MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sábado, 27 de agosto de 2022

Dias agitados na reunião dos cardeais no Vaticano: mudanças e renúncia na Igreja Católica?

 



Os próximos dias serão atípicos no Vaticano, entre reuniões com cardeais e uma viagem simbólica. A possível renúncia do Papa continua a pairar — e a polêmica sobre D. Manuel Clemente, de Portugal, também. Reportagem de João Francisco Gomes para o Observador:


Habitualmente, agosto é um mês calmo no Vaticano. É o mês em que o Papa tira férias e se recolhe na sua residência de verão em Castel Gandolfo, nos arredores de Roma, e em que o frenesim eclesiástico em torno da Santa Sé se suspende: os cardeais, bispos e padres que trabalham na cúpula global da Igreja Católica também tiram férias e são raras as notícias e novidades que saem do país mais pequeno do mundo.

Este ano, porém, é diferente. Ninguém está de férias no Vaticano, onde se vive em turbilhão pelos dias potencialmente decisivos que se aproximam.

A agenda do Papa Francisco para os próximos dias é intensa e põe em evidência o momento determinante que se vive na Igreja Católica por estes dias, incluindo em Portugal: este sábado, o Papa preside a um consistório ordinário público para a criação de novos cardeais e para votações sobre futuras canonizações; no domingo, Francisco faz uma visita pastoral a L’Aquila, cidade na Itália central carregada de simbolismo por ser o lugar onde está sepultado o Papa Celestino V, que renunciou ao cargo no século XIII; e entre segunda e terça reúnem-se em Roma todos os cardeais do mundo para um consistório que servirá, essencialmente, para um debate em torno da nova constituição Praedicate Evangelium, o documento que coloca em prática a prometida reforma da Cúria Romana, uma das principais bandeiras do Papa Francisco, agora finalmente concluída.

Todos estes acontecimentos, agendados desde o início do verão, têm feito crescer a especulação em torno do que poderão significar estes quatro dias de agitação no Vaticano.

A visita a L’Aquila, a criação de novos cardeais e a conclusão da reforma da Cúria Romana levantaram dúvidas sobre se o Papa Francisco se estaria a preparar para renunciar ao cargo, sobretudo quando estes dados são olhados à luz dos problemas de saúde que começam a pesar sobre o Papa argentino. Ainda em julho, o líder da Igreja procurou contradizer os rumores, garantindo que, para já, não pretendia renunciar ao cargo — mas não afastou a possibilidade de o vir a fazer no futuro, caso sinta que não tem condições para continuar. Nos bastidores da Igreja Católica, a opinião mais consensual é a de que Francisco não deverá renunciar ao cargo enquanto Bento XVI, Papa emérito hoje com 95 anos de idade, for vivo.


Agosto não está a ser um mês calmo no Vaticano, ao contrário que acontece noutros anos

Por outro lado, o foco está também nos cardeais, os célebres “príncipes da Igreja”. O que significam as novas escolhas do Papa? Quem se começa a posicionar como possível sucessor de Francisco?

Apesar de os consistórios serem acontecimentos costumeiros no Vaticano — este é o oitavo consistório público convocado pelo Papa Francisco para a criação de novos cardeais desde que foi eleito, em 2013, tendo-se realizado praticamente um por ano —, a história recente também já ensinou que destes eventos banais podem surgir anúncios inesperados. Foi o que aconteceu em fevereiro de 2013, num consistório público convocado pelo Papa Bento XVI para decidir as datas de algumas canonizações: sem que ninguém pudesse prever, o Papa alemão aproveitou o facto de os cardeais estarem reunidos no Vaticano para anunciar que pretendia renunciar ao cargo. Subsiste, então, a pergunta: com todo este contexto, estará Francisco a preparar-se para algum anúncio importante?

Estes consistórios acontecem durante um período de grande relevo para a Igreja Católica contemporânea: o processo sinodal que está em curso até ao final do próximo ano e que pretende aumentar a participação dos fiéis leigos nas tomadas de decisão dentro da Igreja. O debate tem ocorrido em vários níveis — paroquial, diocesano, nacional, continental e global — e procurado envolver os fiéis, para que sejam as bases, e não a hierarquia, a definir os temas sobre os quais a Igreja contemporânea se deve debruçar, a identificar os problemas e propor as soluções. Esta iniciativa do Papa Francisco acontece justamente numa altura em que a Igreja continua a ser assolada pela crise dos abusos sexuais de menores cometidos por membros do clero e encobertos pela hierarquia — um problema que o próprio Papa tem atribuído com frequência ao clericalismo, uma subversão das lógicas de autoridade na Igreja que fecha o poder de decisão na elite do clero.

