essa ferramenta com frequência e intensidade.
Determinado em reformar a Igreja Católica, o “Papa do fim do mundo” tem
procurado descentralizar a instituição, reduzindo radicalmente o peso da
Europa no topo da hierarquia eclesiástica. A criação de novos cardeais
no consistório deste sábado vai intensificar ainda mais esta realidade. A
partir de agora, o colégio cardinalício passa a ter 132 eleitores (só
podem votar os cardeais com menos de 80 anos de idade), dos quais apenas
40% são europeus, contra 52% no conclave de 2013, que elegeu Francisco.
Em sentido contrário, como explica uma análise do Pew Research Center,
cresce a representação das regiões Ásia-Pacífico (agora com 17% dos
cardeais, contra 9% em 2013) e África subsaariana (uma subida de 9% para
12% de peso no colégio). Há também um aumento do peso da América Latina
no colégio cardinalício, mas mais ligeiro — são agora 18% dos cardeais,
contra 16% em 2013. Ainda assim, a Europa continua sobre-representada
no colégio dos cardeais: tem 40% dos cardeais, mas na região vivem
apenas 24% dos católicos do mundo. Este desequilíbrio é especialmente
visível em comparação com a América Latina, onde vivem 39% dos católicos
do mundo, mas que só representa 18% dos cardeais.
No
total do seu pontificado até hoje, o Papa Francisco já nomeou mais de
uma centena de cardeais, dos quais 83 têm atualmente direito de voto —
63% no tal universo de 132 cardeais eleitores, que inclui também
cardeais nomeados por Bento XVI e por João Paulo II que ainda não
atingiram os 80 anos de idade. Isto significa, na prática, que, se
houvesse um conclave hoje, mais de metade dos eleitores tinham chegado
ali por decisão do Papa Francisco. Os três cardeais portugueses com
direito de voto também foram nomeados pelo Papa Francisco: Manuel
Clemente (cardeal-patriarca de Lisboa, 74 anos), António Marto (bispo
emérito de Leiria-Fátima, 75 anos) e José Tolentino Mendonça (arquivista
e bibliotecário da Santa Sé, 56 anos).
A
influência de Francisco no colégio cardinalício que vai eleger o seu
sucessor não se traduz exclusivamente na representação geográfica dos
cardeais. Reflete-se, essencialmente, no plano das ideias. Embora as
normas da Igreja não exijam que os cardeais escolham um cardeal para ser
eleito Papa (pode ser qualquer bispo e até, no limite, qualquer homem
católico), essa tem sido a tradição desde há vários séculos: assume-se
que o próximo Papa é um dos cardeais que entram no conclave para votar.
Moldando o colégio cardinalício, o Papa Francisco está necessariamente a
moldar o perfil do próximo pontífice — e isso nota-se nas escolhas de
Francisco, atento às periferias e distante dos grandes centros.
Como nota a Agência de Notícias Católica,
na lista de cardeais escolhidos para o consistório desta semana é
visível a nomeação de arcebispos oriundos de locais distantes e a que
habitualmente foi dada pouca relevância: o arcebispo de Manaus, Leonardo
Ullrich (numa altura em que Francisco tem colocado especial ênfase na
atenção às lutas ambientais e até dedicou um sínodo à Amazónia), ou o
bispo de Ekwulobia, na Nigéria, Peter Ebere Okpaleke, (oriundo de um
país classificado
como “um dos lugares mais mortíferos do mundo para se ser cristão”),
são exemplos de como Francisco está a chamar para o centro de decisão da
Igreja Católica vozes que habitualmente ficavam de fora.
