Em
Lessons of the Masters, publicado em 2003, George Steiner estuda a
relação entre mestres e discípulos com a autoridade de quem, como ele
diz, já era há meio século professor em diferentes países e sistemas de
educação superior. O livro é a compilação das “Charles Eliot Norton
Lectures” que o grande crítico franco-americano proferiu em Harvard,
universidade onde obtivera seu mestrado em 1950, como o convidado do
período letivo 2001-2002.
“Mestres”
e “discípulos” são conceitos que certamente já soavam antiquados nos
primeiros anos do século XXI. O próprio Steiner nos diz que somente na
cultura francesa a palavra “mestre” — que ele usa com maiúscula — existe
sem conotações irônicas. Nas letras anglo-americanas, apenas Henry
James recebeu o epíteto com “more or less sincere esteem”, embora
originalmente ele lhe tivesse sido atribuído com a intenção de
ridicularizar “seus ares patrícios”.
O
título escolhido por George Steiner faz referência a uma novela do
mesmo Henry James, “The Lesson of the Master”, de 1888. No enredo de
James, um escritor celebrado, admirado por um autor iniciante, recomenda
a este que não se case, para poder se dedicar integralmente à sua arte.
Depois de enviuvar, o homem mais velho fica no entanto noivo da mulher
amada pelo mais jovem. O mestre ainda diz ao discípulo excessivamente
obediente que, em parte, decidiu casar-se de novo para impedir o mais
jovem de cometer esse erro, que prejudicaria o desenvolvimento de seu
talento literário.
Na
visão de Steiner, a relação entre mestres e discípulos, que se dá, ele
lembra, em todas as áreas, inclusive a esportiva, a militar, a
científica, pode se basear em três tipos de dinâmica. Há aquela em que
mestres destroem seus discípulos psicologicamente e até mesmo, “in rarer
cases”, fisicamente. Há também a relação em que o discípulo “subverte,
trai e arruína” o mestre. Na terceira categoria, há um intercâmbio que
promove confiança mútua e verdadeira amizade, em que o professor aprende
do aluno, enquanto ensina a ele. A confiança e a amizade podem mesmo
gerar amor, e Steiner menciona “Alcibíades e Sócrates, Heloísa e
Abelardo, Arendt e Heidegger”.
Héloïse et Abailard’, Jean-Baptiste Goyet, c. 1829 |
Com
sua postura habitual de guardião do pensamento cultural ocidental,
Steiner recorre a numerosos exemplos. São tantos os filósofos,
escritores, poetas, artistas citados que passa a ser um exercício
divertido notar a falta de alguns nomes. Penso por exemplo em Sêneca e
Nero, ausentes ilustres que o autor poderia ter usado como um belo caso
em que é o discípulo quem destrói o mestre “fisicamente”, e não o
contrário. Notei também que o autor não fala da sua experiência como
discípulo na juventude, apresentando-se exclusivamente na condição de
mestre: “a família constituída por aqueles que foram nossos alunos é
como a ramificação, os galhos verdes de um tronco que envelhece (tenho
alunos em cinco continentes)”.
Uma
presença importante no livro é Fernando Pessoa. Steiner aponta como
Ricardo Reis e Álvaro de Campos, embora “antipathetic to each other”,
eram ambos discípulos de Alberto Caeiro, como aliás era também o próprio
Pessoa, criando-se nessa interdependência entre o poeta e seus
heterônimos “uma alquimia única na literatura”. Steiner sugere haver em
Fernando Pessoa um paradoxo doloroso, pois o poeta é um “magician of
solitude”, mas sente uma “sede por diálogo”: “a thirst for dialogue, for
shared risks of sensibility and intellect along Socratic lines”.
Lessons
of the Masters não é o meu livro predileto de George Steiner. É uma
leitura árida, e pouco a pouco os exemplos começam a cansar, pois as
relações humanas tendem a ser repetitivas. Toda interação entre duas
pessoas, mesmo a mais amistosa, pode sofrer o impacto da inveja, da
competição, do ciúme, da ingratidão, da cobrança excessiva. Vejo como
sendo a sina do mestre decepcionar-se com o discípulo, ou sentir ciúmes
de seu sucesso, assim como é a sina do pupilo, em algum momento, querer
libertar-se e, nesse processo, talvez ser ou parecer egoísta e ingrato.