Precisamente devido à crise dos abusos, estes dias de agitação em Roma também podem ter uma importância concreta para Portugal. O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, vai ao Vaticano participar no consistório numa altura em que está sob fogo em Portugal, depois de nas últimas semanas terem vindo a público várias notícias que levantam suspeitas sobre o modo como lidou com denúncias de abusos sexuais de menores no passado. Na sequência dessas notícias, D. Manuel Clemente reuniu-se com o Papa Francisco no Vaticano no início de agosto e, sabe o Observador, colocou o seu lugar à disposição do líder da Igreja Católica.

As reuniões dos próximos dias são o primeiro momento em que o Papa Francisco se deverá debruçar sobre os cardeais da Igreja Católica desde que o escândalo eclodiu em Portugal, pelo que não é de descartar que alguma decisão sobre o futuro de D. Manuel Clemente possa ser conhecida no decorrer da próxima semana.

Como escrevia esta semana o jornalista norte-americano John Allen Jr., um dos mais reputados analistas da Igreja Católica global e da vida do Vaticano, os dias que se aproximam reúnem os ingredientes certos para atrair a Roma enorme atenção mediática universal — mas há um grande risco de que, no final, as expectativas mediáticas saiam frustradas, uma vez que o Papa Francisco poderá preferir colocar a tónica destes encontros nos assuntos que considera mais relevantes, incluindo a guerra na Ucrânia, a perseguição aos católicos em países como a Nigéria ou a Nicarágua (situações que têm feito manchetes por todo o mundo) e a discussão em torno da nova constituição da Cúria Romana, que é, afinal, uma das grandes concretizações do seu pontificado.

Afinal, o que acontece realmente em Roma nos próximos dias — e que resultados podemos mesmo esperar?

Quem são e o que representam os novos cardeais?

A ocupada agenda do Papa Francisco para os próximos quatro dias começa no sábado às 16h00. É para essa hora que está agendado o consistório ordinário público para a criação de novos cardeais e para a canonização dos beatos Giovanni Battista Scalabrini e Artemide Zatti. A celebração vai decorrer na Basílica de São Pedro, no Vaticano, e seguir-se-á um período de cumprimentos aos novos cardeais até às 20h. A nomeação de novos cardeais, escolhidos a dedo pelo Papa Francisco de entre padres e bispos de todo o mundo, é uma prerrogativa exclusiva do Papa e é a principal ferramenta que o líder da Igreja Católica tem ao seu dispor para moldar o futuro da instituição no longo prazo: afinal, são os cardeais quem tem o poder de votar na eleição do próximo Papa.

Francisco não tem hesitado em usar essa ferramenta com frequência e intensidade. Determinado em reformar a Igreja Católica, o “Papa do fim do mundo” tem procurado descentralizar a instituição, reduzindo radicalmente o peso da Europa no topo da hierarquia eclesiástica. A criação de novos cardeais no consistório deste sábado vai intensificar ainda mais esta realidade. A partir de agora, o colégio cardinalício passa a ter 132 eleitores (só podem votar os cardeais com menos de 80 anos de idade), dos quais apenas 40% são europeus, contra 52% no conclave de 2013, que elegeu Francisco.

Em sentido contrário, como explica uma análise do Pew Research Center, cresce a representação das regiões Ásia-Pacífico (agora com 17% dos cardeais, contra 9% em 2013) e África subsaariana (uma subida de 9% para 12% de peso no colégio). Há também um aumento do peso da América Latina no colégio cardinalício, mas mais ligeiro — são agora 18% dos cardeais, contra 16% em 2013. Ainda assim, a Europa continua sobre-representada no colégio dos cardeais: tem 40% dos cardeais, mas na região vivem apenas 24% dos católicos do mundo. Este desequilíbrio é especialmente visível em comparação com a América Latina, onde vivem 39% dos católicos do mundo, mas que só representa 18% dos cardeais.

