Não é preciso ter uma imaginação sofisticada para se perguntar como
seria o mundo hoje se certos eventos históricos não tivessem ocorrido. Paulo Polzonoff Jr.:
Por sugestão do meu amigo Ricardo Sabbag, fui assistir à primorosa
adaptação do romance “Complô Contra a América”, de Philip Roth, para a
televisão. A minissérie em seis episódios imagina uma realidade paralela
em que, na década de 1940, o aviador Charles Lindbergh derrota
Roosevelt nas urnas e se aproxima do fascismo europeu.
Seria apenas mais uma deliciosa narrativa do gênero “e-se”, ao estilo
de outras belas obras, como “O Homem do Castelo Alto”, de Philip K.
Dick, ou “Associação Judaica de Polícia”, de Michael Chabon, não fossem
as recentes tentativas dos ativistas progressistas (olha o eco!) de
apagar a história que tanto os incomoda – e com a qual eles teimam em
não aprender absolutamente nada.
Quero crer, embora não creia, que essas pessoas que derrubam estátuas
e pedem pelo fim da exibição de um filme como “...E o Vento Levou”
façam isso com a melhor das intenções, porque são ingênuas o suficiente
para acreditar na possibilidade de um futuro imaculado por eventos
abjetos como as guilhotinas, a escravidão, o Holocausto, os gulags e a
Revolução Cultural, por exemplo.
Neste futuro, a realidade seria uma espécie de concretização de
“Imagine”, aquele manifesto comunista disfarçado de música tisti. Sem
Paraíso ou inferno, sem países, as pessoas vivendo o hoje, sem
propriedade, sem ambição, sem fome. E sem passado. Ou melhor, com um
passado que começasse agorinha mesmo, em 2020. Uma nova era a.C. e d.C. –
antes e depois da Covid-19.
E tudo seria reescrito de modo a não ferir quaisquer
suscetibilidades, até que não houvesse mais suscetibilidades a serem
feridas (imagem que deve ter ocorrido a John Lennon, mas é mesmo difícil
encaixar “susceptibilities” naquela melodia proibida para diabéticos). A
pré-história seria tudo o que aconteceu até aqui, como se tivéssemos
descido das árvores ontem mesmo e encontrado a Civilização já prontinha
para o nosso desfrute.
Aí lá pelo meio do primeiro episódio de “The Plot Against America” me
dei conta de que o gênero “e-se” está nada menos do que na base de todo
o pensamento progressista talibã, esse que quer apagar a história. Não à
toa. Se você parar para pensar, e a despeito da dificuldade de execução
de um livro como “Complô Contra a América”, o “e-se” é um gênero quase
infantil, beirando o primitivo.
Não é preciso ter uma imaginação das mais sofisticadas para, num dia
qualquer, talvez sob uma macieira, se perguntar como seria o mundo hoje
se certos eventos históricos não tivessem ocorrido. Se os negros não
tivessem sido vendidos como mercadoria. Se Colombo tivesse afundado no
meio do Atlântico. Se Hitler tivesse virado pintor. Se aquela bola de
Pelé contra o Uruguai na Copa de 70 tivesse entrado. Se, num dia
qualquer da remota década de 1920, o velho Staff Polzunov não tivesse
arrumado suas trouxas e entrado com a família num navio rumo ao selvagem
Brasil-sil-sil.
Na vida muito real do coronavírus e das estátuas quebradas, contudo, o
“e-se” não leva a nada de bom. Simplesmente porque é uma lógica
macabra, que desafia a própria noção de tempo. O “e-se” catastrófico de
“Complô Contra a América”, assim como o “e-se” perversamente otimista de
“Imagine”, são uma espécie de “nostalgia do que não vivi” (apud Neymar
Jr.) que leva a um beco-sem-saída escuro e sujo onde um presente muito
real e palpável luta contra si mesmo, contra tudo o que ele poderia ter
sido e não foi.
Aplicada à realidade, a narrativa normalmente divertida e estéril do
“e-se” se converteu em ideologia, que por sua vez se transformou em
desejo revolucionário. Os jovens (ah, os jovens! – sinto todo o peso da
idade ao falar nos jovens como um grupo que não me inclui mais) quebram
as estátuas e condenam livros e filmes ao ostracismo porque não suportam
a ideia de que seu conforto atual é consequência da ação de incontáveis
pessoas que foram felizes e sofreram, que oprimiram e foram oprimidas,
que tiveram voz ou viveram a vida toda em silêncio, que dormiram e
acordaram, que sorriram e choraram.
Pessoas que um dia à mesa, com fome e tendo diante de si uma sopa
rala de batata, ou com as costas fustigadas por um chicote, ou ainda com
os dedos calosos de tanto contar dinheiro, olharam para o futuro e
pensaram: “O que me consola é saber que o futuro dos meus bisnetos será
melhor”.
E é. Apesar dos pesares.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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