Há algo edipiano nisso tudo, e Steiner aliás menciona a “tragicomédia
das relações de Freud com seus discípulos”, o que terá “entristecido mas
não surpreendido” o pai da psicanálise, para quem “civilization had
arisen from the murder of the father”. Acredito que, para os indivíduos
mais equilibrados, se houver desprendimento mútuo, a relação prosperará e
perdurará. Não sei se quase duzentas páginas eram necessárias para
explicar isso.
O
livro apresenta porém, além de análises literárias úteis, certas ideias
que merecem reflexão. Aponta o autor o erro de equipararmos artistas de
diferentes épocas e gêneros, sem critério para diferenciar seus méritos
relativos: “É, ou deveria ser, evidente que Bach e Beethoven
concretizam uma esfera de esforço humano superior a rap ou heavy metal,
que Keats provoca percepções das quais a lírica de Bob Dylan é
inocente”. Steiner comenta que pode existir “a recusa em ensinar, a
negação da transmissão”, quando “o Mestre não encontra discípulos,
destinatários merecedores de sua mensagem, da sua herança”. Há também os
casos em que o discípulo, de maneira consciente ou não, distorce os
ensinamentos que recebe. Ao ler isto, pensei no filme Rope, de Alfred
Hitchcock, no qual dois amigos matam um terceiro como exercício de
diletantismo intelectual inspirado em conversas com um antigo professor.
O filme é baseado em uma peça retirada, por sua vez, de uma história
real.
Rope |
Subjacente
ao texto como um todo há a sugestão de que mesmo o mais leal dos
discípulos precisa se tornar independente do mestre. O bom professor
“desperta dúvidas no pupilo, treina-o para a discordância”. Já o
discípulo pode precisar “fugir ou trair” para “salvar sua identidade de
uma autoridade insuportavelmente carismática”.
Steiner
dá um único exemplo de mestre do sexo feminino, Nadia Boulanger.
Nascida em 1887 e morta em 1979, aluna de Gabriel Fauré, Boulanger teve
como alunos vários dos compositores e músicos mais importantes ou
famosos do século XX, por exemplo Aaron Copland e Leonard Bernstein.
Alguns deles, como Daniel Barenboin, continuam ativos. Steiner
dedica-lhe mais de quatro páginas, em tom relativamente afetuoso: “she
gave her students the confidence to become what they were”, diz ele.
Esta última qualidade, ele avalia, seria “o dom maior de um mestre”. Nem
todos se entenderam bem com Nadia Boulanger — “after extended study,
Philip Glass breaks away” — mas Ned Rorem é citado dizendo: “ela foi o
maior dos professores, desde Sócrates”.
A
referência à capacidade de atribuir aos alunos “a confiança de se
tornarem o que eram” fez-me pensar em meu avô, o matemático, de quem sou
homônimo. Embora ele tenha morrido relativamente jovem, em 1968, não é
incomum eu receber ainda hoje, de maneira imprevista, nas redes sociais,
mensagens de pessoas que não conheço mas que estudaram com ele no Pedro
II, no Colégio Militar do Rio de Janeiro ou no Instituto de Educação e
que o descrevem como carismático, atento aos alunos e, frequentemente,
como o melhor professor que tiveram.
Quando
eu estudava em Londres, as maiores influências intelectuais sobre mim
não foram os professores da London School of Economics, mas, além de
meus pais, alguns amigos brasileiros mais velhos, que também moravam lá.
Um deles, justamente, estudara em Paris, quando muito jovem — a
primeira vez, aos sete anos — com Nadia Boulanger e muitas vezes me
falou nela. Por isso, toda menção a seu nome desperta minha atenção.
