A liberdade de expressão se tornou um tema inconveniente; por que será? Fernando Schüler para a Gazeta do Povo:
Sempre
fui fascinado pela ideia do “livre mercado de ideias”. Ela nasceu muito
antes, mas foi consagrada por Oliver Holmes. Além de juiz da Suprema
Corte americana, Holmes era um pensador cético. O melhor era colocar as
ideias para competir, em um ambiente aberto, sabendo que lidamos com um
mundo de informação imperfeita. É dele a definição de que só deveriam
ser interditados discursos que representassem perigo “claro e real”. Com
o tempo, essas palavras foram sendo melhor compreendidas. O perigo
deveria ser “imediato” e também era preciso separar um risco real de um
punhado de bravatas e conversa fiada.
Para
que tudo isso? Para que tanta delicadeza? Em vez de proteger, não seria
melhor “higienizar” o mundo de tanta porcaria informacional que circula
por aí?
Vem
daí a longa e difícil tradição moderna da liberdade de expressão.
Difícil porque se baseia em uma ideia contraintuitiva: o progresso do
conhecimento não depende do erro ou acerto desta ou daquela ideia, mas
da preservação de um conjunto de princípios.
Uma
das melhores representações que vi disso foi em um filme de Milos
Forman, O Povo Contra Larry Flynt. Acusado de pornografia, Flynt era um
tipo difícil de defender. Em um dado momento ele vira o jogo. Reconhece
que é o pior dos americanos e que, se a Constituição protegesse “um
canalha como eu, então protegerá todos vocês”.
Há
alguns pressupostos nessa tradição. O primeiro deles é que somos
falíveis. Julgamos o mundo de dentro do próprio mundo. Não somos
isentos. Cada um pode parar e pensar por um instante para saber se isso é
verdade. Outro diz que em algum momento os deuses estilhaçaram a
verdade, e agora ela anda espalhada por aí, de modo que mesmo teses
muito ruins podem conter uma informação relevante, que ajude a nos
aproximar ainda mais um pouco do caminho da verdade.
Esses
argumentos são há muito conhecidos. John Stuart Mill foi seu mestre. O
acerto se alimenta do erro, dizia ele, e suprimi-lo será sempre uma
perda. Sendo certa a opinião, perdemos a chance de trocar o erro pela
verdade; sendo errada, “perdemos a percepção mais vívida da verdade,
produzida pela sua colisão com o erro”.
Talvez
tudo isso seja uma ilusão. A grande tradição moderna do livre
pensamento pode ter sido um equívoco e precisa agora ser “ajustada”.
Tenho escutado coisas do tipo, e a razão seria a internet. Ela teria
dado espaço demais ao fake e ao ódio, e pessoas do lado do bem e da
verdade simplesmente não podem ficar de braços cruzados. Parece um pouco
estranho, mas é o que sugerem, em geral sem muita explicação sobre o
que fazer, livros como The Misinformation Age, de Cailin O’Connor e
James Weatherall. A solução passaria não apenas por penalizar a
distribuição intencional de fake news como por produzir uma ainda mais
necessária “reengenharia nas instituições básicas da democracia”.
Não
me atrevo a pensar o que exatamente caberia nessa “reengenharia” da
democracia. Pensei nos banimentos da internet, nos cancelamentos, na
volta da censura prévia, e até na ressurreição recente de nossa Lei de
Segurança Nacional. Mas achei tudo muito pequeno. Imagino que uma
reengenharia da democracia seja algo mais elegante.
O
fato inequívoco é que a liberdade de expressão se tornou um tema
inconveniente. Há alguns anos promovíamos debates sobre o assunto e o
consenso era quase tedioso. “É preciso estar sempre atento”,
costumava-se dizer, para que ninguém roube esse “bem precioso que
conquistamos a tão duras penas”. Hoje em dia escreve-se sem cerimônia
que é preciso banir a “má informação”. As palavras variam, mas o sentido
é sempre o mesmo: nós, que sabemos a verdade “para além da dúvida
razoável”, precisamos de meios para calar estes imbecis.
Como
se fará isso? Ninguém parece saber direito. Uma hipótese seria entregar
a tarefa às redes sociais, desde que não apareçam novas redes
controladas por gente do lado errado. Outra hipótese seria o “controle
social”, via algum comitê ou algo ao estilo do inquérito das fake news,
mas de caráter permanente, fazendo a curadoria do país.
Há
muitas possibilidades. De minha parte, prefiro manter algum ceticismo.
Intuo que nossas democracias tenham sabido, a duras penas, criar as
instituições que asseguram a liberdade de pensamento. Ainda que a
cultura que lhe dá suporte pareça viver, permanentemente, a sua
infância.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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