No sábado, o Papa Francisco vai elevar 20 clérigos à dignidade cardinalícia
Mesmo
no que toca a nomeações na Europa e nos Estados Unidos, é visível a
preferência de Francisco. Em França, o arcebispo de Marselha, Jean-Marc
Noël Aveline foi nomeado cardeal, mas não o arcebispo de Paris. Nos EUA,
o bispo de San Diego, Robert McElroy, foi elevado a cardeal — ao
contrário, por exemplo, do arcebispo de Los Angeles, José Gómez, que é
atualmente o presidente da Conferência Episcopal dos EUA, é um arcebispo
metropolita de McElroy e é considerado uma das figuras mais importantes
da Igreja norte-americana. Além de ser evidente o modo como Francisco
deu o privilégio cardinalício ao simples bispo McElroy e não a alguns
dos arcebispos norte-americanos mais importantes, a escolha é ainda mais
clara quando se tem em conta que McElroy é considerado um dos bispos
mais progressistas dos EUA, tendo tido posições controversas para os
mais tradicionalistas em vários dos assuntos quentes que marcaram a
Igreja norte-americana nos últimos anos, incluindo o diálogo com as
comunidades LGBT, a defesa de Joe Biden, as críticas a Trump e até um
posicionamento menos fechado no debate sobre o aborto.
A
agência sublinha também que algumas das sés episcopais tradicionalmente
associadas à promoção cardinalícia, incluindo Milão, Veneza, Cracóvia e
Paris, continuam de fora das escolhas do Papa, enquanto bispos oriundos
da Índia, Timor-Leste, Brasil, Gana, Singapura ou Paraguai constam da
lista de novos cardeais.
Também segundo uma análise da Agência de Notícias Católica,
“o Papa Francisco usa os consistórios como uma forma de governo” da
Igreja Católica, tendo recorrido a esta ferramenta para “mudar
profundamente o perfil do colégio” dos cardeais. “Este consistório, em
particular, transmite uma mensagem de ‘trabalho completo’. O Papa
clarifica quais as posições que prefere, sublinha que a Cúria não tem
grande peso para ele e destaca a importância das dioceses periféricas”,
aponta aquela agência. Tendo em conta que este consistório acontece numa
altura em que a reforma da Cúria Romana (que tirou poder aos organismos
centrais da Igreja) está em pleno processo de implementação, a ideia de
“missão cumprida” ganha força e tem mantido a pergunta no ar: será que o
Papa pretende renunciar num futuro próximo?
A visita a L’Aquila
A
pergunta leva-nos ao segundo ponto da agenda cheia do Papa Francisco
para os próximos dias: a rápida visita pastoral que vai realizar, no
domingo, à cidade italiana de L’Aquila.
L’Aquila
é uma cidade no centro de Itália repleta de simbolismo para o trono
pontifício. É ali que está sepultado Celestino V, um monge beneditino
que foi Papa durante apenas seis meses, no século XIII. Entre julho e
dezembro de 1294, Celestino V liderou a Igreja Católica, mas acabou por
abdicar do trono papal no final daquele ano, fazendo história. Embora no
primeiro milénio tenha havido alguns casos de deposição de papas,
abdicações forçadas e outros conflitos em torno do trono pontifício, a
renúncia de Celestino V tornou-se histórica e ele é habitualmente
considerado o primeiro Papa a renunciar de livre vontade ao trono de São
Pedro.
Durante
mais de 700 anos, a renúncia de Celestino V permaneceu como um marco
histórico, com a esmagadora maioria dos papas que se seguiram a
governarem até ao dia da morte. Há alguns exemplos paradigmáticos da
história contemporânea que mostram como esta prática de reinar até à
morte foi levada ao extremo, incluindo o Papa João XXIII (que morreu de
cancro no estômago sem conseguir encerrar o Concílio Vaticano II,
iniciativa sua) ou o Papa João Paulo II, que morreu com 84 anos de idade
após longos anos de sofrimento testemunhado publicamente por todo o
mundo.
Em
2009, o Papa Bento XVI visitou L’Aquila e prestou uma homenagem
especial a Celestino V, depositando sobre o túmulo do antigo Papa o seu
pálio (uma faixa de lã que os papas usam ao pescoço como símbolo da sua
jurisdição). Na altura, o ato de Bento XVI passou relativamente
despercebido; quatro anos depois, contudo, a visita do Papa alemão
ganhou uma nova chave de leitura. Em 2013, Bento XVI anunciou a sua
intenção de renunciar ao cargo, tornando-se o primeiro Papa da história
moderna a fazê-lo. A visita a L’Aquila quatro anos antes é hoje lida
como um sinal de que Bento XVI já poderia estar a pensar em seguir o
exemplo do Papa do século XIII num futuro próximo.