Assisti,
estes dias, a uma versão, talvez truncada, disponível na Internet, de
um documentário de Bruno Monsaingeon, editado em 1977, mas filmado ao
longo de vários anos, intitulado Mademoiselle. O documentário mostra
Nadia Boulanger, já anciã, ainda lecionando. Um de seus ex-alunos, o
regente e compositor Igor Markevitch, aparece dizendo que um
condiscípulo, Sviatoslav Stravinsky, filho do compositor, definia da
seguinte maneira a impressão que podiam causar suas aulas: “temos a
impressão, de repente, de que uma obra se tornou tão profunda quanto o
mar”.
Perguntada
sobre como faz para estabelecer uma “hierarquia” entre compositores,
recebendo como exemplos Beethoven e Max Bruch — deste último eu até
então jamais ouvira falar — ela exclama: “É difícil comparar os
Himalaias com a Butte Montmartre”. E completa: “Nunca penso em Max
Bruch, mas é muito raro o dia em que eu não pense em Beethoven”. Parte
significativa do filme é passada mostrando uma das famosas
“quartas-feiras” em que Nadia Boulanger, sentada perto do piano, dava
aula na pequena sala de seu apartamento parisiense. Os alunos estão
instalados à sua frente, em três ou quatro curtas fileiras de cadeiras.
Há claramente no grupo um elemento de adoração e de compenetração — a
mestre deixa claro a Bruno Monsaingeon, em outro trecho, que a falta de
concentração é um defeito que ela não tolera. Em determinado momento, a
câmera focaliza um dos alunos mais atentos e o que parece mais feliz de
estar assistindo àquela aula. Não fiquei surpreso ao reconhecer o meu
amigo. Trocamos mensagens a respeito. Ele me disse: “Penso nela todos os
dias”.
Nadia Boulanger |
Os
livros de Steiner exerceram grande influência sobre mim, durante alguns
anos. Ainda hoje, gosto de ler suas palavras sobre Goethe, Racine,
Corneille, Tolstoi e Dostoievski. Ao menos uma vez, porém, cometi o erro
de acreditar nele sem ressalvas.
Por
sua causa sou, por princípio, cético quanto à atual literatura de
língua inglesa. Em um ensaio de 1982 sobre o poder e as artimanhas da
tradução, intitulado “An Exact Art”, ele nos diz que o inglês já era
então “the sole genuine Esperanto”, talvez por causa das características
sintáticas do idioma, que o tornam de aprendizado mais fácil e rápido
do que outros. Steiner sugere também, e sobretudo, que, no caso dos
autores contemporâneos de língua inglesa, sua posição central nas letras
se deve, antes de mais nada, ao poderio político-econômico dos Estados
Unidos. Ele não quer dizer que não haja bons autores escrevendo em
inglês, apenas que o peso econômico e cultural americano lhes confere um
prestígio desmerecidamente superior ao dos que escrevem em outras
línguas.
Em ‘O Vulcão’,
mencionei que um amigo americano, John Hay, de quem éramos vizinhos em
Quito, e com quem deixei de conviver em 2001, quando fomos embora do
Equador, tinha em Paul Auster um de seus autores prediletos e sempre
falava na sua obra. Durante vinte anos, pensei comigo mesmo que eu devia
lê-la, se um amigo mais velho, que eu respeitava, a recomendava.
No
entanto, era difícil vencer minha resistência, causada em grande parte
por George Steiner e minha vontade de acreditar nele de forma absoluta.
Havia também outras razões. Há poucos dias, o New York Times publicou
uma entrevista com Margaret Jull Costa, a tradutora inglesa de, entre
outros autores, Machado de Assis, José Saramago e Fernando Pessoa. Em
resposta a uma pergunta, ela diz algo que ecoou em mim: “I’m not sure I
have any guilty reading pleasures except avoiding contemporary fiction —
and I do feel slightly guilty about that, but it does simplify my
reading life”.
Em
2009, Paul Auster voltou à minha atenção quando assisti, em Bruxelas, a
uma retrospectiva do trabalho de Sophie Calle. A partir desse momento,
por alguns anos, a artista francesa foi um de meus principais interesses
culturais. O que me fascina não é só sua capacidade para transformar em
arte a sua vida cotidiana, mas o fato de que ela cria eventos em sua
vida cotidiana para poder transformá-los em atividade artística. Comecei
naquele ano a escrever um conto inspirado em um de seus projetos,
L´Hôtel, no qual ela trabalhou como camareira em um hotel veneziano para
poder estudar a vida dos hóspedes com base em seus pertences pessoais.
