BLOG ORLANDO TAMBOSI
O psicólogo canadense critica os extremos à esquerda e à direita e atribui às redes sociais a culpa pela disseminação de notícias falsas. Entrevista à revista Veja:
Um
dos mais influentes divulgadores científicos da atualidade, o psicólogo
e teórico evolucionista Steven Pinker, de 67 anos, se debruçou sobre um
dilema que afeta a vida de todos nós. A humanidade, ao mesmo tempo que é
capaz de feitos incríveis, como o desenvolvimento da vacina contra a
Covid-19 em menos de um ano, parece regredir no tempo ao acreditar em
falsas curas, espalhar mentiras nas redes sociais e voltar à guerra após
décadas de paz. Como isso é possível? O resultado de sua análise está
em Racionalidade — O que é, por que Parece Estar em Falta e por que é
Importante (Intrínseca), que acaba de chegar ao Brasil. Segundo Pinker,
as pessoas naturalmente acreditam naquilo que as faz se sentir melhor,
nem que para isso tenham de negar a pandemia ou os efeitos nefastos das
mudanças climáticas. Na entrevista a seguir, o pesquisador canadense
analisa os perigos da irracionalidade para a sobrevivência da própria
espécie humana, fala sobre a terrível contribuição das redes sociais na
disseminação de notícias falsas e aponta o dedo para os riscos que o
radicalismo político, tanto à esquerda quanto à direita, pode trazer
para o debate racional.
Faz sentido temer que a invasão da Ucrânia pela Rússia se transforme na III Guerra Mundial?
As pessoas deveriam mesmo estar razoavelmente preocupadas com a
situação, porque ela representa um perigo enorme. É uma grande quebra da
tendência de paz dos últimos 75 anos. É, afinal, o primeiro conflito
bélico entre países da Europa desde o fim da II Guerra, tirando a
invasão da Hungria, em 1956, pela União Soviética. Se a Rússia anexar a
Ucrânia, seria a primeira vez que um Estado reconhecido globalmente
deixaria de existir por meio de uma conquista desde os anos 1940. Também
é primeira grande guerra entre países fora do Oriente Médio e da
África.
É possível explicar a invasão de forma racional, como tentam fazer alguns analistas?
Eu não acho que se trata de um conflito relacionado à segurança. A
Rússia não tem realmente medo de ser invadida pela Ucrânia ou por
países-membros da Otan. Isso nos leva a Vladimir Putin, que claramente é
o responsável. Se fosse outra pessoa comandando a Rússia, provavelmente
essa guerra não teria acontecido. Mas há um padrão, e podemos
identificá-lo a partir de uma perspectiva histórica, de líderes
narcisistas, sem empatia, que têm o desejo de poder ilimitado, glória,
influência e prestígio.
A sociedade não deveria criar barreiras para frear o ímpeto de líderes desse tipo?
Nos sistemas políticos bem desenvolvidos, há garantias para impedir que
pessoas com essa personalidade tomem conta do país. Claramente, nem
sempre funcionam, e elas certamente não são usadas na Rússia. O
resultado é uma única pessoa tomando decisões que podem levar a milhares
de mortes. O exemplo de Putin mostra como os objetivos de alguns
líderes podem não ser materiais, como território ou recursos. Putin
sacrificou tudo em favor de prestígio.
O que poderia evitar esse tipo de situação?
Idealmente, teríamos um sistema internacional, com a participação da
ONU e de outras organizações globais, com leis e normas criadas para
impedir que o desejo por poder ou prestígio se transforme em guerra.
Obviamente, não foi o que aconteceu. A prioridade, agora, é fazer com
que a matança pare, e isso pode exigir um exame de nosso senso de honra
em aceitar derrotas para impedir que mais pessoas continuem morrendo.
Deu-se
uma guerra, que tirou parte da atenção global da Covid-19. E temos,
agora, dois imensos problemas globais. Como explicar o comportamento
ambíguo da sociedade na pandemia? Alguns dos impedimentos ao
pensamento racional incluem intuições humanas básicas que provavelmente
foram úteis ao longo da evolução mas que acabaram substituídas pela
compreensão científica. Veja as vacinas. Elas consistem na introdução de
um patógeno dentro do organismo. Sempre foi algo contraintuitivo, e
sofreu oposição desde que surgiu. Mas as pessoas são vacinadas porque
superam essa barreira intuitiva a partir da confiança na medicina, na
ciência e nos governos.
O que causou essa mudança de comportamento? Vemos
as pessoas voltarem a confiar em suas intuições básicas, resistindo às
vacinas, porque há uma falta de confiança nas instituições. A confiança
precisa ser construída principalmente por agentes que não ajam como
oráculos ou sacerdotes, ditando a verdade, mas se esforçando para
mostrar porque aquilo é benéfico. Isso pode ser feito compartilhando
dados e resultados para garantir que as instituições não polarizem a
população ao propagandear uma inclinação, por exemplo, à esquerda, algo
que os pesquisadores fazem com frequência, alienando as pessoas à
direita do espectro político. Nos Estados Unidos, pelo menos, foram as
pessoas alinhadas à direita que resistiram às máscaras e às vacinas.
Até que ponto podemos culpar as redes sociais pela disseminação de informações falsas?
