Será que além dos pronomes vamos precisar também de referir a cor da pele para nos apresentarmos? Será que nos vamos arriscar a ser cancelados por ativistas da raça tal como já somos pelos do gênero? Gonçalo Forjaz para o Observador:
Toda a guerra começa com uma ideia. A de Putin é tão simplesmente a de voltar a ter um império.
O
valor de uma ideia afere-se pelas suas consequências. Não interessa se
parece boa ou má, popular ou não, velha ou nova. É pelos resultados que a
temos de avaliar. A ideia de Putin, ainda que interessantíssima para
uns quantos intelectuais e ideólogos, chumba redondamente quando
consideramos os seus efeitos. O aparente interesse da ideia passa a ser
secundário. Absoluta e moralmente secundário, como escreveu Miguel Esteves Cardoso.
Há
outro tipo de guerras ideológicas a decorrer no mundo. Podem não deixar
um rasto de morte, destruição e miséria, mas não deixam de conduzir a
uma profunda perturbação do que está, objectivamente, estabelecido na
natureza. Um dos melhores exemplos é a guerra contra a realidade binária
em que toda a humanidade assenta. Não é uma guerra dos sexos, mas
contra os sexos.
Esta
guerra começa no momento em que se faz do género uma nova criatura e o
mesmo deixa de corresponder ao sexo. Tem vida própria. É verdade que o
conceito inicial era de que o género fosse expressão dos papéis
diferenciados que homem e mulher assumem na sociedade, daí se dizer que é
uma construção social, mas rapidamente evoluiu para uma Hidra de Lerna,
ao ponto de nem sequer haver consenso quanto ao número de géneros que
existe. Se não é o sexo a determinar o género, então o que é? O que os
intelectuais e ideólogos desta área militantemente querem é que seja a
percepção mental daquilo que eu acho que sou a determiná-lo.
A
identidade é um conceito curioso pois resulta de um delicado equilíbrio
entre características inatas e características adquiridas. O sexo e a
cor da pele são características inatas e, por isso, objectivas: existem
independentemente da percepção que possa ter delas. O clube de futebol
ou a filiação partidária são características adquiridas e, por isso,
subjectivas: a sua existência depende das minhas preferências e das
escolhas que vou fazendo ao longo da vida. Pode não agradar a todos, mas
isto é a solução ideal pois precisamos da solidez e objectividade das
características inatas para nos permitirmos viver a aventura da
subjectividade das características adquiridas. É como ter o melhor dos
dois mundos. Afinal, a natureza é nossa amiga.
As
actuais teorias do género vieram baralhar tudo isto e quem mais sofre,
claro está, é quem está a passar pelo processo de construção da
identidade, já de si complexo e delicado. Dizer a uma criança que sofre
de disforia de género que pode ser aquilo que bem entender, mesmo que
tal implique vir a alterar profundamente o seu corpo (que, à partida, é
são), é submeter aquilo que é objectivo, como o sexo, ao que é
subjectivo, como a percepção mental que temos de nós. Por outras
palavras, é submeter a realidade à ideia. Isto não é muito diferente do
que defendem os intelectuais e ideólogos do imaginário império de Putin,
que também teimam em vergar a realidade à ideia. Mais uma vez, é pelas
consequências que devemos avaliar uma ideia. No caso da teoria do
género, a mutilação de partes perfeitamente sãs do corpo numa tentativa
de o conformar a uma diferente percepção mental que a pessoa poderá ter
de si, é sinal mais do que evidente para afirmar que a teoria está
errada.
O
sexo, tal como a cor da pele, não se muda. É uma característica
biológica, inata, objectiva. Por vezes pode demorar tempo até aceitarmos
completamente a natureza que nos foi dada. Afinal, não fomos nós que a
escolhemos. É um pouco como ter irmãos, que também temos de aprender a
amar e aceitar. O contrário disto é fazer da nossa natureza o inimigo a
abater. Nunca mais há paz. O alívio temporário que uma “mudança de sexo”
poderá trazer não tem correspondência a longo prazo para muitos que
passaram pelo processo, como numerosos estudos evidenciam. Talvez por
isso haja quem “destransicione” e queira recuperar a natureza que um dia rejeitou.
A respeito da cor da pele, que nos leva à muito debatida questão da raça, a história
de Rachel Dolezal coloca exactamente o mesmo tipo de questões, mas em
relação à identidade de raça, não de género. É caso para perguntar: por
que é que Dolezal, nascida de pais brancos, mas que se identifica como
afro-americana, não goza também do mesmo tempo de antena e protecção das
pessoas que se identificam como transgénero? É que a lógica subjacente –
a de que nos podemos auto-definir independentemente do que a realidade
objectiva do nosso corpo diz – é exactamente a mesma. Com Dolezal,
estaremos no início de uma nova ideologia, neste caso da raça? Será que
para além dos pronomes vamos precisar também de referir a cor da pele
para nos apresentarmos aos outros? Será que nos vamos arriscar também a
ser cancelados e anulados por activistas da raça tal como já somos por
activistas do género?
Estas
são as guerras ideológicas que temos. No caso da Rússia, sabemos bem de
que lado da história ficar. Quanto às outras, seria bom colocarmos de
lado os estados de alma e começar a avaliar objetivamente os seus
efeitos. Só assim não acabaremos como os intelectuais e ideólogos de
Putin.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário