Antes de chegar à Presidência, Biden prometeu retomar o acordo nuclear com o Irã e responsabilizar a Arábia Saudita. O "embate com a realidade" pode tornar essas promessas difíceis de cumprir. Reportagem de Pedro Bastos Reis para o Observador:
Apesar
da progressiva perda de influência no tabuleiro geopolítico que a
região tem vindo a testemunhar, o Médio Oriente tem ocupado um lugar de
destaque nas primeiras semanas da Presidência de Joe Biden, com o chefe
de Estado norte-americano absorto na resolução de dois problemas
diplomáticos complexos e que lhe têm valido críticas e muitas dores de
cabeça: as relações com o Irão e Arábia Saudita.
Na
última semana, de resto, o Presidente dos EUA fez duas jogadas
importantes na região, cujas consequências para o futuro da política
externa norte-americana são ainda imprevisíveis, apesar de ainda
estarmos numa fase inicial da administração Biden.
Com o objetivo de enviar uma “mensagem clara” a Teerão
em resposta a um ataque atribuído ao Irão a uma base militar
norte-americana no Iraque, os Estados Unidos bombardearam, na passada
quinta-feira, bases controladas por forças iranianas na Síria, causando a morte de mais de 20 pessoas.
No dia seguinte, na sexta-feira, foi finalmente revelado um relatório dos serviços secretos
norte-americanos que confirmou que o príncipe herdeiro saudita Mohammed
bin Salman (MBS, como é conhecido) deu autorização para o assassínio do
jornalista Jamal Khashoggi, um cronista do The Washington Post, crítico
do regime, que foi desmembrado no interior do consulado saudita na Turquia.
Mas
ao contrário das expectativas de alguns sectores do Partido Democrata e
de organizações de defesa dos direitos humanos, Biden não tomou medidas
duras contra MBS, o que gerou desconforto nos Estados Unidos.
Quanto
ao Irão, o ataque às bases na Síria foi visto como uma demonstração de
força que pode ter consequências, numa altura em que Washington e Teerão
estão num braço-de-ferro para ver quem dá o primeiro passo para
regressar ao Plano Abrangente de Ação Conjunta (JCPOA, na sigla em
inglês), assinado em 2015 pelos Estados Unidos, França, Reino Unido,
Rússia, China, Alemanha e Irão, e rasgado unilateralmente por Donald
Trump em 2018.
Tanto a administração Biden como o governo iraniano já
manifestaram publicamente vontade (e disponibilidade) para retomar o
JCPOA, embora com condições: Washington exige que Teerão pare de
enriquecer urânio para lá do acordo de 2015 e que contenha as as
ambições regionais, enquanto o Irão pede aos Estados Unidos o
levantamento imediato das sanções que estão a sufocar a economia do
país.
Apesar
de, aparentemente, os dois lados ambicionarem o mesmo, Washington e
Teerão estão num braço-de-ferro para ver quem dá o primeiro passo. O
impasse, diz Adlan Margoev, analista do Institute for International
Studies, da MGME University, de Moscovo, na Rússia, deve-se a questões
técnicas, nomeadamente o “coreografar do regresso ao JPCOA, devido à
complexa sequência de passos” que têm de ser dados, mas, sobretudo, a
questões políticas.
“O
Irão não quer ser enganado duas vezes. Não quer regressar ao JPCOA e a
uma total implementação do acordo e depois vir a ser surpreendido por
Washington”, nota Margoev, por telefone, ao Observador. “Uma vez que os
Estados Unidos saíram do acordo em primeiro lugar, têm de ser os
primeiros a regressar também. É isso que o Irão pensa”, acrescenta o
analista especializado em desnuclearização.
Mohammad Zarif, ministro do Exterior do Irã. |
Adlan
Margoev refere ainda que, para os Estados Unidos, é fácil regressar ao
acordo, uma vez que “basta assinar algumas ordens executivas, e Joe
Biden tem autoridade para isso”. Contudo, continua, “os Estados Unidos
não querem ser vistos como o lado fraco e não querem dar o primeiro
passo, porque pensam que são os iranianos que precisam que sejam os EUA a
regressar ao acordo, e não o contrário”.
Por
esse motivo, conclui o analista russo, Washington está “numa posição de
força”. Mas alerta: “Se a nova administração nos Estados Unidos tentar,
simplesmente, capitalizar a vantagem que tem, então a disponibilidade
do Irão para voltar à mesa das negociações e para cumprir o acordo em
toda a sua extensão vai diminuir.”
Após
a eleição de Joe Biden, o regresso dos Estados Unidos ao JCPOA com o
Irão era considerado inevitável, tendo em conta as promessas do então
candidato democrata em romper com Donald Trump, que fez do Irão o seu
principal alvo no Médio Oriente.
No
entanto, conforme nota ao Observador a analista Kirsten Fontenrose,
diretora da Scowcroft Middle East Security Initiative do think tank
Atlantic Council, com sede em Washington, apesar de “a política de Biden
em relação ao Irão ser muito diferente da de Trump em termos de
abordagem, os resultados no terreno podem não ser muito diferentes no
final”.
Para
a analista, que integrou o Conselho de Segurança da administração Trump
até 2018, onde dirigiu os assuntos relacionados com o Golfo, o
Presidente Joe Biden quer renovar o JPCOA para “limitar os programas
iranianos em termos de de fações armadas e de mísseis balísticos, que
são usados para ameaçar a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos e
desestabilizar o Iraque, o Líbano, o Iémen e a Síria”. No entanto,
alerta, “através das suas ações e declarações, o Irão indica que não
está disposto a limitar esses programas, que Teerão considera como
pilares da sua política externa”.
“Por
isso, é provável que, no melhor cenário, Biden consiga um novo acordo,
mas não um acordo que reduza a ameaça imposta aos parceiros árabes”,
conclui a analista do Atlantic Council.
Se
o Irão tem dado dores de cabeça a Biden, apesar da sua posição de força
em relação ao regime iraniano, mais complicações surgem no que diz
respeito à relação dos Estados Unidos com a Arábia Saudita, um dos
principais aliados de Washington no Médio Oriente e um dos grandes
compradores do armamento norte-americano.
Ao
divulgar o relatório que responsabiliza diretamente Mohammed bin
Salman, o líder de facto da Arábia Saudita, pelo assassinato de Jamal
Khashoggi às mãos de um esquadrão da morte saudita que responde
diretamente ao príncipe herdeiro, Joe Biden enviou uma mensagem a Riade e
deixou claro que as conversações com o reino saudita passam a ser entre
si e o Rei Salman, de 85 anos, e não com MBS, ao contrário da regra que
vigorou durante o mandato de Donald Trump.
Mohammed bin Salman, príncipe herdeira da Arábia Saudita. |
Mas,
em termos de medidas concretas, a resposta de Biden ao homicídio de
Khashoggi ficou aquém das expectativas, uma vez que MBS ficou fora da
lista de sanções ou da proibição para viajar para os Estados Unidos. Ao
invés, a administração Biden introduziu a “proibição Khashoggi”, que
permite recusar vistos a quem estiver envolvido na perseguição de
dissidentes do reino saudita. Como consequência, revelou o secretário de
Estado Antony Blinken, 76 sauditas ficarão impedidos de entrar em território norte-americano.
A
Casa Branca justificou a decisão de não visar diretamente MBS pela
importância das relações diplomáticas entre Washington e Riade,
defendendo, pelo contrário, um “recalibrar” do relacionamento com a
Arábia Saudita — uma expressão muito distante daquilo que Biden afirmou
enquanto candidato à Presidência, quando se referiu à Arábia Saudita
como um “Estado pária” ou quando prometeu que o reino saudita “iria
pagar o preço” pelas violações de direitos humanos, incluindo a prisão
de ativistas, o homicídio de dissidentes ou a campanha sangrenta no Iémen.
A inação de Biden em relação a MBS, que é alvo de uma queixa por crimes contra a humanidade,
apresentada num tribunal alemão pela ONG Repórteres sem Fronteiras, foi
alvo de críticas dentro do próprio Partido Democrata — o senador Ron
Wyden, do estado do Oregon, defendeu que MBS devia ser sancionado e que o
governo saudita deveria “sofrer graves consequências” enquanto o
príncipe herdeiro fizesse parte do mesmo —, mas também das Nações
Unidas, de organizações de defesa dos direitos humanos e da imprensa
norte-americana.
“Parece
que, sob a administração Biden, déspotas que ofereçam valor estratégico
momentâneo para os Estados Unidos devem receber um passe para um
‘homicídio gratuito’“, escreveu o publisher do The Washington Post, Fred
Ryan, num artigo de opinião publicado na segunda-feira no mesmo jornal norte-americano.
No
mesmo dia em que Fred Ryan publicava o seu duro texto, o porta-voz do
Departamento de Estado norte-americano, Ned Price, em conferência de
imprensa, justificava que Biden estava a fazer todos os possíveis para
levar as relações entre Washington e Riade “num bom caminho”,
considerando que “medidas mais dramáticas ou drásticas”, como aplicar
sanções a MBS, diminuíram a influência norte-americana sobre o reino
saudita.
Para a analista Kirsten Fontenrose, que saiu da administração Trump após o o assassínio de Khashoggi
em 2018, a resposta de Biden após a divulgação do relatório sobre o
assassínio do jornalista saudita, em contraste com a retórica da
campanha eleitoral, é o resultado de um “embate com a realidade”,
notando que Biden enfrenta um partido e um governo divididos quanto ao
rumo das relações com Riade.
“Os
democratas que estão preocupados com os direitos humanos, mas que não
são especialistas em Médio Oriente, pedem que Biden castigue MBS
pessoalmente. Os especialistas em Médio Oriente na equipa de Biden
compreendem a necessidade estratégica de uma relação de parceria com a
Arábia Saudita”, afirma Fontenrose, destacando a estabilidade que os
sauditas dão a Washington comparativamente a outros países da região.
Em
conclusão, a analista considera que a política de Biden para a Arába
Saudita “será diferente” da abordagem de Donald Trump, mas apenas em
“pequenas questões técnicas”, nomeadamente na “limitação do fornecimento
de armas norte-americanas” ou nos “ajustes aos protocolos que diminuem o
relacionamento direto de MBS com a Casa Branca”.
“Mas
essa mudança no lado dos EUA não vai mudar a forma como as decisões são
tomadas na Arábia Saudita. Mesmo que MBS não seja o interlocutor com a
Casa Branca, todas as principais decisões sauditas sobre as relações
bilaterais ainda serão tomadas por MBS”, remata.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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