Sem surpresas, o anúncio por parte do Papa Francisco da intenção de visitar L’Aquila este ano (numa altura em que a sua saúde frágil se encontra especialmente em evidência depois de surgir várias vezes em público de cadeira de rodas) motivou grande especulação sobre se o Papa argentino se preparava para seguir o exemplo do antecessor. Na verdade, Francisco já afirmou várias vezes que não descarta a possibilidade de um dia vir a renunciar ao cargo pontifício, caso entenda que não tem condições físicas ou espirituais para continuar a sua missão. Ainda assim, depois de surgirem os rumores, Francisco veio a público dizer que não está em cima da mesa a hipótese de renunciar para já.
A
visita de Francisco a L’Aquila tem um motivo claro: o Papa vai presidir
às celebrações da Perdonanza Celestiniana, uma celebração anual de
misericórdia assinalada nos dias 28 e 29 de agosto, marcando a abertura
de um novo ano de indulgência. Trata-se de um ritual anual inaugurado em
1294 pelo Papa Celestino V e as cerimónias até já são consideradas
Património Imaterial Cultural da UNESCO. Não obstante, é a primeira vez
que a celebração é presidida por um Papa.
A
simbologia de uma visita a L’Aquila como prenúncio de uma futura
renúncia adensa-se quando se tem em conta que o Papa Francisco realiza a
viagem justamente um dia antes de se reunir com os cardeais de todo o
mundo para debater a constituição Praedicate Evangelium, o documento que
implementa a reforma da Cúria Romana — o grande projeto do seu
pontificado, que, agora terminado, traz ao Vaticano um sentimento de
“missão cumprida”.
Reforma da Cúria Romana completa significa “missão cumprida”?
Em
2013, nas congregações gerais que antecederam o conclave de que
resultou a eleição de Francisco como Papa, os cardeais que se preparavam
para depositar os seus votos no homem mais bem preparado para comandar a
instituição deixaram claro que o futuro líder da Igreja Católica
deveria “implementar uma nova reforma da Cúria, vista como algo urgente e
necessário”, segundo escreveu recentemente o próprio Papa, no prefácio a
um livro do cardeal Óscar Rodríguez Maradiaga sobre a reforma da Cúria,
citado pela Agência Ecclesia.
A
Cúria Romana é o pesado e complexo organismo de cúpula da Igreja
Católica global. Operando a partir do território do Vaticano, a Santa Sé
tem múltiplas subdivisões, tal como acontece com os diferentes
ministérios de um governo nacional, responsáveis por coordenar a vida da
Igreja Católica em todo o planeta, desde o clero, os bispos, a
educação, a doutrina da fé, a cultura, a legislação, a economia, a
justiça eclesiástica, o património, os textos bíblicos, e por aí fora. A
todos estes organismos junta-se a Secretaria de Estado da Santa Sé, uma
espécie de ministério dos negócios estrangeiros da Igreja, responsável
pelas relações internacionais da instituição.
Durante
séculos, a Cúria Romana consolidou-se como o centro do poder
profundamente clericalista da Igreja Católica: liderada por cardeais
poderosos, praticamente sempre europeus, a Cúria simbolizava de modo
particularmente eloquente o fechamento do poder eclesiástico numa elite
clerical apostada em fazer carreira nos corredores do Vaticano. Ao longo
do seu pontificado, o Papa Francisco foi operando pequenas reformas
dentro da Cúria Romana. A ação mais decisiva na rutura com o
clericalismo do passado foi a nomeação de um leigo para, pela primeira
vez na história da Igreja, liderar um dos ministérios da Cúria: Paolo
Ruffini, que desde 2018 é prefeito do Dicastério para a Comunicação.