Descobri,
porém, que Paul Auster já havia feito algo semelhante ao que eu
planejava. Em seu romance Leviathan, de 1992, um dos personagens é uma
artista calcada em Sophie Calle. Esse livro, por sua vez, gerou um novo
projeto da própria artista. Em 1994, em atenção a um pedido dela, Paul
Auster redigiu instruções, que ela obedeceu, sobre “como tornar a vida
melhor em Nova York”. Esse trabalho conjunto do escritor e da artista,
que pode ser visto como um tipo anárquico e temporário de relação entre
mestre e discípulo, forma o projeto Gotham Handbook.
O
tom de Auster para a artista lembra, estranhamente, o de algum filósofo
estoico romano dirigindo-se a um discípulo: “Há tantas coisas que
separam os homens, há tanto ódio, tanta discórdia na atmosfera, que é
bom lembrar das coisas que nos unem. Quanto mais pensarmos nelas na
nossa interação com desconhecidos, melhor será o moral na cidade”. Uma
das instruções era escolher um ponto de Nova York – uma esquina
qualquer, uma entrada de metrô – e passar a considerar-se responsável
por esse lugar, limpando-o, cuidando-o, dirigindo-se às pessoas que
passavam por ali. Sophie Calle optou por uma cabine telefônica, na
esquina das ruas Greenwich e Harrison. Decorou-a com flores, um espelho,
cartões postais. Dialogava com os usuários do telefone, escutava suas
conversas.
Anos
mais se passaram. Em 2017, ao fazer escala em Heathrow a caminho do
Cazaquistão, comprei alguns livros, entre eles uma edição da obra mais
famosa de Paul Auster, The New York Trilogy. Na volta ao Brasil, o
volume ficou intocado em uma estante.
Em
2020, na Malásia, associei a pandemia à experiência de viver à sombra
de um vulcão em atividade no Equador. Isso tornou mais vivas, na minha
memória, as conversas com John Hay, que morrera em 2018. Lembrei do
volume de Paul Auster na estante. Decidi abri-lo.
São
três romances curtos, City of Glass, Ghosts e The Locked Room,
inicialmente publicados de forma isolada, entre 1985 e 1986, que muitos
consideram histórias pós-modernas de detetives. Embora haja
investigadores particulares e casos a serem resolvidos, estes são na
verdade pretextos para uma reflexão sobre a arte de escrever, a solidão
que ela provoca e a credulidade do leitor. Vários dos poucos personagens
estão sempre redigindo alguma coisa: livros, relatórios, anotações,
cartas, panfletos religiosos, bilhetes de suicídio.
Um
tema recorrente é o da identidade, inclusive a do próprio Paul Auster —
que aparece como autor, personagem e talvez, no terceiro romance, como
narrador na primeira pessoa, mas também como amigo do narrador no
primeiro romance — e a de Miguel de Cervantes, ou melhor, a do autor de
Don Quixote. Há numerosas homenagens a autores americanos do século XIX –
Poe, Hawthorne, Melville, Emerson, Thoreau, Whitman. Essas referências
podem servir para explicar a narrativa de Auster ou, ao contrário, podem
representar falsas pistas; ou nada significar. Embora seja um livro
cerebral sobre o ofício do escritor, The New York Trilogy é uma leitura
deliciosa. Há o tempo inteiro a sensação de que o autor quer nos revelar
algo, e fica a nosso critério decidir o que isso seria.
Paul Auster |
O
primeiro dos três romances, City of Glass, me deu em alguns momentos a
impressão de estar assistindo a um film noir. Há ecos de Samuel Beckett,
pois uma lata de lixo tem um papel importante na vida do personagem
principal. No segundo, Ghosts, o autor nos mostra como contar uma
história complexa com o mínimo de personagens, ambientes e temas. No
último romance, The Locked Room, reaparecem personagens, ou seus
homônimos, que havíamos encontrado em City of Glass. Sobretudo,
recebemos aí a informação de que o narrador de The Locked Room escreveu
também City of Glass e Ghosts. “The three stories are finally the same
story”, explica ele, talvez desnecessariamente, “but each one represents
a different stage of my awareness of what it is about”.