No total do seu pontificado até hoje, o Papa Francisco já nomeou mais de uma centena de cardeais, dos quais 83 têm atualmente direito de voto — 63% no tal universo de 132 cardeais eleitores, que inclui também cardeais nomeados por Bento XVI e por João Paulo II que ainda não atingiram os 80 anos de idade. Isto significa, na prática, que, se houvesse um conclave hoje, mais de metade dos eleitores tinham chegado ali por decisão do Papa Francisco. Os três cardeais portugueses com direito de voto também foram nomeados pelo Papa Francisco: Manuel Clemente (cardeal-patriarca de Lisboa, 74 anos), António Marto (bispo emérito de Leiria-Fátima, 75 anos) e José Tolentino Mendonça (arquivista e bibliotecário da Santa Sé, 56 anos).

A influência de Francisco no colégio cardinalício que vai eleger o seu sucessor não se traduz exclusivamente na representação geográfica dos cardeais. Reflete-se, essencialmente, no plano das ideias. Embora as normas da Igreja não exijam que os cardeais escolham um cardeal para ser eleito Papa (pode ser qualquer bispo e até, no limite, qualquer homem católico), essa tem sido a tradição desde há vários séculos: assume-se que o próximo Papa é um dos cardeais que entram no conclave para votar. Moldando o colégio cardinalício, o Papa Francisco está necessariamente a moldar o perfil do próximo pontífice — e isso nota-se nas escolhas de Francisco, atento às periferias e distante dos grandes centros.

Como nota a Agência de Notícias Católica, na lista de cardeais escolhidos para o consistório desta semana é visível a nomeação de arcebispos oriundos de locais distantes e a que habitualmente foi dada pouca relevância: o arcebispo de Manaus, Leonardo Ullrich (numa altura em que Francisco tem colocado especial ênfase na atenção às lutas ambientais e até dedicou um sínodo à Amazónia), ou o bispo de Ekwulobia, na Nigéria, Peter Ebere Okpaleke, (oriundo de um país classificado como “um dos lugares mais mortíferos do mundo para se ser cristão”), são exemplos de como Francisco está a chamar para o centro de decisão da Igreja Católica vozes que habitualmente ficavam de fora.


No sábado, o Papa Francisco vai elevar 20 clérigos à dignidade cardinalícia

Mesmo no que toca a nomeações na Europa e nos Estados Unidos, é visível a preferência de Francisco. Em França, o arcebispo de Marselha, Jean-Marc Noël Aveline foi nomeado cardeal, mas não o arcebispo de Paris. Nos EUA, o bispo de San Diego, Robert McElroy, foi elevado a cardeal — ao contrário, por exemplo, do arcebispo de Los Angeles, José Gómez, que é atualmente o presidente da Conferência Episcopal dos EUA, é um arcebispo metropolita de McElroy e é considerado uma das figuras mais importantes da Igreja norte-americana. Além de ser evidente o modo como Francisco deu o privilégio cardinalício ao simples bispo McElroy e não a alguns dos arcebispos norte-americanos mais importantes, a escolha é ainda mais clara quando se tem em conta que McElroy é considerado um dos bispos mais progressistas dos EUA, tendo tido posições controversas para os mais tradicionalistas em vários dos assuntos quentes que marcaram a Igreja norte-americana nos últimos anos, incluindo o diálogo com as comunidades LGBT, a defesa de Joe Biden, as críticas a Trump e até um posicionamento menos fechado no debate sobre o aborto.

A agência sublinha também que algumas das sés episcopais tradicionalmente associadas à promoção cardinalícia, incluindo Milão, Veneza, Cracóvia e Paris, continuam de fora das escolhas do Papa, enquanto bispos oriundos da Índia, Timor-Leste, Brasil, Gana, Singapura ou Paraguai constam da lista de novos cardeais.

Também segundo uma análise da Agência de Notícias Católica, “o Papa Francisco usa os consistórios como uma forma de governo” da Igreja Católica, tendo recorrido a esta ferramenta para “mudar profundamente o perfil do colégio” dos cardeais. “Este consistório, em particular, transmite uma mensagem de ‘trabalho completo’. O Papa clarifica quais as posições que prefere, sublinha que a Cúria não tem grande peso para ele e destaca a importância das dioceses periféricas”, aponta aquela agência. Tendo em conta que este consistório acontece numa altura em que a reforma da Cúria Romana (que tirou poder aos organismos centrais da Igreja) está em pleno processo de implementação, a ideia de “missão cumprida” ganha força e tem mantido a pergunta no ar: será que o Papa pretende renunciar num futuro próximo?