O Papa Francisco vai debater com os cardeais da Igreja Católica a reforma da Cúria Romana recentemente implementada
Ao
longo de nove anos, o Papa Francisco coordenou, com o apoio do Conselho
de Cardeais, a elaboração de um grande projeto de reforma da Cúria
Romana, que entrou em vigor em junho deste ano e que vai agora ser
debatido com os cardeais de todo o mundo no terceiro momento alto da
agenda do Papa Francisco para estes dias: a reunião com o colégio
cardinalício agendada para segunda e terça-feira.
A
nova constituição da Cúria Romana traz várias novidades. Por exemplo,
deixa de haver distinção entre as Congregações e os Conselhos
Pontifícios, duas designações anteriores que eram vistas como
dicastérios maiores ou menores. Agora, todos os organismos são
Dicastérios, à exceção da Secretaria de Estado, que se mantém inalterada
(apesar dos rumores nesse sentido, a reforma não reduziu os poderes da
Secretaria de Estado). Num documento composto por 250 pontos, o Papa
Francisco propõe que a Cúria Romana se vire mais para fora e menos para
dentro, colocando-se ao serviço das dioceses.
A
reforma da Cúria Romana inclui também a descentralização de
competências do Vaticano para as dioceses e as conferências episcopais,
reduz o número de organismos e cargos para evitar redundâncias na Santa
Sé e inclui um apelo à transformação interior do organismo: deve deixar
de ser apenas um instrumento burocrático ao serviço de alguns e passar a
ouvir todos, incluindo os leigos, num processo sinodal de tomada de
decisões.
Durante
os próximos dias 29 e 30 de agosto, o Papa vai reunir-se em Roma com o
colégio cardinalício para, no fundo, apresentar o trabalho que o próprio
colégio cardinalício havia encomendado ao pontífice nas congregações
gerais de 2013. A conclusão do documento traz ao Vaticano um sentimento
de “missão cumprida” que, para muitos comentadores e observadores
internacionais, justifica as questões sobre uma possível renúncia do
Papa Francisco: agora que terminou o grande projeto do seu pontificado,
pretenderá reformar-se e abrir as portas a um sucessor?
A
pergunta é legítima, mas a resposta parece já ter sido dada várias
vezes ao longo dos últimos anos por aqueles que melhor conhecem
Francisco. Em 2021, o jornalista britânico Austen Ivereigh, biógrafo do
Papa Francisco e um dos mais profundos conhecedores do seu pontificado,
explicava em entrevista ao Observador
que o programa de Francisco foi adiado várias vezes. Inicialmente, o
Papa planeou uma reforma de cinco anos, mas o adensar da crise dos
abusos de menores e a pandemia da Covid-19 contribuíram para que o plano
demorasse mais a executar. Além disso, Francisco, que já falou várias
vezes sobre a possibilidade de um dia vir a abdicar do trono pontifício,
“nunca equacionaria renunciar enquanto não sepultar Bento XVI”.
Os
dias atípicos que se aproximam no Vaticano fazem crescer as
expectativas em torno de um possível anúncio bombástico por parte do
Papa — mas parece, para já, improvável que Francisco anuncie alguma
novidade relativa à sua renúncia. Por outro lado, a crise dos abusos
sexuais de menores, 0 tema mais quente da história contemporânea da
Igreja Católica, não estará ausente das discussões em Roma: por um lado,
um dos aspetos da reforma da Cúria Romana passou pela inclusão da
Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores no Dicastério para a
Doutrina da Fé, dando mais poderes a este organismo de proteção e
prevenção dos abusos na Igreja; por outro lado, alguns dos nomes em Roma
por estes dias levam as suas próprias histórias polémicas consigo.
A polémica portuguesa
É
o caso do bispo belga Lucas Van Looy, que fazia parte da lista original
de 21 nomes escolhidos pelo Papa Francisco para serem elevados à
dignidade de cardeal (embora fosse um dos cinco que já tinham passado a
barreira dos 80 anos, pelo que não poderiam integrar o colégio de
eleitores). Quando a decisão de elevar Van Looy a cardeal foi conhecida
na Bélgica, surgiram múltiplos protestos no país devido ao historial problemático do bispo.