The
Locked Room é construído de forma mais tradicional do que os outros
dois, e mesmo seu título é o mais obviamente inspirado de um estilo
específico de histórias de mistério, em que alguém é assassinado ou algo
é roubado em um quarto trancado por dentro. Um dos precursores dessa
modalidade foi Edgar Allan Poe, em The Murders of the Rue Morgue. No
romance de Paul Auster, nada físico é subtraído e ninguém chega a ser
assassinado. No final, há um quarto em Boston onde o narrador deseja
entrar porque acredita que, ao conversar com o amigo, Fanshawe, que lá
está trancado, entenderá a verdade sobre como e por que esse amigo
manipulara sua vida, de longe, nos últimos anos.
Embora
Nathaniel Hawthorne seja uma inspiração mais óbvia, por causa do nome e
de algumas características de Fanshawe, há uma leve lembrança,
proposital ou não, da novela de Henry James que também inspiraria
Steiner quinze anos depois, “The Lesson of the Master”. Fanshawe é um
escritor que não publica. Desaparece, dando instruções à sua mulher para
procurar um amigo de infância, o narrador, que não vê há dez anos, e
mostrar a ele seus manuscritos. Estes, descobre o narrador, são
excelentes. Fanshawe, acredita-se, está morto. Seus romances e suas
peças de teatro, publicados “postumamente”, são um sucesso de crítica e
de público. O narrador, romancista frustrado, que só consegue escrever
resenhas, casa com a “viúva” de Fanshawe e cria seu filho. Começa então a
levar uma vida literária ainda menos produtiva do que antes, e atribui
isso à situação de homem casado e pai de família.
Um
dado importante é que Fanshawe, embora da mesma idade do narrador,
exercera sobre ele, na infância e na adolescência de ambos, uma forte
influência. O que Fanshawe fazia, o narrador fazia; o que Fanshawe lia, o
narrador lia: “I was not the only one who behaved like this, but I was
perhaps the most devoted”.
O
resultado é previsível e típico do comportamento de qualquer pupilo: “I
see now that I also held back from Fanshawe, that a part of me always
resisted him”. Um colega de universidade de Fanshawe, que aliás estudara
em Harvard, diz ao narrador, que o procura: “I learned more from him
than from any of my classes”. Isso tudo poderia fazer parte das
palestras de George Steiner em Harvard sobre a relação mestre/discípulo.
“He was the one who taught me to think for myself”, diz o colega.
O
narrador vive a existência do amigo “morto”. É casado com sua “viúva”,
cria seu filho, vive dos direitos autorais das obras dele, e há mesmo o
rumor no meio literário de que, na verdade, Fanshawe nunca existiu e é
ele, o narrador, o autor dos livros. Fanshawe na realidade não morreu e,
no final do romance, convoca o amigo para uma conversa na casa onde
está morando em Boston. Não se deixa ver, não destranca o quarto para o
diálogo que mantém com ele, separados os dois pela porta, e não explica
satisfatoriamente os motivos de seu desaparecimento.
Terminada
a leitura, pensei no erro que havia sido pautar-me por George Steiner.
Teria sido melhor ouvir meu amigo John Hay. Steiner aliás publicara “An
Exact Art” quando Auster apenas começava a escrever romances. O ditame
steineriano sobre a literatura contemporânea americana não poderia se
aplicar ao escritor nova-iorquino. Eu me privara, durante anos, de uma
leitura altamente instigante. Minha visão de mundo e minha opinião sobre
a literatura americana seriam talvez diferentes, se eu tivesse lido The
New York Trilogy há vinte anos.
Havia
outro aspecto a lamentar. Livros ocupam um espaço importante na minha
sociabilidade. São emprestados, presenteados, recebidos, discutidos,
comentados. Ao atrasar em vinte anos meu contato com Paul Auster, eu
abrira mão de um assunto para dialogar com um amigo.