A visita a L’Aquila

A pergunta leva-nos ao segundo ponto da agenda cheia do Papa Francisco para os próximos dias: a rápida visita pastoral que vai realizar, no domingo, à cidade italiana de L’Aquila.

L’Aquila é uma cidade no centro de Itália repleta de simbolismo para o trono pontifício. É ali que está sepultado Celestino V, um monge beneditino que foi Papa durante apenas seis meses, no século XIII. Entre julho e dezembro de 1294, Celestino V liderou a Igreja Católica, mas acabou por abdicar do trono papal no final daquele ano, fazendo história. Embora no primeiro milénio tenha havido alguns casos de deposição de papas, abdicações forçadas e outros conflitos em torno do trono pontifício, a renúncia de Celestino V tornou-se histórica e ele é habitualmente considerado o primeiro Papa a renunciar de livre vontade ao trono de São Pedro.

Durante mais de 700 anos, a renúncia de Celestino V permaneceu como um marco histórico, com a esmagadora maioria dos papas que se seguiram a governarem até ao dia da morte. Há alguns exemplos paradigmáticos da história contemporânea que mostram como esta prática de reinar até à morte foi levada ao extremo, incluindo o Papa João XXIII (que morreu de cancro no estômago sem conseguir encerrar o Concílio Vaticano II, iniciativa sua) ou o Papa João Paulo II, que morreu com 84 anos de idade após longos anos de sofrimento testemunhado publicamente por todo o mundo.

Em 2009, o Papa Bento XVI visitou L’Aquila e prestou uma homenagem especial a Celestino V, depositando sobre o túmulo do antigo Papa o seu pálio (uma faixa de lã que os papas usam ao pescoço como símbolo da sua jurisdição). Na altura, o ato de Bento XVI passou relativamente despercebido; quatro anos depois, contudo, a visita do Papa alemão ganhou uma nova chave de leitura. Em 2013, Bento XVI anunciou a sua intenção de renunciar ao cargo, tornando-se o primeiro Papa da história moderna a fazê-lo. A visita a L’Aquila quatro anos antes é hoje lida como um sinal de que Bento XVI já poderia estar a pensar em seguir o exemplo do Papa do século XIII num futuro próximo.


Sem surpresas, o anúncio por parte do Papa Francisco da intenção de visitar L’Aquila este ano (numa altura em que a sua saúde frágil se encontra especialmente em evidência depois de surgir várias vezes em público de cadeira de rodas) motivou grande especulação sobre se o Papa argentino se preparava para seguir o exemplo do antecessor. Na verdade, Francisco já afirmou várias vezes que não descarta a possibilidade de um dia vir a renunciar ao cargo pontifício, caso entenda que não tem condições físicas ou espirituais para continuar a sua missão. Ainda assim, depois de surgirem os rumores, Francisco veio a público dizer que não está em cima da mesa a hipótese de renunciar para já.

A visita de Francisco a L’Aquila tem um motivo claro: o Papa vai presidir às celebrações da Perdonanza Celestiniana, uma celebração anual de misericórdia assinalada nos dias 28 e 29 de agosto, marcando a abertura de um novo ano de indulgência. Trata-se de um ritual anual inaugurado em 1294 pelo Papa Celestino V e as cerimónias até já são consideradas Património Imaterial Cultural da UNESCO. Não obstante, é a primeira vez que a celebração é presidida por um Papa.

A simbologia de uma visita a L’Aquila como prenúncio de uma futura renúncia adensa-se quando se tem em conta que o Papa Francisco realiza a viagem justamente um dia antes de se reunir com os cardeais de todo o mundo para debater a constituição Praedicate Evangelium, o documento que implementa a reforma da Cúria Romana — o grande projeto do seu pontificado, que, agora terminado, traz ao Vaticano um sentimento de “missão cumprida”.

Reforma da Cúria Romana completa significa “missão cumprida”?

Em 2013, nas congregações gerais que antecederam o conclave de que resultou a eleição de Francisco como Papa, os cardeais que se preparavam para depositar os seus votos no homem mais bem preparado para comandar a instituição deixaram claro que o futuro líder da Igreja Católica deveria “implementar uma nova reforma da Cúria, vista como algo urgente e necessário”, segundo escreveu recentemente o próprio Papa, no prefácio a um livro do cardeal Óscar Rodríguez Maradiaga sobre a reforma da Cúria, citado pela Agência Ecclesia.