Um
dos casos diz respeito a uma denúncia de abusos conhecida no início da
década de 2000 a respeito de um padre belga que teria cometido abusos na
República Democrática do Congo, durante um período de missão. Van Looy
terá concordado com o apoio financeiro à vítima, mas não informou as
autoridades civis do caso. Mais tarde, em 2010, a imprensa belga
noticiou que Van Looy tinha recebido seis cartas com denúncias de abusos
contra padres da diocese de Ghent, mas não as entregou à polícia por
considerar que não eram urgentes, já que diziam respeito a padres já
reformados.
Na sequência dos protestos na Bélgica, o bispo Lucas Van Looy anunciou que iria recusar a elevação a cardeal. Num comunicado
emitido em junho, a conferência episcopal da Bélgica reconheceu que o
anúncio da nomeação de Van Looy “provocou muitas reações positivas, mas
também críticas de que enquanto bispo de Ghent (2004-2020) ele nem
sempre agiu de modo vigoroso contra os abusos na relação pastoral”.
“Para
evitar que as vítimas desses abusos sofram novamente na sequência do
seu cardinalato, o bispo Van Looy pediu ao Papa que o isentasse de
aceitar a nomeação. O Papa Francisco aceitou este pedido”, acrescenta a
nota dos bispos belgas. Assim, a lista de novos cardeais diminuiu para
apenas vinte.
Quem
também se vê por estes dias a braços com polémicas sobre o modo como
agiu no passado em relação a denúncias de abusos sexuais de menores é o
cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, cujo futuro continua
ainda incerto depois de, nas últimas semanas, terem vindo a público
múltiplas notícias sobre denúncias que ficaram por entregar às
autoridades civis.
A primeira notícia foi divulgada no final de julho pelo Observador
e dá conta de uma denúncia de abusos sexuais de menores apresentada no
final da década de 1990 ao anterior patriarca de Lisboa, D. José
Policarpo. Na altura, a denúncia foi tratada à maneira antiga: o caso
foi ocultado dos olhos da polícia e o padre foi simplesmente transferido
de funções, sendo retirado das paróquias onde trabalhava e colocado
como capelão hospitalar. Paralelamente, o sacerdote criou uma associação
privada onde continuou a prestar serviços religiosos e a acolher
crianças e jovens até aos dias de hoje. Anos mais tarde, o novo
patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, tomando conhecimento do caso
antigo, reuniu-se pessoalmente com a vítima — e voltou a manter o caso
longe das autoridades civis, mesmo sabendo que o padre continuava em
funções. A divulgação do caso obrigou o cardeal-patriarca a publicar uma carta aberta
na qual admitiu que o modo como o caso foi tratado no passado não
corresponde “aos padrões e recomendações que hoje todos queremos ver
implementados”, mas justificou a inação com o facto de a vítima não ter
pedido expressamente a entrega do caso às autoridades.
Já depois da primeira notícia, o Expresso e a RTP
divulgaram novos detalhes sobre o caso que envolve o padre Inácio Belo,
uma situação que tinha sido inicialmente denunciada por Catalina
Pestana na sequência do escândalo da Casa Pia e que em 2012 chegou mesmo
a ser investigada pelo Ministério Público — e arquivada.
A situação mais controversa envolvendo D. Manuel Clemente será provavelmente aquela que foi exposta já no início de agosto pela RTP.
Segundo a televisão pública, que ouviu várias testemunhas do caso, o
próprio D. Manuel Clemente terá protegido o padre Inácio Belo em 2003,
ordenando o afastamento dos chefes de escuteiros que tinham denunciado o
caso e pedindo-lhes simplesmente que rezassem por ele. Em 2003, D.
Manuel Clemente era bispo auxiliar de Lisboa (a diocese onde ocorreram
os abusos) e reitor do seminário dos Olivais.