As redes sociais merecem parte da culpa pela desinformação. Uma maneira
de conquistar grandes feitos de racionalidade é criar dispositivos,
organizações e instituições comprometidas com a verdade. Assim, grupos
de pessoas podem conquistar realizações muito maiores do que teriam
capacidade sozinhas. A ciência, as universidades, as democracias e a
imprensa livre são exemplos. Nas redes sociais, no entanto, as ideias
mais populares não são aquelas comprometidas com a verdade, mas as mais
emocionalmente excitantes.
É possível criar mecanismos para impedir a disseminação das notícias falsas nas redes?
Não se trata apenas de redes sociais. O rádio também tem um papel
relevante, assim como alguns canais de TV a cabo. Nos Estados Unidos, há
emissoras tão politicamente polarizadas que se tornam promotoras, com
um alcance enorme, de uma percepção ruim: só é possível acreditar
naquilo que beneficia a sua coalizão política. Mas temos de combater as
notícias falsas. As próprias redes sociais começaram a olhar para a
questão. Deveríamos ajudar as pessoas, e isso começa nas escolas, a ser
consumidoras de notícias mais conscientes e experientes.
Tem-se
a impressão de que vivemos em uma guerra digital de desinformação. Mas o
senhor afirma que informações falsas sempre foram usadas como
ferramenta política. Certamente, não é algo novo na história da
humanidade. Podemos pensar que as fake news e teorias da conspiração são
uma nova invenção tecnológica que está criando todas essas mentiras.
Mas é o padrão. Sempre foi assim. Basta olhar para as religiões, que
são, basicamente, notícias falsas sobre fenômenos paranormais, com seus
mitos e milagres. Conspirações existem desde o surgimento da linguagem. É
sempre uma batalha, mas precisamos desenvolver ferramentas que nos
resgatem de nossa propensão natural a acreditar em teorias falsas que
nos fazem nos sentir bem.
Nesse contexto, como os espectros políticos contribuem para a disseminação de notícias falsas? Vemos
comportamentos extremos dos dois lados do espectro político. Na
direita, temos a disseminação de notícias falsas e teorias da
conspiração feita por líderes políticos. Nos Estados Unidos,
principalmente pelo ex-presidente Donald Trump, e deixo os leitores de
VEJA fazerem suas próprias comparações com a situação brasileira. Da
esquerda, temos a cultura de cancelamento, que pune quem expressa
opiniões contrárias.
Como esses comportamentos prejudicam a busca pelo pensamento racional?
Ambos os espectros são ameaças à racionalidade porque nós, como
humanos, não somos deuses, nem oráculos. Só temos uma maneira de tentar
alcançar a verdade: apresentar hipóteses e ideias, e depois avaliá-las,
refutando aquelas que se mostram erradas. Se algumas ideias não podem
nem mesmo ser expressadas, e outras não podem ser questionadas, então
estamos desabilitando nosso mecanismo principal de chegar à verdade.
Há um limite para a liberdade de expressão e o discurso livre?
Mesmo nos Estados Unidos, onde estamos na vanguarda da liberdade de
expressão, devem existir limites. Alguns crimes são definidos por
discursos e, se todo discurso for permitido, esses crimes deixarão de
ser ilegais. Existem pequenas brechas que podem fornecer motivos para
impor algum tipo de restrição ao discurso livre. Isso não significa que o
conceito de discurso livre não é primordial, apenas que é possível
identificar algumas exceções.
Como o senhor define racionalidade? É o uso de conhecimento para conquistar um objetivo.
Racionalidade e inteligência não são a mesma coisa?
Não, embora sejam relacionadas. Pessoas mais inteligentes tendem a ser
mais racionais, mas não de modo perfeito. Elas também podem ser vítimas
de falácias e vieses, especialmente quando se trata de defender crenças
morais de seu grupo.
Já ouvimos frases como “os seres humanos são irracionais”. Afinal, somos racionais ou irracionais?
Somos bastante racionais a respeito das necessidades práticas de nossa
vida cotidiana. A maioria das pessoas consegue manter seus trabalhos, se
alimentar e educar os filhos. Mas, quando se trata de crenças, digamos,
cósmicas, históricas ou políticas, é aí que vemos a irracionalidade
entrar em cena. Acreditamos em coisas não porque elas são verdadeiras ou
falsas, mas porque elas são moralmente edificantes. Além disso, nós não
somos tão racionais quanto poderíamos ou deveríamos ser. A
racionalidade tende a se misturar com nosso conhecimento cotidiano,
nossos sensos comuns. Podemos expor áreas da irracionalidade humana se
você as desafia com argumentos vindos de dados governamentais,
reportagens sérias e estudos científicos.
Como fomentar o pensamento racional na sociedade?
Podemos fazer isso de várias formas. Uma delas é por meio da educação,
apresentando ferramentas que não são tão intuitivas para a maioria das
pessoas, como lógica, probabilidade e estatística, temas que considero
muito mais importantes do que parte do currículo atual, como
trigonometria. As normas da racionalidade deveriam fazer parte de nosso
entendimento comum, como adultos, de que a mente humana é vulnerável a
vieses. Isso nos levaria a trocar de opinião quando mudam as evidências e
questionar as “verdades imutáveis” de nossos grupos políticos.
Publicado em VEJA de 30 de março de 2022, edição nº 2782
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