A Cúria Romana é o pesado e complexo organismo de cúpula da Igreja Católica global. Operando a partir do território do Vaticano, a Santa Sé tem múltiplas subdivisões, tal como acontece com os diferentes ministérios de um governo nacional, responsáveis por coordenar a vida da Igreja Católica em todo o planeta, desde o clero, os bispos, a educação, a doutrina da fé, a cultura, a legislação, a economia, a justiça eclesiástica, o património, os textos bíblicos, e por aí fora. A todos estes organismos junta-se a Secretaria de Estado da Santa Sé, uma espécie de ministério dos negócios estrangeiros da Igreja, responsável pelas relações internacionais da instituição.

Durante séculos, a Cúria Romana consolidou-se como o centro do poder profundamente clericalista da Igreja Católica: liderada por cardeais poderosos, praticamente sempre europeus, a Cúria simbolizava de modo particularmente eloquente o fechamento do poder eclesiástico numa elite clerical apostada em fazer carreira nos corredores do Vaticano. Ao longo do seu pontificado, o Papa Francisco foi operando pequenas reformas dentro da Cúria Romana. A ação mais decisiva na rutura com o clericalismo do passado foi a nomeação de um leigo para, pela primeira vez na história da Igreja, liderar um dos ministérios da Cúria: Paolo Ruffini, que desde 2018 é prefeito do Dicastério para a Comunicação.


O Papa Francisco vai debater com os cardeais da Igreja Católica a reforma da Cúria Romana recentemente implementada

Ao longo de nove anos, o Papa Francisco coordenou, com o apoio do Conselho de Cardeais, a elaboração de um grande projeto de reforma da Cúria Romana, que entrou em vigor em junho deste ano e que vai agora ser debatido com os cardeais de todo o mundo no terceiro momento alto da agenda do Papa Francisco para estes dias: a reunião com o colégio cardinalício agendada para segunda e terça-feira.

A nova constituição da Cúria Romana traz várias novidades. Por exemplo, deixa de haver distinção entre as Congregações e os Conselhos Pontifícios, duas designações anteriores que eram vistas como dicastérios maiores ou menores. Agora, todos os organismos são Dicastérios, à exceção da Secretaria de Estado, que se mantém inalterada (apesar dos rumores nesse sentido, a reforma não reduziu os poderes da Secretaria de Estado). Num documento composto por 250 pontos, o Papa Francisco propõe que a Cúria Romana se vire mais para fora e menos para dentro, colocando-se ao serviço das dioceses.

A reforma da Cúria Romana inclui também a descentralização de competências do Vaticano para as dioceses e as conferências episcopais, reduz o número de organismos e cargos para evitar redundâncias na Santa Sé e inclui um apelo à transformação interior do organismo: deve deixar de ser apenas um instrumento burocrático ao serviço de alguns e passar a ouvir todos, incluindo os leigos, num processo sinodal de tomada de decisões.

Durante os próximos dias 29 e 30 de agosto, o Papa vai reunir-se em Roma com o colégio cardinalício para, no fundo, apresentar o trabalho que o próprio colégio cardinalício havia encomendado ao pontífice nas congregações gerais de 2013. A conclusão do documento traz ao Vaticano um sentimento de “missão cumprida” que, para muitos comentadores e observadores internacionais, justifica as questões sobre uma possível renúncia do Papa Francisco: agora que terminou o grande projeto do seu pontificado, pretenderá reformar-se e abrir as portas a um sucessor?

A pergunta é legítima, mas a resposta parece já ter sido dada várias vezes ao longo dos últimos anos por aqueles que melhor conhecem Francisco. Em 2021, o jornalista britânico Austen Ivereigh, biógrafo do Papa Francisco e um dos mais profundos conhecedores do seu pontificado, explicava em entrevista ao Observador que o programa de Francisco foi adiado várias vezes. Inicialmente, o Papa planeou uma reforma de cinco anos, mas o adensar da crise dos abusos de menores e a pandemia da Covid-19 contribuíram para que o plano demorasse mais a executar. Além disso, Francisco, que já falou várias vezes sobre a possibilidade de um dia vir a abdicar do trono pontifício, “nunca equacionaria renunciar enquanto não sepultar Bento XVI”.

