Talvez esta pandemia pudesse, se as pessoas ao menos parassem para pensar, trazer-nos alguns ensinamentos. Sobre, por um lado, a eficácia da ciência. E, por outro, os seus limites. Artigo do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Em memória de Fernando Gil
Sou
provavelmente a última pessoa a ter vocação para protestar contra a
introdução em português de galicismos ou anglicismos em nome da pureza
da língua. Falta-me, por assim dizer, o gosto. Em primeiro lugar, porque
protestar é geralmente inútil, e, como muitas coisas inúteis, tende
para o ridículo. Em segundo, porque a apropriação de vocábulos
estrangeiros é um dos meios através dos quais a língua evolui. Em
terceiro, porque eu próprio me sirvo deles quando tal me parece
necessário. Por exemplo, uso a palavra “pervasivo” (do inglês pervasive)
porque o mais pacato “invasivo” não transmite, parece-me, a ideia de
uma infiltração generalizada que ocorre simultaneamente em todos os
lugares. É um caso entre muitos. Há, é verdade, vá lá Deus saber porquê,
galicismos que me irritam, como, por exemplo, “massivo”, mas não
atribuo a essa irritação grande importância. E há, sobretudo, liberdades
que têm outra dimensão, porque vão contra o que se poderia chamar a
lógica da língua e, em consequência, introduzem nela confusões
desnecessárias.
Por
estes dias, por causa da Covid, toda a gente que aparece na televisão
ou escreve nos jornais anda constantemente com a “evidência científica”
na boca. Ora, acontece que tal coisa não existe. Ou melhor: não existe
em português. Existe, sem dúvida, em inglês, onde, a partir do fim
século XVII – é visível, creio que pela primeira vez, no Ensaio sobre o
entendimento humano de Locke –, se cria a expressão self-evidence para
designar aquilo que é patente, que salta aos olhos, deixando
progressivamente evidence (que aparece no século XIV) com o sentido de
indício que aponta para uma prova, de indício probatório. Em português,
no entanto, as coisas passam-se diferentemente: “evidência” mantém o
sentido da evidentia latina, tradução oferecida por Cícero da enargeia
grega, significando algo que se confunde com um sentimento em que o
subjectivo aspira a transcender-se em objectivo: o sentimento de algo
tão perspícuo que, por definição, dispensa a prova. E, exactamente por
“evidência” manter em português tal significado, a expressão, cada vez
mais corrente, “auto-evidente” é o paradigma da redundância: “evidente” é
já, pela sua própria natureza, “auto“.
Por
isso, quando, por exemplo, as pessoas do Ministério da Saúde, falam de
“evidência científica”, presumindo que pretendem falar em português e
que se encontram habilitadas para o exercício, estão a falar de uma
coisa que não existe. A ciência não lida, senão indirectamente, na
reflexão que sobre ela se faz, com a evidência: lida com provas e
indícios probatórios. Não há “presente evidência científica”: há
indícios probatórios – num sentido mais forte, provas – que, a uma dada
altura, legitimam uma maior ou menor confiança em certas hipóteses, numa
escala de graus de assentimento complexa e extensa. Nada disso tem algo
a ver com a evidência, embora o cientista possa perfeitamente
experimentar um sentimento de evidência por relação à sua própria
teoria, o que é sem dúvida interessante e importante – mas é outra
questão.
Esta
conversa da “evidência científica” anda muito ligada a um outro
fenómeno contemporâneo, o da crença maciça na existência de um bloco
inamovível chamado “ciência”, em torno do qual se mobilizam,
agonisticamente, defensores e adversários. No seu aspecto mais cómico,
tal atitude manifesta-se no título de um artigo publicado no mês passado
no Público por Gabriel Leite Mota, que se apresenta como “doutorado em
economia da felicidade”: “Acreditem na ciência, porra!”.
Não duvido, é claro, que o autor tenha conseguido realizar o célebre
“corte epistemológico” que nos permitiria transitar de uma concepção
ideológica para uma concepção verdadeiramente científica da felicidade,
apoiada nas suas determinantes económicas (a menos que se trate de uma
concepção científica da economia apoiada nas suas determinantes
felicitárias, se a inovação terminológica me é permitida). Não duvido,
como disse, embora a tal “economia da felicidade”, que preside talvez à
decisão do Governo, contestada por Francisco Assis, de lançar uma
Lotaria Instantânea (vulgo “raspadinhas”) do Património Cultural, não
apareça espontaneamente ao comum dos mortais como a base mais segura
para a defesa da atitude científica. O problema é que a injunção
“Acreditem na ciência!” (o “porra!” pode ser posto na conta de um subtil
efeito estilístico, preferível ao mais ameaçador “senão…”) ilustra algo
próximo daquilo que os filósofos chamam uma auto-contradição
performativa: só é possível ser proferida a partir de um ponto de vista
que em si desmente aquilo que se propõe defender. A ciência não é
matéria de obrigações impostas.
A
verdade é que esta atitude anda muito próxima da da nossa querida Greta
Thunberg (por onde anda ela?) e dos muitos milhões que, inspirados pelo
seu exemplo, por esse mundo fora desfilavam aos gritos de “Estamos do
lado da ciência” contra o “aquecimento global”. Não pretendo de modo
algum que não haja indícios probatórios a favor de causas antropogénicas
do “aquecimento global”. O que quero dizer é que, como é frequente nas
controvérsias científicas mais impuras (a “impureza” é sempre uma
questão de grau), a presença de elementos políticos e ideológicos na
controvérsia tende a inflectir esta na direcção de uma postura
agonística em que as partes deixam de se ouvir uma à outra.
Tecnicamente, passa-se da controvérsia ao diferendo, tal como
Jean-François Lyotard o concebia. Não é um desenvolvimento natural nas
controvérsias da ciência, que tendem a terminar com um acordo (que não
se reduz a um mero “consenso científico”, ao contrário do que a moda
presente interesseiramente nos quer fazer crer), embora em política
ocorra com mais frequência. E, voltamos aqui ao princípio, os indícios
probatórios, em virtude da passionalidade do conflito, aparecem
magicamente transformados em evidências, no sentido português da
palavra. Quer dizer: algo que salta aos olhos – que fura os olhos, como
dizem os franceses – e que só um cego não vê. Neste sentido, derivado e
corrompido, há, de facto, “evidências científicas”: falsas evidências
falsamente científicas.
Somando
tudo, talvez esta pandemia pudesse, se as pessoas ao menos parassem
para pensar, trazer-nos alguns ensinamentos. Sobre, por um lado, a
eficácia da ciência, que, através do trabalho desenvolvido nas
farmacêuticas, descobriu, num tempo verdadeiramente muito curto, vacinas
contra o vírus. E sobre, por outro lado, os seus limites, patentes nos
problemas com os modelos matemáticos usados nas estratégias de combate à
pandemia. Se se parasse para pensar, talvez a confiança (como coisa
distinta da crença) na ciência se desenvolvesse, e talvez também a
sanguínea certeza na fiabilidade dos modelos matemáticos que sustentam
as previsões do “aquecimento global” (muito mais problemáticos do que os
outros) se atenuasse um pouco, dando lugar a uma conversa mais
racional. Mas é sem dúvida esperar demais. Como é que meio mundo
conseguiria viver sem o prazer sublime de se dirigir aos restantes três
quartos com uma frase que invariavelmente começa com: “A ciência diz…”?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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