Em Oxford, querem a derrubada da estátua de Cecil Rhodes. |
Com Burke e Scruton, é hora de recusar quer a loucura abismal que se
precipita na inaceitável violência, quer a intolerável destruição do
Belo e da História em nome de um qualquer progresso incauto. João Roque
Branco, via Observador:
São dias sombrios, estes. Dias que a América vai vivendo a ferro e
fogo, dias em que o mundo ocidental, o mundo das Nações Iluminadas que
Pombal mobilizava como referentes indispensáveis do seu progressismo
despótico, se lança na vertigem alucinada da violência física e
simbólica, da indecência e do anacronismo ignóbil.
Nas últimas semanas, os Estados Unidos, a propósito da morte de
Floyd, entraram numa espiral de violência sem limites, traduzida em
episódios de destruição de propriedade pública e privada e de ataques
injustificados às forças de segurança, assistindo-se (em paralelo com
protestos maioritariamente pacíficos, de entre os quais o protagonizado
por Mitt Romney, de louvar) à captura de uma causa justa por grupos de
activistas radicais que mancham a legítima revolta contra a violência
policial.
No nosso jardim à beira-mar plantado, é empunhado um cartaz onde se pode ler que “um polícia bom é um polícia morto”.
Num momento em que seria indispensável um combate feito pelo recurso
às armas permitidas do jogo democrático, onde avulta a palavra, opta-se
pelo recurso à força, atropelando-se, na aceleração irreflectida do
radicalismo exclusivista, direitos e liberdades fundamentais,
nomeadamente a propriedade privada, a propriedade dos outros, simples
cidadãos particulares a quem são impostas as excrescências de um
maquiavelismo revolucionário desnecessário a quem vive numa democracia
liberal.
Já a palavra, mesmo que dela se lance mão, passa a servir de veículo a
generalizações absurdas, primitivas e que ostracizam instituições que,
agora no caso de Portugal, têm sido um bastião da paz e da democracia,
como é o caso das forças de segurança desde os dias 25 de Abril e de
Novembro.
A linguagem, a própria língua, são dimensões constitutivas da realidade humana.
O homem é comunicação. O que significa que o homem só o é quando vê,
quando vê verdadeiramente, o outro. Só quando o eu se abre ao outro,
pela janela da palavra, se pode des-cobrir por inteiro. O homem medeia,
portanto, tanto o mundo que habita como o outro, com quem coabita, pela
palavra.
Só que, é preciso não esquecer, a palavra, a linguagem, é, só pode
ser, também símbolo. Só através do simbólico pode o homem
transcender-se, libertar-se do seu tempo. E o homem aspira, sempre, à
transcendência. O homem, porque é homem, aspira, sempre, a ser mais do
que homem.
O simbólico é esse veículo de libertação da clausura do presente,
porque o simbólico é, ou é também, memória, que é a história convertida
em sonho lúcido. E só consciente da história, da sua história, pode o
homem poupar-se a ser dissolvido pela vertigem do agora.
O homem, quando estilhaça aquela janela, ferindo o outro, fere-se a
si próprio, porque fere a ideia mesma de Homem. E, cá está, a ferida, o
estilhaçar da janela, é mediado (serve-se de como meio) pela palavra. O
simbólico, que ali era abertura e des-coberta do homem, volve-se num
punhal cuja lâmina rasga a possibilidade mesma do Homem.
O homem ocidental, que vive do simbólico, do simbólico que é memória
e, portanto, história, converteu parte dessa história em instituições
destinadas a perdurar no tempo. São parte da tal transcendência do
homem. São porções de história que levam como missão a delimitação das
possibilidades do presente, que é sempre, mas só aparentemente, espaço
de re-invenção ilimitado.
Essas instituições merecem o nosso respeito.
Se assim é, não só é liminarmente condenável a violência, o recurso à
força e o discurso de ódio contra as instituições, como é igualmente
condenável o revisionismo histórico que pretende erradicar da nossa
memória as crónicas e os símbolos de um passado construído sobre valores
distintos daqueles que conformam o presente. E isso leva-nos ao próximo
ponto.
Nestes dias sombrios, um memorial de Churchill — a voz central do
espaço europeu e do mundo ocidental no combate às atrocidades
perpetuadas por Hitler –, em Londres, foi vandalizado e ladeado por
cartazes que o acusavam de racista, à laia de umas declarações
proferidas, num dos casos, há mais de cem anos. Uma estátua do rei belga
Leopoldo II (1835-1909!) foi retirada da Antuérpia para restauração,
mas, segundo o presidente da câmara, pode não voltar ao seu espaço
devido à associação do soberano ao colonialismo em África. Em Bristol,
no sudoeste de Inglaterra, centenas de pessoas participaram e
rejubilaram com o momento em que uma estátua de Edward Colston,
comerciante de escravos do séc. XVII (sim, do século dezassete, essa
época dourada da luta antifascista), foi derrubada e lançada ao porto da
cidade, mesmo que a sua remoção não tenha sido precedida de uma decisão
democrática (ainda que tal não bastasse para assegurar a licitude do
acto). Na outrora sublime Universidade de Oxford, peticiona-se a remoção
da estátua de Cecil Rhodes, imperialista vitoriano na África do Sul que
financiou, a expensas suas, bolsas de estudo naquela instituição. Em
Edimburgo, na Escócia, clama-se pela destruição de uma estátua de Henry
Dundas, destacado político do séc. XVIII (idem.), por estar associado à
demora da abolição britânica da escravatura.
A ditadura do anacronismo é, no essencial, uma ditadura. Como tal,
merece um repúdio assertivo. Como qualquer outra ditadura, alimenta-se
da ignorância, da desinformação, de debates à partida inquinados, da
ausência de um pluralismo que é essencial a uma sociedade livre.
Alimenta-se, também, de uma visão romântica do Homem que o reduz a uma
só faceta, descartando a complexidade que lhe é inerente.
Sobre tudo isto, cumpre relembrar as posturas de Burke e de Scruton,
em relação à Revolução Francesa e ao Maio de 68, respectivamente. Com
eles, é hora de recusar quer a loucura abismal que se precipita na
inaceitável violência, quer a intolerável destruição do Belo e da
História em nome de um qualquer progresso incauto.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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