Os dias atípicos que se aproximam no Vaticano fazem crescer as expectativas em torno de um possível anúncio bombástico por parte do Papa — mas parece, para já, improvável que Francisco anuncie alguma novidade relativa à sua renúncia. Por outro lado, a crise dos abusos sexuais de menores, 0 tema mais quente da história contemporânea da Igreja Católica, não estará ausente das discussões em Roma: por um lado, um dos aspetos da reforma da Cúria Romana passou pela inclusão da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores no Dicastério para a Doutrina da Fé, dando mais poderes a este organismo de proteção e prevenção dos abusos na Igreja; por outro lado, alguns dos nomes em Roma por estes dias levam as suas próprias histórias polémicas consigo.

A polémica portuguesa

É o caso do bispo belga Lucas Van Looy, que fazia parte da lista original de 21 nomes escolhidos pelo Papa Francisco para serem elevados à dignidade de cardeal (embora fosse um dos cinco que já tinham passado a barreira dos 80 anos, pelo que não poderiam integrar o colégio de eleitores). Quando a decisão de elevar Van Looy a cardeal foi conhecida na Bélgica, surgiram múltiplos protestos no país devido ao historial problemático do bispo.

Um dos casos diz respeito a uma denúncia de abusos conhecida no início da década de 2000 a respeito de um padre belga que teria cometido abusos na República Democrática do Congo, durante um período de missão. Van Looy terá concordado com o apoio financeiro à vítima, mas não informou as autoridades civis do caso. Mais tarde, em 2010, a imprensa belga noticiou que Van Looy tinha recebido seis cartas com denúncias de abusos contra padres da diocese de Ghent, mas não as entregou à polícia por considerar que não eram urgentes, já que diziam respeito a padres já reformados.

Na sequência dos protestos na Bélgica, o bispo Lucas Van Looy anunciou que iria recusar a elevação a cardeal. Num comunicado emitido em junho, a conferência episcopal da Bélgica reconheceu que o anúncio da nomeação de Van Looy “provocou muitas reações positivas, mas também críticas de que enquanto bispo de Ghent (2004-2020) ele nem sempre agiu de modo vigoroso contra os abusos na relação pastoral”.

“Para evitar que as vítimas desses abusos sofram novamente na sequência do seu cardinalato, o bispo Van Looy pediu ao Papa que o isentasse de aceitar a nomeação. O Papa Francisco aceitou este pedido”, acrescenta a nota dos bispos belgas. Assim, a lista de novos cardeais diminuiu para apenas vinte.

Quem também se vê por estes dias a braços com polémicas sobre o modo como agiu no passado em relação a denúncias de abusos sexuais de menores é o cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, cujo futuro continua ainda incerto depois de, nas últimas semanas, terem vindo a público múltiplas notícias sobre denúncias que ficaram por entregar às autoridades civis.

A primeira notícia foi divulgada no final de julho pelo Observador e dá conta de uma denúncia de abusos sexuais de menores apresentada no final da década de 1990 ao anterior patriarca de Lisboa, D. José Policarpo. Na altura, a denúncia foi tratada à maneira antiga: o caso foi ocultado dos olhos da polícia e o padre foi simplesmente transferido de funções, sendo retirado das paróquias onde trabalhava e colocado como capelão hospitalar. Paralelamente, o sacerdote criou uma associação privada onde continuou a prestar serviços religiosos e a acolher crianças e jovens até aos dias de hoje. Anos mais tarde, o novo patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, tomando conhecimento do caso antigo, reuniu-se pessoalmente com a vítima — e voltou a manter o caso longe das autoridades civis, mesmo sabendo que o padre continuava em funções. A divulgação do caso obrigou o cardeal-patriarca a publicar uma carta aberta na qual admitiu que o modo como o caso foi tratado no passado não corresponde “aos padrões e recomendações que hoje todos queremos ver implementados”, mas justificou a inação com o facto de a vítima não ter pedido expressamente a entrega do caso às autoridades.

Já depois da primeira notícia, o Expresso e a RTP divulgaram novos detalhes sobre o caso que envolve o padre Inácio Belo, uma situação que tinha sido inicialmente denunciada por Catalina Pestana na sequência do escândalo da Casa Pia e que em 2012 chegou mesmo a ser investigada pelo Ministério Público — e arquivada.