Supus
então o que seria o verdadeiro “quarto trancado” do título do romance
de Auster. Trata-se da nossa mente, que tenta de todas as formas nos
aprisionar em ideias ditadas por outros, criando zonas de conforto
intelectual. Em vez de aprender com um “mestre” a pensar por conta
própria, deixamos que ele determine em que devemos acreditar.
Em
um sentido amplo do termo, o “mestre” nem sempre é um professor. Pode
ser um escritor, um jornalista, um comentarista de televisão, um ator,
um tuiteiro, um amigo. Valorizamos a liberdade física, no entanto
deixamos que outros pensem por nós. As palestras de George Steiner em
Harvard deram-se antes da proliferação de redes sociais que hoje
preenchem o cotidiano. Ele aborda porém, ao concluir, a questão de como a
vida ditada pela celebridade midiática opõe-se ao intelecto: “somos
viciados em inveja, em depreciação, em nivelamento por baixo”. Em uma
imagem impactante, ele diz: “nossos cérebros estão cobertos de
grafites”.
Em
fevereiro morreu, aos 95 anos, o poeta suíço francófono Philippe
Jaccottet, de cujos poemas Paul Auster foi no passado tradutor. Tendo
Jaccottet partido, eu já não precisava considerá-lo como “contemporâneo”
e decidi ler seu único romance, L’Obscurité, publicado em 1961.
O
livro, sombrio como faz prever o título, transmite a visão do narrador
sobre um filósofo que ele admira e considera seu mestre. Eles não se
veem há anos, pois o mentor, em um belo exemplo de desprendimento de
mestre para com discípulo, exigira esse afastamento, pensando que o mais
jovem corria o risco, se continuasse convivendo com ele, de “perder
toda existência pessoal”. Tendo assimilado as lições do mestre, de quem
aprendera “a amar a vida”, a “agir, falar e viver somente para comunicar
a luz de que nós nos sentíamos rodeados” e a adotar, “com convicção, o
partido da claridade”, o narrador regressa, depois de três anos, ao país
natal. Deseja mostrar a seu mentor que incorporou seus ensinamentos.
O
mais velho vive agora na obscuridade, e é com dificuldade que o mais
jovem consegue retomar contato. Marcam um encontro. O mestre mudou-se
para um bairro pobre da cidade. Recebe-o no escuro, pedindo que não olhe
para ele, o que nos lembra a situação no final de The Locked Room; Paul
Auster não traduziu L’Obscurité, mas talvez o tenha lido. Segue-se um
solilóquio em que o mestre, deprimido, aterrorizado com a ideia da
morte, prematuramente envelhecido, lamenta “só ter vivo em si o
sentimento da nulidade da vida”. Esse discurso pessimista afeta de forma
negativa, por um bom tempo, a psicologia do discípulo.
O
romance de Philippe Jaccottet subverte a categorização postulada por
George Steiner sobre os três tipos de relação possível entre um mestre e
um discípulo. É uma demonstração literária de como a terceira forma de
relação, a positiva, amistosa, pode evoluir para o primeiro tipo, em que
o mestre destrói psicologicamente o pupilo, embora neste caso esse
efeito pareça involuntário e o mestre tenha sobretudo destruído a si
próprio.
O
erro do narrador de Philippe Jaccottet é o de se deixar influenciar,
positiva e depois negativamente, pelo amigo mais velho, confirmando a
utilidade da parábola de Paul Auster. Destrancar o quarto, abrir a
porta, significa descobrir nossas convicções, nossas ideias próprias,
aceitá-las e vivê-las. A luz deve ser trazida pela nossa inteligência,
não pela doutrinação de outro. Esta é a mensagem central de George
Steiner em Lessons of the Masters: não devemos nos deixar aprisionar nos
grafites alheios, que criam zonas de conforto, mas ter a coragem da
verdadeira liberdade intelectual.
Steiner em Oxford, 1994. |
Ary
Quintella, diplomata de carreira, é atualmente Embaixador na Malásia.
Publica seus ensaios e crônicas na página aryquintella.com.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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