No
início de agosto, numa altura em que estas notícias já tinham gerado um
turbilhão mediático em torno de D. Manuel Clemente, o cardeal-patriarca
de Lisboa viajou até Roma para um encontro pessoal com o Papa Francisco
em que a crise dos abusos em Portugal foi o tema central. Segundo uma
fonte eclesiástica ouvida pelo Observador, Clemente colocou nas mãos do
Papa o seu destino — o que significa que terá pedido a renúncia ao cargo
de patriarca de Lisboa ou, pelo menos, mostrado ao Papa a
disponibilidade para abandonar o cargo caso seja essa a intenção do
Vaticano.
Reina,
agora, a incerteza sobre o futuro de D. Manuel Clemente, figura central
da hierarquia eclesiástica portuguesa, mas profundamente afetado pelas
notícias sobre o modo como lidou com denúncias de abuso no passado.
Situações semelhantes noutros países levaram diferentes bispos a pedir a
renúncia ao Papa (o caso do bispo Van Looy é só o mais recente), mas
cada caso é um caso e, no caso de Clemente, há pelo menos duas
circunstâncias que podem influenciar a decisão do Papa.
O
cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, tem estado sob fogo em
Portugal devido às notícias sobre o modo como lidou com casos de abuso
no passado
Em
primeiro lugar, D. Manuel Clemente já tem 74 anos, o que significa que
falta apenas um ano para atingir a idade na qual terá obrigatoriamente
de pedir ao Papa Francisco a renúncia ao seu cargo — todos os bispos são
obrigados a pedir a renúncia aos 75 anos, podendo depois o Papa
pedir-lhes que fiquem em funções durante mais um ou dois anos, como é
habitual. Em segundo lugar, D. Manuel Clemente foi o grande
impulsionador da candidatura do Patriarcado de Lisboa ao acolhimento da
Jornada Mundial da Juventude do próximo ano. O evento, marcado para
agosto, será um dos maiores acontecimentos de sempre em Portugal —
esperam-se mais de um milhão de jovens de todo o mundo — e contará com a
presença do Papa Francisco. Por isso, é natural que o Papa queira que
D. Manuel Clemente fique em funções pelo menos até à realização da JMJ
2023.
Tendo
em conta estes dois fatores, é provável que o Papa Francisco prefira
deixar a história seguir o seu rumo natural, mantendo D. Manuel Clemente
em funções até depois da JMJ e aceitando a sua renúncia depois do
evento, quando o patriarca já tiver completado 75 anos de idade.
De
qualquer modo, o que é certo é que a crise dos abusos na Igreja em
Portugal e, especialmente, a atuação controversa de D. Manuel Clemente
no assunto já são tema de discussão na cúpula do Vaticano. Segundo escreveu há duas semanas o jornal especializado 7 Margens,
o núncio apostólico em Portugal já terá enviado informações sobre a
situação em Lisboa para o Vaticano. Um mês depois de ter estalado a
polémica em Portugal, a reunião do Papa Francisco com os cardeais de
todo o mundo será a primeira oportunidade de o líder da Igreja Católica
se debruçar a fundo sobre o assunto e até de se voltar a encontrar com
D. Manuel Clemente. Por isso, segundo o mesmo jornal, a haver uma
decisão final sobre a saída do patriarca, ela poderá ser tomada nesta
fase.
Caso
a decisão do Papa Francisco seja mesmo o afastamento de D. Manuel
Clemente, o Vaticano terá de ser rápido na escolha do sucessor — e não
se poderá dar ao luxo de deixar Lisboa sem bispo durante meses a fio,
como tem acontecido com Setúbal, Angra e Bragança, que ainda aguardam
por novos bispos desde as últimas rotações e parece ainda não haver
soluções à vista. A realização da JMJ em Lisboa daqui a menos de um ano
obrigará Francisco a nomear de imediato um sucessor para D. Manuel
Clemente, que tenha tempo de se pôr a par de todos os dossiês — o que
poderá também não ser tarefa fácil.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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