A situação mais controversa envolvendo D. Manuel Clemente será provavelmente aquela que foi exposta já no início de agosto pela RTP. Segundo a televisão pública, que ouviu várias testemunhas do caso, o próprio D. Manuel Clemente terá protegido o padre Inácio Belo em 2003, ordenando o afastamento dos chefes de escuteiros que tinham denunciado o caso e pedindo-lhes simplesmente que rezassem por ele. Em 2003, D. Manuel Clemente era bispo auxiliar de Lisboa (a diocese onde ocorreram os abusos) e reitor do seminário dos Olivais.

No início de agosto, numa altura em que estas notícias já tinham gerado um turbilhão mediático em torno de D. Manuel Clemente, o cardeal-patriarca de Lisboa viajou até Roma para um encontro pessoal com o Papa Francisco em que a crise dos abusos em Portugal foi o tema central. Segundo uma fonte eclesiástica ouvida pelo Observador, Clemente colocou nas mãos do Papa o seu destino — o que significa que terá pedido a renúncia ao cargo de patriarca de Lisboa ou, pelo menos, mostrado ao Papa a disponibilidade para abandonar o cargo caso seja essa a intenção do Vaticano.

Reina, agora, a incerteza sobre o futuro de D. Manuel Clemente, figura central da hierarquia eclesiástica portuguesa, mas profundamente afetado pelas notícias sobre o modo como lidou com denúncias de abuso no passado. Situações semelhantes noutros países levaram diferentes bispos a pedir a renúncia ao Papa (o caso do bispo Van Looy é só o mais recente), mas cada caso é um caso e, no caso de Clemente, há pelo menos duas circunstâncias que podem influenciar a decisão do Papa.


O cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, tem estado sob fogo em Portugal devido às notícias sobre o modo como lidou com casos de abuso no passado

Em primeiro lugar, D. Manuel Clemente já tem 74 anos, o que significa que falta apenas um ano para atingir a idade na qual terá obrigatoriamente de pedir ao Papa Francisco a renúncia ao seu cargo — todos os bispos são obrigados a pedir a renúncia aos 75 anos, podendo depois o Papa pedir-lhes que fiquem em funções durante mais um ou dois anos, como é habitual. Em segundo lugar, D. Manuel Clemente foi o grande impulsionador da candidatura do Patriarcado de Lisboa ao acolhimento da Jornada Mundial da Juventude do próximo ano. O evento, marcado para agosto, será um dos maiores acontecimentos de sempre em Portugal — esperam-se mais de um milhão de jovens de todo o mundo — e contará com a presença do Papa Francisco. Por isso, é natural que o Papa queira que D. Manuel Clemente fique em funções pelo menos até à realização da JMJ 2023.

Tendo em conta estes dois fatores, é provável que o Papa Francisco prefira deixar a história seguir o seu rumo natural, mantendo D. Manuel Clemente em funções até depois da JMJ e aceitando a sua renúncia depois do evento, quando o patriarca já tiver completado 75 anos de idade.

De qualquer modo, o que é certo é que a crise dos abusos na Igreja em Portugal e, especialmente, a atuação controversa de D. Manuel Clemente no assunto já são tema de discussão na cúpula do Vaticano. Segundo escreveu há duas semanas o jornal especializado 7 Margens, o núncio apostólico em Portugal já terá enviado informações sobre a situação em Lisboa para o Vaticano. Um mês depois de ter estalado a polémica em Portugal, a reunião do Papa Francisco com os cardeais de todo o mundo será a primeira oportunidade de o líder da Igreja Católica se debruçar a fundo sobre o assunto e até de se voltar a encontrar com D. Manuel Clemente. Por isso, segundo o mesmo jornal, a haver uma decisão final sobre a saída do patriarca, ela poderá ser tomada nesta fase.

Caso a decisão do Papa Francisco seja mesmo o afastamento de D. Manuel Clemente, o Vaticano terá de ser rápido na escolha do sucessor — e não se poderá dar ao luxo de deixar Lisboa sem bispo durante meses a fio, como tem acontecido com Setúbal, Angra e Bragança, que ainda aguardam por novos bispos desde as últimas rotações e parece ainda não haver soluções à vista. A realização da JMJ em Lisboa daqui a menos de um ano obrigará Francisco a nomear de imediato um sucessor para D. Manuel Clemente, que tenha tempo de se pôr a par de todos os dossiês — o que poderá também não ser tarefa fácil.
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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